Autorreforma do sistema político de 1988
Celso Furtado enxergou esgotamento político de nossa curta experiência democrática no pós-guerra. Agora, esgotamento fiscal é sinal do esgotamento do sistema político (expressão de Rubens Ricupero). Oxalá a história seja diferente e, sem ruptura, sistema consiga se reformar.
No dia 3 de janeiro foi publicado no Valor Econômico a entrevista do embaixador Rubens Ricupero, ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda, além de ter sido secretário geral da Unctad entre 1995 e 2004. Divulgada no início de ano, a entrevista, concedida para a excelente jornalista Maria Cristina Fernandes, passou despercebida.
Ricupero lembrou-nos que, no aniversário dos 200 anos da Independência, teremos eleições, como ocorreu aos 100 anos, em 1922. Destaco o trecho abaixo.
Não excluo que haja momentos conflitivos. Faço até um paralelo. 1922 foi tudo aquilo que sabemos. Semana de Arte Moderna, mas também o início do movimento tenentista que derrubaria o regime criado pela República. O início foi tumultuado. Em março foi eleito Artur Bernardes. Mas até novembro quem governou foi Epitácio Pessoa. E o clima era de contestação, de crise da República Velha. Era um país em estado de sítio. Tinha havido a Revolta do Forte de Copacabana. Oito anos depois houve uma revolução que derrubou o sistema. O regime atual está chegando próximo ao fim. O sistema que foi estabelecido em 1988 com a Constituição está dando sinais de disfuncionalidade e isso se vê num fato: dois impeachments na Nova República. Este é o remédio heroico, feito para não ser usado. Quando começa a ser normatizado é por causa da degradação. A imensa maioria dos congressistas pratica o patrimonialismo e isso vai tornar o sistema inviável. Ou se autorreforma ou será destruído. Não vejo isso com pessimismo, mas não vejo [Arthur] Lira e [Rodrigo] Pacheco capazes de reformar e cortar na própria carne. Eles vão acabar sendo tragados. Se o sistema não se autorreformar vai se autodestruir, como na monarquia, que não conseguiu se autorreformar.
A jornalista insiste: Mas todas as forças não empurram para a conciliação?
Não sei como vai ser, mas sei que será inevitável. É uma lição da história. Um sistema nasce, vive e morre. Só não morre quando se autorreforma. Há sistemas que têm essa capacidade. Sem querer dar a isso um caráter fetichista. Os regimes brasileiros não duram mais do que 40 anos. O primeiro período acaba com a abdicação. O segundo não começa com a maioridade, mas em 1848. Pedro II só governou a partir de 1848. Foi a partir daí que começa o regime oligárquico, que durou 40 anos. A República Velha também. Nossa Nova República já está próxima do esgotamento.
Na visão desta coluna, o primeiro sinal mais claro de esgotamento do sistema estabelecido em 1988 foram as manifestações de 2013. A nossa avaliação à época foi que a demanda dos manifestantes por melhores serviços públicos, principalmente (mas não somente) de mobilidade urbana, era um claro sinal de que o contrato social da redemocratização atingia um limite.
O contrato social da redemocratização – o desejo da sociedade expresso no texto constitucional, e renovado em todas as eleições desde então, de construir no Brasil um estado de bem-estar padrão europeu continental – gerou forte aumento da carga tributária e baixo crescimento da economia. O foco na equidade e nos diversos programas de transferência de renda e seguros sociais reduziu muito a capacidade de investimento do setor público, principalmente em infraestrutura urbana. Os ganhos privados com a melhora das condições de vida e do ambiente doméstico, além do aumento do consumo de bens privados, não foi acompanhado por um avanço na oferta de bens de consumo coletivo.
Somam-se a essa fragilidade de nosso contrato social os gastos excessivos do intervencionismo petista. Seguidas desonerações e gastos com subsídios comprometeram a capacidade fiscal do Estado brasileiro.
O esgotamento da capacidade fiscal do Estado é o sinal mais claro do esgotamento de um sistema político, para empregar a expressão do embaixador Ricupero. Celso Furtado, nosso economista mais influente, em 1962, ainda como superintendente da Sudene (viria a ser nomeado ministro do Planejamento no governo João Goulart ainda sob o Parlamentarismo, em setembro de 1962), escreveu no seu livro A pré-revolução brasileira, cuja primeira edição é de agosto de 1962:
Nada de concreto, no entanto, foi realizado nessa direção. Surgiu, assim, essa óbvia contradição que vivemos nos dias de hoje: exige a opinião pública do Estado o desempenho de importantes funções ligadas ao desenvolvimento econômico e social do país, mas através de seus representantes, no Parlamento, essa mesma opinião pública nega os meios de que necessita o Estado para cumprir tal missão. A consequência prática, conhecemo-la todos: são os déficits do setor público e o seu financiamento com simples emissões de papel moeda.
O fato de que o Parlamento não capacite a administração para coletar os impostos de que necessita e ao mesmo tempo amplie todos os dias os gastos do governo em funções do desenvolvimento, traduz claramente a grande contradição que existe presentemente na vida política nacional.[1]
Furtado enxergou com toda a nitidez o esgotamento político de nossa curta experiência democrática no pós-guerra. Enxergou também que excessos da política de desenvolvimento industrial, além de contribuir para a piora fiscal, agravavam a desigualdade. No mesmo volume de 1962 anotou:
Por outro lado, na ausência de uma política consciente que preservasse à ação do Estado o seu caráter social, improvisou-se, em nome do desenvolvimento, uma estrutura de subsídios que muitas vezes premiou de preferência os investimentos supérfluos, ou aqueles que vinham a permitir, dada a sua tendência monopolista, uma concentração ainda maior da riqueza em mãos de grupos privilegiados. Através de simples doações de capital, os subsídios cambiais e creditícios transferiram para umas poucas mãos grandes riquezas sociais.[2]
Furtado enxergava o golpe militar de 1964 a caminho. A publicação do A pré-revolução brasileira foi um esforço de tentar um diálogo com o sistema político. Em uma outra tentativa, publicaria um texto na prestigiosa revista Foreign Affairs em 1963, apresentando um resumo do conteúdo do livro de 1962.
De lá para cá, o esgotamento no início dos anos 1960 gerou o golpe militar. O esgotamento nos anos 1980 gerou a redemocratização. O caminho adotado pela sociedade e pelos políticos no atual esgotamento do sistema não está claro. Oxalá a história seja diferente e, sem rupturas políticas, o sistema consiga se reformar. Se o próximo presidente conseguir arbitrar um ajuste fiscal e se, em alguns anos, conseguirmos construir um superávit primário estrutural de 2-2,5% do PIB, com inflação na meta, será sinal de que avançamos, mais do que hoje se imagina, aos dois séculos de história independente.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de fevereiro de 2022.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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