Pagamento líquido de juros, ajuste financeiro e custo de carregamento da carteira do setor público
No que tange à política fiscal no Brasil, muita atenção tem sido dada ao resultado primário e aos níveis de endividamento público como proporção do PIB. Porém, também é necessário avaliar o efeito da taxa de câmbio e da acumulação de ativos financeiros por parte do setor público sobre a estabilidade fiscal. Dessa forma, não menos importante é analisar o montante de juros líquidos pagos pelo governo. Ao final de 2020, o setor público pegou R$ 312,4 bilhões em juros líquidos (4,2% do PIB), contra R$ 367,3 bilhões em 2019 (5,0% do PIB). Houve, portanto, uma redução de 0,8 ponto percentual. Além disso, trata-se do quinto ano consecutivo de redução das despesas líquidas com juros nominais. O ano de 2020 marca também o menor valor da série histórica desde 2002, como mostra o Gráfico 1.
Fonte: BCB e Ipeadata. Elaboração dos autores
Para analisar a origem dessa redução, vale a pena decompor a despesa líquida com os juros nominais em cinco componentes:
- O resultado dos swaps cambiais do BCB, que decorre dos ganhos ou perdas de capital da autoridade monetária em operações com derivativos cambiais e, portanto, não tem relação direta com a execução do orçamento fiscal do governo.
- O custo de carregamento da carteira do setor público, que representa a diferença entre a taxa de remuneração dos ativos financeiros do governo (reservas internacionais, empréstimos ao BNDES, FAT e outras aplicações) e a taxa SELIC.
- Correção monetária, que representa a inflação multiplicada pelo valor da dívida líquida do setor público exclusive base monetária.
- Juros reais, que representam a taxa SELIC real sobre o valor da dívida líquida menos base monetária, ou seja, a dívida líquida que efetivamente paga juros.
- Efeitos de segunda ordem, que representam a influência conjunta (cruzada) do juro real e da inflação sobre a dívida líquida não monetária, geralmente insignificante do ponto de vista econômico, mas necessário para completar a conta matemática.
Os detalhes da decomposição acima podem ser obtidos em Barbosa-Filho (2018), que a apresentou até o ano de 2017. Agora, com os dados anuais completos do BCB até 2020, pode-se ter uma visão melhor do que aconteceu com a despesa líquida de juros ao longo de quase duas décadas, dando algum detalhamento ao custo de carteira do governo. O Gráfico 2 apresenta os números.
Fonte: BCB e Ipeadata. Elaboração dos autores
O resultado dos swaps cambiais foi determinante para os números totais de 2015 e 2016. Para conter a volatilidade cambial em 2015, o governo realizou intervenções no mercado de câmbio via operações de swap, o que gerou uma despesa líquida de juros da ordem de 1,5% do PIB. Tal movimento foi revertido em 2016, quando o resultado favorável da taxa de câmbio gerou uma contribuição de -1,2% do PIB em termos de pagamento de juros via swaps cambiais. Nos últimos anos, a contribuição dos swaps foi mais modesta para os juros líquidos. Em 2020 atingiu 0,5% do PIB.
As contribuições da correção monetária e do juro real seguiram movimentos opostos. A correção monetária se reduziu entre 2015 e 2017, saindo de 2,8% do PIB para 1,3%, enquanto o juro real, nesse mesmo período, se elevou de 0,7% para 2,8%. Isso ocorreu porque o aperto monetário realizado pelo BCB entre abr.2013 e jul.2015, no qual a Selic saltou de 7,25% a.a. para 14,25% a.a., durou um tempo demasiadamente prolongado (manutenção da Selic em 14,25% a.a. até out.2016), fazendo com que a desinflação ocorresse de maneira relativamente rápida vis-à-vis o nível atingido pela Selic. Já entre 2018 e 2020, o movimento é justamente o oposto. A dinâmica inflacionária favorável e o estado de semi estagnação da economia fizeram com que a Selic atingisse seus níveis mínimos históricos, levando a contribuição do juro real para o patamar negativo de -1,0% do PIB em 2020. A correção monetária, por sua vez, elevou gradualmente sua contribuição para o pagamento de juros líquidos, saindo de 1,7% do PIB em 2018 para 2,4% em 2020.
O custo de carteira do governo reduziu sua contribuição ao pagamento de juros líquidos desde 2015. Alguns fatores explicam esse movimento. Em primeiro lugar, entre 2015 e 2017, o diferencial entre a taxa de juros de longo prazo (TJLP), que remunerava os empréstimos do BNDES, e a Selic, se reduziu. Em segundo lugar, iniciou-se a política de devoluções antecipadas dos empréstimos do BNDES à União. Em terceiro lugar, com a Selic atingindo seu nível histórico mais baixo, o diferencial de juros entre a Selic e as taxas de juros internacionais (por simplificação, a Fed Funds rate), responsáveis pela remuneração do estoque de reservas internacionais, também se reduziu.
Por fim, a partir de 2018 houve mudanças no custo financeiro de alguns ativos do governo (FAT e Empréstimos do BNDES à União), os quais passaram ter como referência a taxa de longo prazo (TLP), determinada por taxas de mercado. Dessa forma, o custo de carteira do governo se reduz de 3,3% do PIB em 2015, para 2,1% em 2017, um ajuste financeiro da ordem de 1,2% do PIB (Gráfico 2). A partir de 2018 o valor do pagamento líquido de juros decorrente do custo de carteira do governo permaneceu relativamente estável, entre 2,1% e 2,3%.
Vale a pena também analisar a dinâmica dos determinantes do custo de carteira do governo de maneira mais detalhada. O Gráfico 3 decompõe os juros líquidos pagos pelo governo devido ao custo de carteira por três de seus principais ativos: reservas internacionais, empréstimos da União ao BNDES e FAT.
Fonte: BCB e Ipeadata. Elaboração dos autores
Nota-se a expressiva queda do custo de carteira decorrente do custo de carregamento das reservas internacionais, que saiu de 2,6% do PIB em 2016, para 0,5% do PIB em 2020, ou seja, um ajuste de aproximadamente 2,0 p.p.. Tal movimento foi decorrência da redução do diferencial entre a Selic (que atingiu seus mínimos históricos) e as taxas de juros internacionais (cuja referência pode ser, por simplificação, a Fed Funds rate), fruto do ciclo de afrouxamento monetário que levou a Selic a 2,0% a.a. entre ago/2020 e mar/2021.
Os empréstimos da União ao BNDES atingiram seu valor máximo no que tange ao pagamento de juros líquidos como proporção do PIB em 2015, quando o saldo devedor da dívida era elevado e o diferencial entre TJLP e Selic era bastante negativo. Como mencionado, a elevação da TJLP e o início das devoluções antecipadas do BNDES à União iniciaram trajetória de queda da contribuição do BNDES para o custo de carteira do governo. A partir de 2018, com a mudança do custo financeiro do BNDES – de TJLP para TLP – tal contribuição torna-se negativa, uma vez que a taxa de remuneração do empréstimo ao BNDES (TLP) tornou-se superior à Selic. O ajuste financeiro decorrente de tais mudanças no BNDES foi da ordem de 0,7% do PIB entre 2015 e 2020.
O FAT segue a mesma lógica. A redução do diferencial entre TJLP e Selic, e a introdução da TLP como custo do funding do BNDES reduziram de maneira significativa o peso do FAT no pagamento de juros líquidos do governo. Entre 2015 e 2020, a contribuição do FAT para o pagamento líquido de juros saiu de 0,3% para -0,2% do PIB, isto é, um ajuste de aproximadamente 0,5%
Em resumo, a dinâmica do pagamento líquido de juros ao longo dos últimos, refletindo o ajuste financeiro do governo tem fortes implicações para condução da política fiscal. O ciclo de afrouxamento monetário brasileiro, que levou a Selic a seus patamares mínimos históricos, associado às devoluções antecipadas do BNDES à União, e a mudança do referencial de custo financeiro da instituição (que também remunera o FAT), levou a um ajuste financeiro do orçamento público da ordem de 3,2% do PIB. Esse fato se traduziu, nos últimos anos, em uma menor necessidade de resultado primário para manter o endividamento líquido em proporção do PIB constante.
Para os próximos anos esse cenário tende a ter espaço mais reduzido, pois o saldo devedor do BNDES junto à União atualmente é bem menos significativo do que no passado, além do que o ciclo de aperto monetário atualmente em curso tende a elevar o custo de carregamento das reservas internacionais nos próximos anos. Uma hipótese para a continuidade do ajuste financeiro do orçamento do governo seria a venda de uma parcela das reservas internacionais, expediente que, até o momento, não foi utilizado, pois as reservas cambiais possuem um valor intangível, pois atuam como uma espécie de seguro contra crises em momentos de turbulência.
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