Brasil gastou mais em 2020 e caiu menos. Em 2021 retoma, mas fica a conta pagar
O ano que se encerrou caracterizou-se pela epidemia e o esforço de reduzir seus impactos sobre a economia e a sociedade. A imprevisibilidade e intensidade do evento fizeram com que os diversos países respondessem de maneira muito diferente. Não houve um padrão claro de política econômica.
No continente latino-americano, as respostas variaram muito. O Brasil foi o país campeão de elevação do gasto público. Segundo a base de dados COVID-19 Economic Stimulus Index, o gasto público brasileiro em função da resposta à epidemia foi de 12% do PIB. Em média, os países gastaram 6,3% do PIB, e a mediana foi de 4%. Para os países da América Latina, o gasto médio foi de 4% do PIB e o mediano foi de 2,7%.
Há alguma correlação entre gasto público com a epidemia e número de mortes por 100.000 habitantes. Para os países da América Latina, a correlação é de 49%. No entanto, essa elevada correlação é produzida por três países que gastaram muito pouco e com muito poucas mortes: Uruguai, Costa Rica e Paraguai. Para os demais países latino-americanos, a correlação é muito baixa e não significante.
O gasto público, no entanto, foi capaz de reduzir a queda da economia. Ao menos há correlação entre gasto público e atividade econômica. Meu colega do Ibre, Bráulio Borges, mostrou que cada 1 ponto percentual (pp) de gasto reduz a queda da economia em ¼ de pp.
Como vimos, a América Latina gastou em média 4% do PIB, enquanto o Brasil gastou 12%. Assim, há um sobregasto brasileiro de 8 pp do PIB. Esse sobregasto reduziu nossa queda de produto, em comparação ao grupo de controle dado pelas economias latino-americanas, em 2 pontos percentuais.
Segundo o World Economic Outlook de outubro de 2020, do FMI, a economia brasileira recuará 4,7% em 2020, enquanto a América Latina, excluído o Brasil, cairá 9,8%. Se tivéssemos gastos como os de nossos pares latino-americanos, nossa queda teria sido de 6,7% em vez do recuo de 4,7% que provavelmente ocorrerá (em março, o IBGE divulgará o resultado da economia no 4º trimestre, quando saberemos o desempenho no ano fechado de 2020).
Evidentemente, esse gasto mais liberal tem seus custos. Segundo a mesma base de dados, o crescimento da dívida pública brasileira em 2020, sobre 2019, foi de 12 pontos percentuais do PIB, ante 3,5 pp do PIB para a América Latina.
Surpreende que esse gasto tenha ocorrido em um período em que o presidente seja considerado de extrema-direita e o ministro da Economia seja visto como o mais liberal que já tivemos.
Sabemos que o Congresso foi fundamental para a aprovação do pacote fiscal, em particular do auxílio emergencial. Temos mais um exemplo do que a coluna há quase uma década tem chamado de “contrato social da redemocratização”. A sociedade, por meio de seus representantes, decidiu gastar muito e elevar o endividamento público para fazer uma política fortemente contracíclica – a mais contracíclica do continente – com o objetivo de auxiliar as pessoas a melhor enfrentar a epidemia.
Os juros muito baixos e a excepcionalidade da situação permitiram esse comportamento do Congresso Nacional. No entanto, nos próximos anos a conta virá. Teremos que reduzir o endividamento público.
Nosso buraco fiscal é elevado. Segundo cálculos de minhas colegas do Ibre, Luana Miranda e Vilma Pinto, o déficit primário – já considerada a situação cíclica da economia – é de aproximadamente 1% do PIB. O déficit primário é a diferença entre o gasto não financeiro do Estado e a receita total de impostos, tarifas e contribuições.
Como temos elevado endividamento, será necessário que nos próximos anos construamos um superávit primário do setor público consolidado. De quanto? O custo real da dívida pública deve ser de juros de 4-5% ao ano. O crescimento possível da economia, em condições normais de temperatura e pressão, é da ordem de 2%. Assim, para que a dívida não cresça como proporção do PIB, o superávit tem que ser de aproximadamente 2-3% do PIB. Como temos um déficit em torno de 1% do PIB, nosso buraco fiscal é de 3-4% do PIB!
Nos próximos anos o Congresso Nacional terá um longo trabalho. Negociar medidas – aumento de impostos e redução de desonerações tributárias e do gasto público – que gerem um ganho fiscal de 3-4% do PIB, ou R$210 a R$280 bilhões.
Não será simples nem indolor. Mas a alternativa parece pior.
Em 2020, surgiu uma inflação que há apenas seis meses não era esperada. O IPCA deve ter fechado o ano acima de 4%, enquanto em junho as expectativas eram mais próximas de 2%.
A inflação foi fruto de quatro choques que devem refluir parcialmente em 2021: subida dos preços das proteínas em função da gripe suína africana, que dizimou, em 2019, 40% do rebanho chinês; alta dos preços das commodities na esteira da forte recuperação da China em 2020, após a parada súbita da economia no 1º trimestre; desvalorização do câmbio em 2020 por causa dos impactos da epidemia sobre as economias emergentes e do aumento da fragilidade fiscal do Brasil, como vimos; e um ciclo de estoques na indústria e no varejo, após a parada súbita da economia no 2º trimestre de 2020.
Esses choques devem refluir em 2021 e a inflação, após um pico de 6% ao ano no acumulado de 12 meses em maio próximo, cairá e deve fechar o ano em 3,5%. No entanto, se o Congresso não iniciar uma discussão mais séria do buraco fiscal – e o próximo momento de fazê-lo é na discussão da Lei Orçamentária Anual de 2021, que ocorrerá em fevereiro e março –, podemos fechar o ano com inflação entre 4% e 5%.
Nesse cenário, o dragão da inflação lentamente voltará a dar as caras por aqui. Como Argentina e Venezuela ilustram, a inflação está longe de ser algo superado no continente latino-americano.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de janeiro de 2021.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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