É possível tirar precatórios do teto respeitando Constituição e responsabilidade fiscal
Governo Federal previa precatórios de R$ 56 bi em 2022, sob teto dos gastos, e foi pego de “surpresa” quando previsão foi a R$ 89 bi. Argumenta-se aqui que princípios da simplicidade, segurança jurídica e austeridade fiscal devem ser observados na solução desse problema.
Encontra-se em discussão a proposição e a iminente votação, no Congresso Nacional, de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para viabilizar a alocação orçamentária e o teto do gasto público federal no próximo ano, respeitando a Constituição.
Essa discussão se iniciou porque o Governo Federal planejava um pagamento de precatórios (decisões judiciais transitadas em julgado em que o governo se torna devedor e informadas até o dia 30 de junho, no intuito de serem pagos durante a execução orçamentária do ano seguinte) de R$ 56 bilhões em 2022, sob o teto dos gastos públicos, e foi pego de ”surpresa” ao ser informado que tal pagamento aumentou para R$ 89 bilhões, inviabilizando a execução orçamentária de despesas essenciais para o regular funcionamento da máquina pública federal.
Dito isso, depreende-se imediatamente uma primeira conclusão. Algo tem de ser feito para viabilizar o funcionamento do governo federal no próximo ano, pois serviços essenciais não podem ser paralisados por conta de eventos que fogem ao costumeiro exercício e controle do Poder Executivo. O que fazer? Elencam-se aqui três princípios que deveriam ser respeitados ou observados no processo de decisão sobre a solução para esse problema: simplicidade, segurança jurídica e austeridade fiscal.
Em relação ao princípio da simplicidade, entende-se que a solução deva ser simples e acessível, de tal forma que haja um rápido entendimento de todas as partes envolvidas, inclusive da imprensa e do mercado financeiro. Nesse sentido, por exemplo, misturar o endereçamento desse problema gerado pelos precatórios com a criação de fundo para pagar bônus para Bolsa Família, ou algo do tipo, somente cria ruídos e atrapalha o solução.
No que diz respeito à segurança jurídica, entende-se que precatório é dívida, ainda que flutuante, e não consolidada, devendo-se respeitar a segurança jurídica e pagá-la, sob pena de criar suspeitas que soluções casuísticas podem ser encontradas para outras decisões judiciais, levando até mesmo à eventual desconfiança por parte das agências de rating, podendo ser um obstáculo adicional para o Brasil conseguir investment grade.
Cabe também destacar que não se pode comparar o Governo Federal com Estados e Municípios nessa seara, pois estes não possuem acesso a operações de crédito ou ao endividamento como aquele possui. Ao fazer essa analogia, “baixa-se a régua” para o Governo Federal, significando um claro retrocesso no manejo das contas públicas federais.
Essa comparação, inclusive, vai na contramão da recente Emenda Constitucional (EC) que acionou os gatilhos do teto e deu incentivos para que os entes subnacionais colaborem com o ajuste fiscal e ajustem suas contas com a mesma prudência que o Governo Federal tem seguido desde 2016. Aliás, a recente chamada pública do Tesouro Nacional que visa ajustar os critérios de rating para concessão de garantia aos Estados e Municípios mostra que a EC dos gatilhos é mais eficaz e poderosa que vários analistas entenderam. Não podemos ir na direção contrária; é preciso persistir no caminho certo.
Ademais, se há desconfiança de “indústria de precatório”, deve-se atacar a causa, e não a consequência. Logo, limitar o pagamento a um percentual da receita corrente é calote, pois interrompe intempestivamente um direito já adquirido e cerceia unilateralmente o pagamento de dívidas. O próprio Supremo Tribunal Federal pode desconstruir uma limitação nesse sentido. Não é prudente caminhar nessa direção.
Por conseguinte, no intuito de não arranhar a segurança jurídica, pode se regular o pagamento dos precatórios daqui para frente, a partir das decisões judiciais exercidas após a promulgação desta iminente PEC dos precatórios, considerando apenas uma modulação ou regulamentação do que já existe na Constituição Federal, em termos de tratamento dado para “grandes precatórios”, explicitado no artigo 100, § 20, abaixo transcrito ipsis literis:
§ 20. Caso haja precatório com valor superior a 15% (quinze por cento) do montante dos precatórios apresentados nos termos do § 5º deste artigo, 15% (quinze por cento) do valor deste precatório serão pagos até o final do exercício seguinte e o restante em parcelas iguais nos cinco exercícios subsequentes, acrescidas de juros de mora e correção monetária, ou mediante acordos diretos, perante Juízos Auxiliares de Conciliação de Precatórios, com redução máxima de 40% (quarenta por cento) do valor do crédito atualizado, desde que em relação ao crédito não penda recurso ou defesa judicial e que sejam observados os requisitos definidos na regulamentação editada pelo ente federado. (Parágrafo acrescido pela Emenda Constitucional nº 94, de 2016)
Por conseguinte, colocar um limite de 100.000 RPV (Requisição de Pequeno Valor) parece razoável, e assim certamente será entendido por todos, inclusive pelas agências de rating, algo em torno de R$ 66 milhões hoje, que significa parcelar cerca de 5% dos precatórios, mantendo intacto o precatório da imensa maioria dos credores, como indica a intenção da Constituição.
Por último, vem o princípio da austeridade fiscal, mais importante a ser preservado e duramente adquirido e implantado no Brasil desde 2016, período histórico no qual se tem conseguido controlar o crescimento real do total de gastos públicos, fundamental para a convivência com taxas nominais e reais de juros baixas, de maneira duradoura, e para o recente crescimento do empreendedorismo, de IPOs e de atividades do gênero.
Nesse sentido, deve-se discutir abertamente com a sociedade e com o mercado financeiro, encarando o problema de frente, se faz sentido o precatório fazer parte do teto dos gastos públicos. Aqui, deixa-se uma pergunta: será que se em 2016 os precatórios representassem R$ 90 bilhões, com o crescimento exponencial que vem apresentando nos últimos cinco anos, teriam entrando na base do teto? Ou teria sido dado a eles o mesmo tratamento que foi dado ao Fundeb ou à capitalização dos estatais?
Vale ressaltar também que os precatórios, assim como os restos a pagar, constituem uma dívida flutuante, mas estes são previsíveis, o Executivo tem controle sob o seu andamento, já os precatórios não, e, por isso, o bom senso a boa tecnicidade indicam que eles não devem fazer parte do teto dos gastos públicos, sob pena de inviabilizar até mesmo o regular funcionamento do ciclo orçamentário (Planejamento, Execução, Controle e Avaliação), que começa com o Planejamento.
Logo, foi um erro colocar o Precatório sob o teto e este erro deve ser corrigido, excluindo-o e recalculando os limites do teto desde 2016, a exemplo do que já foi feito quando se reconheceu o erro de não colocar as despesas do FIES, recalculando-se o limite e seguindo os pressupostos de austeridade fiscal, como proposto no artigo de Pedro Jobim e Leonardo De Paoli: https://www.infomoney.com.br/colunistas/pedro-jobim/precatorios-equacion....
Essa solução de retirar do teto não é casuística, pois mantém o princípio da austeridade fiscal, da segurança jurídica e da simplicidade. Casuístico é enxergar alguma consequência (positiva ou negativa) da solução, e não se algum princípio que rege a regra fiscal do teto foi ferido. Além disso, tal solução tem precedente, pois outras alterações no teto já foram feitas, com aval do Tribunal de Contas da União (TCU), inclusive. Se bem explicada, ela terá o apoio do TCU, pois este é sempre um apoiador das soluções, e não apenas de apontamento dos problemas. O TCU é o melhor parceiro que o Poder Executivo tem, quando a solução é bem explicada e dialogada.
Retirar do teto significa não pagá-lo? Em hipótese alguma. Os precatórios continuarão regularmente nas estatísticas de resultado primário, devendo impactar o resultado primário do próximo ano em 0,2% do PIB, desde que se faça o encontro de contas com os entes subnacionais e com a dívida ativa dos entes privados. A propósito, não faz sentido um subnacional ou um privado ter uma dívida com a União e não pagar, enquanto esta, quando tem dívida, ser obrigada a pagar imediatamente. Logo, um encontro de contas é razoável e prudente.
Enfim, se os princípios da simplicidade, segurança jurídica e austeridade fiscal forem respeitados, entender-se-ão a solução de maneira simples, pois não haverá necessidade de criação de fundo complexo, que pode se tornar ainda mais complexo e desvirtuado no Congresso Nacional, paga-se a todos (não há calote) e mantém-se o atual regime fiscal.
Ademais, se os três princípios citados forem observados, a PEC dos precatórios pode circunscrever-se a alterar o artigo 107, § 6, do Ato de Disposição Constitucionais Transitórias para eliminar os precatórios do teto, recalculando a base como proposto por Jobim & De Paoli, e a fazer duas modificações no artigo 100 da Constituição: i) inserir parágrafo propondo o encontro de contas dos precatórios federais com dívidas ativas dos entes subnacionais e privados; ii) reescrever o § 20, relativo aos grandes precatórios, limitando-os a 100.000 RPV.
Vale mencionar também que, além da simplicidade e do respeito à segurança jurídica e à austeridade fiscal, essa solução parece atender a todos, inclusive aos mais pobres, justamente aqueles que mais sofreram com a pandemia, pois sobre eles recaíram maior inflação e maior desocupação, uma vez que tal solução abre espaço fiscal para reforçar a ajuda social planejada pelo Governo Federal e certamente será um reforço de interesse tanto da oposição quanto da situação.
Por fim, destaque-se que essa solução não inviabiliza que toda a sociedade se movimente para entender e impedir que os precatórios continuem a crescer no ritmo que vem crescendo nos últimos nove anos.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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