Macroeconomia

Bem-vindo ao teto dos gastos públicos!

16 abr 2021

O setor público brasileiro não possui tradição de alocar recursos  sob a tutela de uma restrição orçamentária. O teto dos gastos públicos trouxe essa restrição, que foi reforçada recentemente com a aprovação da PEC dos Gatilhos.

Estamos começando a conviver com tal restrição, iniciando o convívio com o conflito que aprendemos na aula 1 de microeconomia: como alocar recursos orçamentários no contexto de necessidades infinitas e recursos limitados? Tentando esclarecer melhor, diria que, atualmente, o Executivo federal tem de lidar com três restrições simultaneamente: teto dos gastos, regra de ouro e meta de resultado primário.

Nesse sentido, o processo de discussão, alocação e execução orçamentária e financeira é um processo de otimização das despesas públicas sob três restrições, de fato. Cada uma delas possui custos e benefícios, que devem ser olhados simultaneamente, apesar de alguns somente olharem os custos e os defeitos delas.

Feitas essas considerações iniciais,  vale destacar que as pessoas que se dispõem a analisar as contas públicas deveriam reconhecer que estamos diante de um “processo novo de discussão, alocação e execução orçamentária e financeira”, no qual todos iremos aprender conjuntamente.

A propósito, antes de 2016, o setor público federal nunca havia passado por tal processo. Em particular, dada a baixa expansão do limite superior devido ao IPCA de 2,1%  (+ R$ 31 bilhões) que pautou a margem de expansão do Teto, o que temos observado recentemente, como já deveria ser esperado, é que a discussão e aprovação da alocação de recursos do Orçamento para 2021 (feita sob “restrição forte”) tem gerado conflito.  Até agora foi isso e somente isso que ocorreu, apesar de alguns somente falarem  em furar o teto, pedalada fiscal, contabilidade criativa e análises do gênero,  que não fazem o menor sentido até o presente momento. Veja por que não fazem em três considerações.

Em primeiro lugar, não faz o menor sentido falar em “contabilidade criativa”  na aprovação de lei pelo Legislativo. Por quê? Até mesmo uma rápida reflexão sobre a definição do termo “contabilidade” levará qualquer um, facilmente, à conclusão que somente existe “contabilidade criativa” na execução orçamentária e financeira. O Legislativo pode até propor “contabilidade criativa”, como de fato propôs , seja por erro formal ou material – e isso faz parte do conflito, mas somente quem pode executar “contabilidade criativa” (ferindo os bons princípios das Contas Públicas) é o Executivo. E os membros do Executivo não farão isso, pois, se o fizerem, estarão cometendo improbidade administrativa.

Em segundo, o que aprendemos (embora muitos prefiram acreditar em suas verdades prontas, e não naquelas que se adequam à realidade, como nos ensina Aristóteles) é que o conflito por alocação de recursos orçamentários não necessariamente se exaure na aprovação da Lei Orçamentária.

De fato, o que o Legislativo propôs foi continuar o jogo, testando o limite de shutdown do Executivo, ou seja, impondo ao Executivo o funcionamento sob o mínimo de custeio para o funcionamento da máquina administrativa. Em termos econômicos, isso significa  que o Legislativo está incentivando o Executivo a operar sob a curva de eficiência.

A estimativa  hoje do limite de shutdown que se soube por meio de técnicos do Executivo federal (que operacionalizam a máquina dia-a-dia) é de R$ 72 bilhões; aliás, esta já foi na ordem de R$ 105 bilhões nos idos de 2017, diga-se de passagem. Aqui, deveríamos refletir um pouco sobre esses números!

Dito isso, vale a pena observar esse conflito em números macro,  a fim de verificar como o Legislativo está testando o limite de shutdown do Executivo, no intuito de ampliar as emendas orçamentárias a que tem direito. Com esse intuito,  na Tabela 1, descreve-se um exercício para mostrar qual foi a manobra feita no Legislativo para ampliar os investimentos e a execução dos gastos  sob seu poder, colocando o poder Executivo em shutdown, que é uma posição completamente inexequível, mas fundamental  para o aumento do poder político na negociação, tornando crível a possibilidade de o Executivo operar sob eficiência (testando o limite de shutdown).

De fato, como pode ser visto na Tabela 1, no orçamento que o Executivo enviou ao Legislativo (coluna da esquerda),  havia R$ 1,376 trilhão de despesa obrigatória sob o teto. Havia também R$ 109 bilhões para discricionárias, entre as quais R$ 72 bilhões constituem o mínimo de recursos necessários para o funcionamento da máquina administrativa e mais R$ 37 bilhões para as demais discricionárias. Nestes R$ 37 bilhões, já se incluíam R$ 16 bilhões para emendas, “sobrando” cerca de R$ 21 bilhões para os investimentos e outras despesas congêneres do Executivo.

Tabela 1 - Execução dos gastos públicos federais sob o Teto (em R$ bi), em 2021

Enviados ao Legislativo = 1.485

 Legislativo sem manobra = 1485

Recebidas do Legislativo = 1.485

- Obrigatórias  =  1.376

- Obrigatórias  sem manobra = 1.393 

 

- Obrigatórias  = 1.350

- Discricionárias =   109

- Discricionárias =   92

- Discricionárias = 135

         - Limite para shutdown (excluídas as emendas) = 72

    - Limite para shutdown (excluídas as emendas) = 72

         - Discricionárias sem Emendas = 49

  • Demais discricionárias:

37

                 - Emendas: 16

- Sobra: 21

  • Demais discricionárias:

20

                 - Emendas: 20

                 - Sobra: 0

         - Demais discricionárias: 86

             - Emendas:  65

             - Sobra: 21                     

* Nas obrigatórias, foram incluídas as despesas dos demais poderes.

Na coluna do meio da Tabela 1,  descreve-se o orçamento que tecnicamente o Legislativo deveria ter aprovado. Neste, o Legislativo deveria ter aumentado as despesas obrigatórias em R$ 17 bilhões, levando-a para R$ 1,393 trilhão, considerando que, na semana passada, o Executivo já havia divulgado uma avaliação na qual se indicou uma necessidade adicional de R$ 17 bilhões de despesas obrigatórias, ou seja, um corte no mesmo montante nas despesas discricionárias.

Com isso, as discricionárias deveriam ter ido para R$ 92 bilhões. Por conseguinte, ao considerar o limite de shutdown de R$ 72 bilhões (a ser testado), deveriam ter sido raspadas as sobras de R$ 21 bilhões do Executivo e ampliadas as emendas de R$ 16 bilhões para R$ 20 bilhões. Então, R$ 4 bilhões é o que tecnicamente seria possível de aumento das emendas parlamentares.

Todavia, na direita da Tabela 1, observa-se que as despesas obrigatórias foram subestimadas pelo Legislativo em cerca de R$ 26 bilhões. Ocorre que, como já dito, na semana passada, o Executivo já havia divulgado uma avaliação na qual se indicou uma necessidade adicional de R$ 17 bilhões de despesas obrigatórias, ou seja, um corte no mesmo montante nas despesas discricionárias. Com isso, a subestimação nas despesas obrigatórias do Poder Executivo gerou a necessidade de um cancelamento na ordem de R$ 43 bilhões nas discricionárias do Executivo.

Além disso, nem sequer foram mantidas as despesas discricionárias para o funcionamento mínimo da máquina administrativa – aqui, registre-se que houve também trocas de custeio por investimentos obtidas por meio de alianças com ministérios da área de infraestrutura ou avanços sobre os investimentos militares. Diante do exposto,  parece óbvio que o Legislativo não vai permitir um shutdown, o que prejudicaria ao próprio Legislativo, mas vai testar até onde pode avançar sobre as discricionárias do Poder Executivo.

Nesta etapa subsequente do conflito, que ocorrerá nas próximas semanas, na qual saberemos até onde será trocado custeio do poder Executivo por emendas parlamentares,  observaremos outras possíveis consequências desse novo processo de alocação orçamentária. Isso é o que, de fato, sabemos até o presente momento.

Por fim, apesar de não ser possível exaurir todas as possibilidades, vale  a pena mencionar ao menos quatro possíveis consequências desse conflito.

Primeiro, simplesmente o poder Executivo propor a recuperação do limite que não gera shutdown, cortando as emendas feitas pelo Legislativo em uns R$ 23 bilhões e recompondo os gastos obrigatórios, o que gerará um cancelamento na ordem dos R$ 43 bilhões.  Neste caso, com a resolução recente do Codefat adiando o pagamento do Abono Salarial para 2022, diminuiu-se essa necessidade em R$ 7,6 bilhões, podendo-se cancelar R$ 35,4 bilhões em vez de R$ 43 bilhões.   

Segundo,  a fim de ampliar a efetiva disponibilidade de emendas, o Legislativo pode se movimentar para aprovar desvinculação de receitas e a correspondente desobrigação de despesas financiadas por essas receitas, diminuindo o limite mínimo de gastos obrigatórios. Por exemplo, uma aprovação de uma Lei pode levar a uma desvinculação das receitas públicas e a correspondente desobrigação das despesas geradas pelas loterias federais, permitindo  alocação de até R$ 4 bilhões para emendas parlamentares.

Terceiro, também a fim de ampliar a disponibilidade de emendas, o Executivo pode aprovar importantes reformas que  levem a maior espaço fiscal para alocação de emendas, a exemplo da flexibilização da carga horária do servidor público, que pode levar a um espaço fiscal para alocação de emendas de ao menos R$ 9 bilhões, por ano.

Quarto, pode não se chegar a um consenso e o Executivo ter de propor, por EMENDA CONSTITUCIONAL, o FURO do Teto. Aqui, encontra-se a beleza do teto, pois uma decisão dessa natureza não pegará ninguém no mercado nem na sociedade de surpresa, pois terá de ser proposta ativamente pelo Executivo, a fim de que a máquina não entre em shutdown nem os servidores cometam IMPROBIDADE.  Creio que essa possibilidade é remota.

De fato, é difícil acreditar que esse teste do poder Legislativo levará ao furo do teto ou ao fim do teto, visto que este Poder acabou de confirmar e até mesmo reforçar o teto. Tal mudança brusca não seria consistente, nem compreensível, ainda mais quando entendemos que estamos em um processo de aprendizagem em que ninguém sabe (a priori) o caminho a ser seguido.

Enfim, sejamos todos bem-vindos ao processo de alocação orçamentária sob teto dos gastos públicos ou sob uma restrição orçamentária forte! Creio que todos deveríamos esperar que este se mantenha e seja perene, a fim de evitarmos a volta da inflação, com suas terríveis consequências, especialmente sobre os extremamente pobres ou aqueles que vivem em situação de miserabilidade.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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