Trump e o aço: três visões
A decisão do governo americano de elevar o imposto de importação sobre as importações de aço e alumínio, anunciadas de surpresa pelo presidente Donald Trump em 1º de março, pode ser interpretada de pelo menos três formas distintas.
A primeira é que tudo não passa de um rompante de um presidente populista e despreparado, que não entende as repercussões de suas decisões. Ele acorda de mau humor, decide as coisas sem falar com ninguém e sai tweetando, buscando agradar seus eleitores e justificar seu discurso de “America first”. Nessa visão, Trump meteu os pés pelas mãos e adotou uma medida protecionista que pouco atinge a China, eleita arquirrival dos EUA, mas afeta muito aliados tradicionais, como Canadá, Brasil, Coreia do Sul e Europa. Esta, em especial, já prometeu retaliar, com Trump retrucando e avisando que está preparado para uma guerra comercial que, garante, irá vencer.
Quem interpreta o que está acontecendo dessa forma enxerga uma espécie de mini-série de TV, em que Trump é uma espécie de trapalhão, ou “Trumpalhão”, que diferentes personagens tentam conter, como é o caso do líder da maioria na Câmara dos Deputados (Paul Ryan), de executivos de empresas prejudicadas e do recém-saído chefe de sua assessoria econômica, Gary Cohn. Enquanto isso, o mundo se arma para uma guerra e o diretor geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) alerta que esta pode levar a uma recessão global. Os dias terminam com suspense, que só se resolverá nos próximos episódios.
Uma segunda interpretação é que Trump está cumprindo mais uma promessa de campanha, como fez com a reforma tributária e o plano de investimento em infraestrutura, enviado recentemente para o Congresso. Nessa visão, Trump segue o receituário nacionalista e protecionista que defendeu nas eleições e que já vinha adotando quando fez os EUA abandonarem a Parceira Trans–Pacífica (TPP, Trans Pacific Partnership); não indicar árbitros para os painéis da OMC, enfraquecendo o órgão; impor a renegociação do NAFTA (North American Free-Trade Association); e pressionar a China por concessões comerciais.
Nesse caso, Trump estaria seguindo os passos de seus antecessores, que também não resistiram à pressão da indústria siderúrgica americana, menos eficiente que a de vários outros países, e impuseram barreiras às importações de aço. Luiz Gonzaga Belluzzo faz um interessante histórico desse protecionismo americano em coluna no Valor. Um protecionismo que defendeu na campanha eleitoral e, concorde-se ou não com ele, foi apoiado pela maioria do eleitorado.
A terceira interpretação é um pouco mais radical. Nessa visão, os EUA estão reagindo à ascensão econômica da China e ao fato de que, enquanto esta tem elevado sua participação no PIB mundial, os EUA vêm se tornando relativamente menos importantes. Em um decênio, ou pouco mais, a China deve se tornar a maior economia do mundo também em dólares correntes – ela já é em paridade de poder de compra. E ela vem expandindo sua influência global, com planos como a Rota da Seda, que beneficia a Ásia e conecta a China por terra à Europa, e investimentos pesados na América Latina e na África.
Mais ao ponto, os EUA estão reagindo ao fato de que nessa expansão a China está se beneficiando muito das regras que regem o comércio internacional, regras essas criadas sob a inspiração e o poderio econômico e militar americano, e que muito bem serviram aos EUA no passado. Isso já aconteceu no passado quando o Japão e, em menor escala, a União Europeia estavam na situação em que hoje está a China. Nessas ocasiões, os EUA foram bem-sucedidos em pressionar esses países a reduzirem suas exportações para os EUA por meio de restrições voluntárias e valorizando suas moedas.
O caso da China pode, porém, mostrar-se diferente – ou não – porque ela depende menos dos EUA para sua segurança nacional. Não é demais lembrar que quando os acordos voluntários de restrição às exportações aconteceram, ainda estávamos no período da Guerra Fria. Além disso, a China tem aspirações geoeconômicas que nem o Japão nem a Europa tinham. E por fim, mas não menos importante, a China tem, possivelmente, mais cartuchos para queimar em uma guerra comercial que os próprios EUA.
A China responde por metade do déficit comercial americano, quando se exclui petróleo, e seria o alvo óbvio dos protecionistas americanos. Mas as dimensões que tendem a prevalecer na disputa entre os dois países são a militar e a tecnológica, onde os EUA gozam de ampla supremacia e estão preocupados em mantê-la deste jeito. Assim, é provável que as barreiras às importações venham a ser acompanhadas por restrições às transferências de tecnologia para a China e à aquisição de empresas americanas por companhias chinesas, o que refletiria mais de perto as preocupações do establishment de defesa americano. Se vai funcionar, ou se a China vai conseguir compensar essas restrições elevando o seu já grande orçamento na área de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, só o tempo e as circunstâncias dirão.
Não obstante, se essa terceira interpretação estiver correta, pode ser que estejamos de fato testemunhando o fim do regime de governança do comércio e do investimento internacional que prevaleceu no pós-Segunda Grande Guerra. O fim ou pelo menos um significativo enfraquecimento. E não é claro o que seria colocado em seu lugar. O risco, porém, é que a crença nos benefícios do livre comércio seja substituída pela visão de que ele é um jogo de soma zero.
Eu não compartilho da primeira visão. Trump demonstrou ser inteligente e um grande comunicador, vencendo uma eleição difícil contra uma concorrente com maior orçamento de campanha e mais apoio partidário. O seu jeito aparentemente atabalhoado tem funcionado midiaticamente bem, mas não acredito que reflita a forma como constrói suas ideias.
A segunda visão faz mais sentido: Trump avisou que seria mais protecionista e, especialmente com a renúncia de Gary Cohn, está cercado por pessoas na área de comércio exterior que defendem que o país deve virtualmente eliminar seu déficit externo extraindo concessões dos parceiros comerciais. O fato de discordarmos dessa posição não tira a sua lógica.
A questão é se a proteção à siderurgia é só o começo ou quase tudo que Trump vai entregar. Assim, ele pode estar agindo simplesmente para cumprir sua promessa de campanha e mandar essa mensagem para seus eleitores, que ele reencontrará na campanha da reeleição, mas sem de fato estar em vias de abraçar um protecionismo radical. E teria escolhido bem a siderurgia para mandar sua mensagem: é um setor simbólico, mas cuja proteção terá impacto reduzido sobre o resto da economia americana. E, isolado, esse ato muito dificilmente irá desencadear uma guerra comercial de grandes proporções.
Penso, por outro lado, que a terceira visão é aderente à nova realidade em que o mundo está entrando. Sua influência sobre a decisão de Trump nesse caso concreto foi provavelmente pequena, ou se teria escolhido um produto que de fato pesasse nas exportações chinesas para os EUA. Mas sua influência sobre o conjunto mais amplo de medidas que o governo Trump tem tomado é provavelmente maior.
Eu penso que essa nova ordem econômica mundial tende a emergir, para se acomodar o gigante chinês, ainda que seja difícil dizer o quão rapidamente isto ocorrerá e o que vai mudar. Por isso, vale a pena acompanhar os vários atos na arena internacional, não como acontecimentos isolados, mas como parte de estratégias que talvez ainda não estejam claras nem para os protagonistas desta saga.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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