Macroeconomia

Uma avaliação do Auxílio Emergencial: Parte 1

5 ago 2020

O Auxílio Emergencial foi instituído em abril de 2020, com o objetivo de, em meio à pandemia, cujo impacto foi mais forte no mercado de trabalho informal, repor os rendimentos das famílias afetadas pela crise econômica desencadeada por esta. Com um valor originalmente pensado em torno de R$ 200 mensais pelo Governo, elevado para R$ 500 pelo Congresso e, definido finalmente em R$ 600 reais em um acordo entre ambos. O benefício foi destinado a trabalhadores informais e desempregados de famílias de baixa renda, podendo ser duplicado para mães solteiras. Seu recebimento é feito por cadastramento em um aplicativo disponibilizado pelo Governo – com beneficiários do Programa Bolsa Família sendo elegíveis, mas tendo que substituir um benefício pelo outro.

Com uma base ampla de elegíveis – estimada em 59 milhões pelo IPEA em abril – o programa atingiu cerca de 66 milhões de beneficiários em agosto, tendo metade da população morando com pelo menos um membro que recebia a transferência, segundo a PNAD Covid-19. O programa é, atualmente, a maior experiência de gasto social do Brasil, com um montante de recursos mensal de R$ 50 bilhões por mês, ou seja, pelo menos R$ 200 bilhões em sua totalidade – frente a R$ 30 bilhões por ano para o Bolsa Família, R$ 56 bilhões por ano para o BPC e R$ 17 bilhões para o Abono Salarial.

Tendo em vista, portanto, tamanha cobertura e gasto, torna-se fundamental a realização de avaliações preliminares do programa. Para isso, serão realizados alguns exercícios empíricos utilizando tanto a PNAD Contínua de 2019, quanto a própria PNAD Covid-19, do IBGE. Essa primeira parte focará no objetivo do programa: a reposição dos rendimentos das famílias.

A tabela abaixo mostra, para o ano de 2019, a média do rendimento total e do trabalho por morador no ano segundo a PNAD Contínua, por decil de renda domiciliar per capita. Adicionalmente, também são simulados os valores médio de 1 e 2 benefícios do Auxílio Emergencial per capita por decil, já subtraindo o Bolsa Família.  

Tabela 1: Valores médios de renda e auxílio emergencial simulado per capita

Decil

Renda Domiciliar Per Capita

Renda do Trabalho Domiciliar Per Capita

1 Auxílio Emergencial Simulado per Capita

2 Auxílios Emergenciais Simulados per Capita

1

103.52

52.73

142.08

315.58

2

286.41

198.74

133.98

286.90

3

431.68

286.20

161.74

335.67

4

568.48

449.50

168.60

344.40

5

738.59

566.19

179.69

362.85

6

953.86

577.23

257.32

515.78

7

1140.80

888.04

213.18

427.76

8

1469.06

1151.76

230.30

461.18

9

2138.39

1631.47

247.05

494.32

10

5823.85

4376.61

266.47

532.98

Fonte: Elaboração própria a partir da PNAD Contínua Anual de 2019 (1ª entrevista)

O Gráfico abaixo mostra o percentual de reposição potencial da renda total e do trabalho dos domicílios de 1 a 2 benefícios do Auxílio Emergencial por decil de rendimento. Como se vê, tanto em relação à renda total quanto do trabalho, um AE reporia a totalidade dos ganhos mensais do decil mais pobre da população. Já dois auxílios chegariam a repor toda renda do trabalho dos 30% mais pobres.

Fonte: Elaboração própria a partir da PNADC 2019 (1º entrevista)

A tabela e gráfico acima são simulações por decil caso cada domicílio recebesse 1 ou 2 auxílios. Para compreender o que ocorreu de fato, no entanto, é preciso utilizar a PNAD Covid-19. Tal pesquisa, além de informar discriminadamente o recebimento dos valores do Auxílio Emergencial, também provê a informação tanto da renda do trabalho efetivamente recebida, quanto a que se recebia habitualmente, antes da pandemia.

Desse modo, a tabela abaixo mostra, para maio e junho de 2020, a diferença entre renda do trabalho domiciliar per capita habitual e efetivo, interpretado como perda desse rendimento entre o período pré pandemia e o mês de referência. Adicionalmente, é apresentado também o valor médio recebido por morador de cada domicílio do Auxílio Emergencial.

Tabela 2: Perda de renda do trabalho domiciliar per capita e renda domiciliar
per capita advinda do Auxílio Emergencial

 

Perda de Renda do Trabalho Domiciliar per Capita

Renda Domiciliar Per Capita advinda do Auxílio Emergencial

mai/20

169.89

111.43

jun/20

156.15

129.06

Fonte: Elaboração Própria a partir da PNAD Covid-19

Como se vê, no primeiro mês, havia uma diferença de pouco mais de R$ 50 per capita entre ambas, que se reduz a mais da metade no mês seguinte, tanto devido à redução da perda de renda do trabalho quanto ao aumento do rendimento advindo do Auxílio Emergencial. Ainda assim, percebe-se que não houve reposição integral do que se perdeu de salários.

É preciso, no entanto, avaliar ainda a reposição do Auxílio Emergencial em termos distributivos. Desse modo, subdividindo a amostra da PNAD Covid entre decis de rendimento domiciliar per capita (efetivos, excluindo o próprio Auxílio Emergencial), percebe-se que os 10% mais pobres e mais ricos foram, respectivamente, os que tiveram maior perda média de renda do trabalho. No entanto, a renda do AE foi maior do que tal perda para os 50% mais pobres do país entre maio e junho, enquanto para a metade mais rica teve redução da renda do trabalho maior do que quanto recebia do programa.

Fonte: Elaboração Própria com base na PNAD Covid-19

Para avaliar os efeitos globais sobre a distribuição de renda, no entanto, é preciso realizar uma comparação dos dados atuais com aqueles observados em 2019. Porém, como o IBGE destaca em seu site, a PNAD Covid-19 é uma pesquisa experimental, com metodologia distinta da PNAD Contínua, de modo a dificultar a comparação entre ambas.

Para superar tal desafio, realiza-se o seguinte procedimento: a amostra da PNAD Covid-19 foi advinda dos entrevistados do primeiro trimestre de 2019 da PNAD Contínua. No entanto, apenas suas edições anuais desta última, de primeira e quinta entrevista, contêm informações de todos os rendimentos, não apenas do trabalho. Assim, serão comparados a renda efetiva da PNAD Covid-19 com a primeira e quinta entrevistas do primeiro trimestre de 2019 da PNAD Contínua – uma amostra representativa de 104 milhões de brasileiros. Como não deveria haver diferença sistemática estatisticamente significativa dos indicadores entre o número da entrevista nos domicílios entrevistados em um mesmo trimestre, será admitido que a distribuição de renda dessa sub amostra do primeiro trimestre de 2019 representará com razoável fidelidade a distribuição de renda de toda população no período.

Há uma dificuldade adicional na comparação da PNAD Contínua com a PNAD Covid-19. O Bolsa Família, como pode ser substituído pelo Auxílio Emergencial, tende a estar sub representado na segunda pesquisa – de modo que, para o caso de buscar simular qual seria a média e distribuição dos rendimentos da população durante a pandemia não fosse o AE, é preciso levar em consideração que parte dos que hoje se beneficiam do programa estariam recebendo o Bolsa Família. Desse modo, enquanto o percentual da população que morava com um beneficiário do PBF na PNAD Contínua (primeiro trimestre de 2019, 1ª e 5ª entrevista) era de 17,8%, na PNAD Covid-19 de maio, tal porcentagem chegava a 12,2%, caindo em junho novamente para 7,8%.

Desse modo, é realizado o seguinte procedimento para simular recebedores do Auxílio Emergencial que seriam beneficiários do Bolsa Família sem este: primeiro, observa-se, na PNAD Contínua do primeiro trimestre de 2019 que o programa chegava a cerca de 75% da população elegível ao programa (renda domiciliar per capita excluindo o PBF abaixo de R$ 178 mensais) e cerca de 15% dos não elegíveis. Assim, na PNAD Covid-19, usando a renda domiciliar per capita excluindo o Auxílio Emergencial – com a renda do trabalho habitualmente recebida antes da pandemia – aplicam-se os mesmos percentuais para escolher aleatoriamente domicílios que recebem o AE na prática.

A transferência do programa à família é ainda um desafio adicional. Para realizar tal simulação, aplicam-se as regras do Benefício Variável e Benefício Variável Jovem, com R$ 41 para cada criança de 0 a 15 anos e R$ 48 para cada adolescente de 16 a 17 anos. Adicionalmente, como as demais regras para o valor da transferência não são observáveis, aplicam-se valores aleatórios em uma distribuição normal seguindo a função apresenta a seguir:

Em que N(x,y) é um valor aleatório seguindo uma distribuição normal de média x e desvio padrão y, n_ind é o número de moradores do domicílio, e renda normalizada é a renda domiciliar per capita excluindo o Auxílio Emergencial (com renda do trabalho habitualmente recebida antes da pandemia) subtraída de sua média geral e dividida pelo seu desvio padrão geral. Desse modo, temos que os beneficiários tendem a receber um valor maior conforme o tamanho do benefício e menor conforme a renda

As tabelas abaixo mostram a comparação geral dos beneficiários, valor médio de transferência e gasto total com o programa observado na PNAD Contínua e PNAD Covid-19. Como se vê, a soma tanto do PBF observado quanto do simulado se assemelha suficientemente ao da PNAD Contínua de 2019.1 em todas as dimensões. Desse modo, pode-se admitir que já algum grau de razoabilidade no uso da simulação.

Tabela 3: Resumo da comparação do Bolsa Família nas observado e simulado em diferentes pesquisas

Característica

PNAD Contínua 2019.1

PNAD Covid-19/jun (BF observada)

PNAD Covid-19/jun (BF simulada)

Beneficiários

17,8%

7,8%

11,2%

Valor médio mensal

R$ 197,65

R$ 186,95

R$ 189,72

Gasto mensal per capita

R$ 8,02

R$ 3.34

R$ 5.15

Fonte: Elaboração Própria com PNAD Contínua e PNAD Covid-19

A tabela abaixo, finalmente, resume as mudanças e limitações destas para a comparação da PNAD Contínua com a PNAD Covid-19. Com a devida cautela, argumenta-se que tais modificações tornam as bases apropriadas para avaliar as mudanças no período entre 2019 e 2020, principalmente devido ao Auxílio Emergencial.

Tabela 4: Comparação e limitações da PNAD Contínua e PNAD Covid-19

Característica

PNAD Contínua

PNAD Covid-19

Limitação

Renda Domiciliar per Capita

Efetiva

Efetiva

Captação distinta (pesquisa presencial na PNADC e por telefone na PNAD Covid)

Bolsa Família

Observado

Observado + simulado

Bolsa Família simulado não necessariamente corresponde ao que seria observado sem o Auxílio.

Amostra

Primeiro Trimestre de 2019 – 1ª e 5ª entrevista

Junho de 2020 – amostra completa

Na PNADC, 1ª e 5ª entrevistas correspondem a observações correspondentes a 104 dos 210 milhões da população.

Fonte: Elaboração Própria com PNAD Contínua e PNAD Covid-19

O Gráfico abaixo, por fim, mostra a variação percentual da renda domiciliar per capita efetiva, por decil, entre o primeiro trimestre de 2019 e junho de 2020. Como ser vê, a renda dos mais 40% mais pobres registrou um considerável crescimento (chegando a 200% entre os mais pobres), enquanto a dos demais caiu. Adicionalmente, excluindo o Auxílio Emergencial, a renda de todos decis teria caído (assumindo nenhuma resposta de outros rendimentos, apenas do Bolsa Família simulado), ainda mais intensamente entre os mais pobres, superando 50%.

Fonte: Elaboração Própria com PNAD Contínua e PNAD Covid-19

Não por acaso, portanto, foi visto, em meio à crise econômica desencadeada pela pandemia, uma forte redução da pobreza, ainda que continue sendo necessário considerar as diferenças metodológicas das pesquisas. A tabela abaixo mostra a média da renda domiciliar per capita e o percentual da população abaixo das linhas da pobreza (US$ 5,50 por dia) e pobreza extrema (US$ 1,90 por dia) da PNAD Contínua em 2019.I (1ª e 5ª entrevista) e da PNAD Covid-19 de maio e junho de 2020.

Tabela 5: Renda Domiciliar per Capita e Pobreza na PNADC e PNAD Covid-19

 

Renda Domiciliar Per Capita Média (efetiva)

Pobreza

Pobreza Extrema

PNADC 2019.I

1457,92

25,6%

8,0%

PNAD Covid-mai/20

1191,57

23,9%

4,2%

PNAD Covid-jun/20

1227,27

21,7%

3,3%

Fonte: Elaboração Própria a partir da PNAD Contínua Anual e PNAD Covid-19

O Gráfico abaixo faz uma meta comparação de diferentes pesquisas – e deve ser ter toda cautela ao realiza-las conjuntamente. Na figura, a diferença entre pobreza e pobreza extrema são cruzadas com a variação da média da renda domiciliar per capita (com diferentes definições, como explicado no Gráfico). Como se vê, há uma forte associação entre ambas variáveis – mas, da mesma forma, o período entre junho de 2020 e o primeiro trimestre de 2019 se mostra como um grande e único outlier em ambas relações, coincidindo uma grande redução da renda média com fortes quedas da pobreza e pobreza extrema.

Fonte: Elaboração Própria com PNAD Contínua e PNAD Covid-19

Conclusão

Como se viu, o Auxílio Emergencial, em que pese seu alto custo, aparenta ter sido efetivo em preservar a renda das famílias, especialmente as mais pobres, para os quais a reposição foi maior do que suas perdas durante a pandemia. Com isso, as comparações realizadas sugerem que o benefício impediu uma forte queda do rendimento dos 40% mais pobres do país, fazendo com que estes, de fato, tivessem uma grande elevação da mesma. Tal efeito proporcional, pela primeira vez em 30 anos, uma forte queda da média a renda domiciliar per capita junto a também uma redução da pobreza e pobreza extrema.

Na próxima parte deste estudo, será feita uma avaliação dos beneficiários do programa. Teria o Auxílio Emergencial chegado, de fato, a quem pretendia? Será investigado se teria havido – e qual teria sido o tamanho – do erro de inclusão do benefício, isto é, se haveria um grande número de beneficiários que não eram, de fato, elegíveis.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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