O governo Bolsonaro em 2021: Coleção de grupos vs coalizão interpartidária
No Boletim Macro de março de 2019, esta coluna afirmou o seguinte sobre a composição e a dinâmica do recém-empossado governo Bolsonaro: este não era uma coalizão, mas, sim, uma coleção de grupos com relações instáveis entre si e sem clara hierarquia. Os grupos eram os (1) filhos do presidente; (2) os militares; (3) os liberais liderados por Paulo Guedes; (4) os lavajatistas encabeçados pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro; (5) a ala representativa do bolsonarismo radical; (6) os políticos de baixo coturno em alguns poucos cargos ministeriais; (7) a bancada parlamentar do PSL, sigla à qual Bolsonaro era filiado; e (8) a aglomeração de partidos e legisladores conservadores e clientelistas sob a batuta de Rodrigo Maia, então presidente da Câmara dos Deputados[1].
A coleção começou a mudar de cara rapidamente. Ainda em 2019, Bolsonaro abandonou o PSL depois de uma rixa com Luciano Bivar, o presidente da agremiação. Sérgio Moro e o lavajatismo foram expelidos em abril de 2020. Os filhos do presidente, Guedes e a ala radical continuam lá, mas enfraquecidos. Os militares foram fortalecidos, mas ao preço de crescentes tensões com a cúpula das Forças Armadas institucionais. A partir de junho de 2020, com a prisão de Fabrício Queiroz, o faz-tudo da família Bolsonaro, o presidente da República passou a aproximar-se do Centrão para escapar de um processo de destituição, aproximação simbolizada pela nomeação do deputado Fábio Faria (PSD-RN) para o Ministério das Comunicações.
No começo de fevereiro de 2021, Bolsonaro selou seu entrosamento com o Centrão ao emprestar apoio decisivo à eleição de Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) às presidências da Câmara e do Senado, respectivamente. Ato contínuo, em 12 de fevereiro, o deputado João Roma (Republicanos-BA) foi nomeado ministro da Cidadania. Com essas manobras, Bolsonaro implodiu a liderança de Rodrigo Maia e rachou o DEM, o PSDB e o MDB, reduzindo consideravelmente a probabilidade de ser removido do cargo. Ou seja, foram fortalecidos os políticos de baixo coturno e a aglomeração de siglas conservadoras e clientelistas dentro do governo.
Vários analistas têm afirmado que, finalmente, Bolsonaro se rendeu aos ditames do presidencialismo de coalizão. Sim e não. Sim porque a coleção de grupos dentro do governo encontra-se hoje mais partidarizada. Não porque o governo ainda não possui as características típicas de um gabinete de coalizão majoritário.
A literatura acadêmica sobre o presidencialismo de coalizão mostra que uma coalizão majoritária é fruto um acordo interpartidário que ofereça ao chefe do Executivo um apoio legislativo de pelo menos 50% + 1 dos congressistas. Cinco passos devem ser dados para que isso aconteça: (i) a presença de políticos de pelo menos dois partidos chefiando a maioria dos ministérios; (ii) uma distribuição proporcional de cargos e recursos orçamentários a esses partidos; (iii) o uso hábil pelo presidente de suas faculdades constitucionais para definir a agenda do Congresso e coordenar aliados (sobretudo por meio de medidas provisórias); (iv) a utilização pelos líderes partidários de seus poderes parlamentares para acelerar a aprovação dos projetos de lei propostos pelo chefe do Executivo (aqui destaca-se o papel fundamental desempenhado pelo presidente da Câmara dos Deputados e pelo Colégio de Líderes); e (v) uma agenda programática compartilhada entre o presidente e os partidos governativos[2].
O primeiro passo é uma condição necessária. Todavia, os outros quatro são alternativas substituíveis que podem ser adicionadas a (i). Isso significa que, ao montar um gabinete de coalizão, um presidente pode consolidar uma maioria legislativa fazendo as mais diversas permutações entre (ii), (iii), (iv) e (v). Bolsonaro tem se valido dessas quatro alternativas, mas ainda não cumpriu a condição necessária (i). Afinal, a maioria do seu gabinete ainda é composta por ministros apartidários e militares.
Através de vasta distribuição de cargos e verbas orçamentárias com o fito de eleger Lira e Pacheco, Bolsonaro acabou colocando a carroça na frente dos bois. No momento em que se escreve esta coluna (17 de fevereiro), o governo deve ser definido apenas como uma coleção de grupos um pouco mais partidarizada do que em 2019, mas que, eventualmente, pode evoluir para uma coalizão majoritária. Para tanto, será necessário nomear mais representantes de partidos para substituir ministros militares e bolsonaristas radicais, tarefa que não é fácil, pois implica punir o núcleo duro de apoio do chefe do Executivo. Caso não faça isso, Bolsonaro corre o sério risco de pagar cada vez mais caro toda vez que precisar recorrer a (ii), (iii), (iv) e (v). Caso faça, suas principais promessas ao eleitorado em 2018 serão abandonadas de vez (a nova política, o liberalismo econômico e o combate à corrupção). É dificílimo resolver esse dilema, mas, por enquanto, Bolsonaro tem contado com a inestimável ajuda de uma oposição dividida, desmoralizada, sem líderes e sem projeto.
Este artigo faz parte do Boletim Macro Ibre de fevereiro de 2021.
Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Ver Octavio Amorim Neto, “Composição e dinâmica do governo Bolsonaro”, Blog do IBRE, 27/03/2019, disponível em https://blogdoibre.fgv.br/posts/composicao-e-dinamica-do-governo-bolsonaro.
[2] Para uma discussão detalhada da bibliografia sobre o presidencialismo de coalizão, ver Octavio Amorim Neto, “Cabinets and coalitional presidentialism”, In: Barry Ames (org.), Routledge Handbook of Brazilian Politics (New York: Routledge, 2018, pp. 293-312).
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