Macroeconomia

Uma conversa sobre a universalização da regulação do saneamento

28 ago 2020

A regulação teve papel central nas discussões da recente atualização do marco regulatório do saneamento (Lei n° 14.026, de 2020), assim como em 2007, quando da instituição do primeiro marco do setor (Lei ° 11.445). A nova lei torna mais claro que a natureza do regulador deve ser de uma autarquia independente, que é a denominação de agência reguladora independente[1] na legislação brasileira. Mas, mesmo após 13 anos da instituição do primeiro marco legal, ainda há mais de 1.700 municípios no Brasil (31% do total) que não definiram entidade reguladora para esses serviços[2]. Por quê? Isso é um problema? Se sim, como a atualização do marco legal o endereça? Essas são as perguntas que este artigo visa responder.

Primeiro, é necessário entender qual a função da entidade reguladora. Ela visa regular os serviços, como o próprio nome diz. Isso significa que ela tem como missão conciliar os diferentes objetivos dos atores envolvidos, quais sejam: (i) titular/concedente; (ii) prestador de serviço; e (iii) usuários/população. Por exemplo, enquanto o prestador de serviço visa maximizar seus lucros devido a entrega do serviço, os usuários buscam pagar a menor tarifa possível para ter acesso aos serviços com qualidade. Já o objetivo do titular pode ser prover o serviço para a população ao menor custo (similar ao objetivo dos usuários), ou maximizar o valor arrecadado pela concessão e/ou prestação do serviço com vistas a ter recursos disponíveis para diversas agendas, ou, ainda, utilizar o acesso ao serviço como política eleitoral. Como os objetivos são distintos, cabe ao regulador conciliá-los, visando a prestação e remuneração adequada dos serviços. Por isso, em geral, representa-se a entidade reguladora no meio de um triângulo, em que as pontas são os diferentes atores (Figura 1).

Não resta dúvidas, então, que um regulador deva existir independente da delegação do serviço ser feita para uma empresa pública ou privada, uma vez que ambos têm objetivos distintos das outras duas partes (titular e usuários). A dúvida pode surgir quando o município presta diretamente o serviço por meio das secretarias ou departamentos municipais. Nestes casos a reguladora é igualmente necessária, pois o objetivo das partes envolvidas – prefeitura, como concedente e prestadora, e usuários – é distinto.

Por que, afinal, ainda existem tantos municípios que carecem de regulação? É possível pensar em algumas hipóteses para responder esta pergunta.

  1. Falta de conhecimento do executivo municipal sobre a necessidade e importância da regulação

Apesar de ser uma hipótese factível, devido a falta de capacidade técnica existente, é difícil pensar que após cerca de 13 anos da promulgação da lei do saneamento e iniciativas federais de capacitação, como a do Programa Interáguas[3], ou de associações do setor, como a Associação Brasileira de Agências de Regulação, ela ainda seja possível.

  1. Falta de viabilidade financeira, caso o município decida por constituir uma agência municipal

Estudo de 2008 já mostrava que era necessária uma determinada escala para viabilizar a constituição de uma agência a nível local. Segundo Galvão Jr. et al. (2008)[4], à época, seria viável a regulação municipal em apenas 3% dos municípios analisados – 2.523 municípios no total, com prestação indireta.

  1. Receio de perda de poder político do executivo municipal

Uma vez que o município constitui ou delega a alguma entidade reguladora independente esta função, o poder político do executivo municipal (prefeitura) é reduzido. Desse modo, o prefeito não poderá, por exemplo, reduzir as tarifas em anos eleitorais a seu critério nem utilizar o serviço como moeda de troca com a população.

Para endereçar esta questão, a reforma do marco regulatório do saneamento utiliza claro incentivo financeiro. Uma das condicionantes para o acesso aos recursos públicos federais é a observância das normas de referência expedidas pela ANA para agências reguladoras infranacionais. Assim, será necessário determinar a entidade de regulação e esta, seguir as normas de referência. Quanto à escala para viabilizar a regulação, a lei incentiva a prestação regionalizada, ou seja, prestação dos serviços em mais de um município em conjunto, que consequentemente aumenta a escala de prestação e, consequentemente, de regulação.

O desafio posto agora é fazer com que as diretrizes saiam do papel e, finalmente, a regulação dos serviços de saneamento seja universalizada a fim de que haja o correto incentivo para que os serviços sejam providos adequadamente – com expansão do acesso, qualidade na provisão e tarifas justas. Com uma adequada regulação, o ambiente de negócios é favorecido e, como consequência, investimentos são atraídos para este setor que urge por desenvolvimento.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Regulação é a intervenção (controle) do Estado sobre as decisões operacionais e de investimentos das empresas que fornecem serviços de infraestrutura, como é o caso do saneamento. Esta função pode ser exercida de diversas formas, dentre elas por entidade reguladora independente. Para mais detalhes ver Brown et al. (2006). Handbook for Evaluating Infrastructure Regulatory Systems. World Bank.

[2] Informação da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, desenvolvida pelo IBGE com dados referentes a 2017 e divulgada este ano.

[3] O Programa Interáguas - Programa de Desenvolvimento do Setor Água - é resultado de Acordo de Empréstimo firmado entre o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e a governo federal.

[4] Galvão Jr et al.. Viabilidade da regulação subnacional dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário sob a Lei 11.445/2007. Engenharia Sanitária e Ambiental.

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