MEI, programa com muitos problemas, precisa de reformulação, e não de ampliação
Regime do Microempreendedor Individual, voltado aos informais mais fragilizados pela pouca renda e estudo, tem público com perfil mais rico e educado do que os trabalhadores de carteira assinada. Subsídio do programa é enorme.
O regime do Microempreendedor Individual, o MEI, foi criado em 2008 pela Lei Complementar 128, e começou a funcionar em julho de 2009. Trabalhadores por conta própria, com no máximo um empregado, e receita anual que não exceda R$ 81 mil, podem se tornar MEI, obtendo um Certificado Nacional de Pessoa Jurídica, o CNPJ. A contribuição previdenciária mensal do MEI é de 5% do salário mínimo, o que hoje equivale a R$ 66. Se forem adicionados os impostos em regime especial cobrados do MEI (ICMS e outros), o custo mensal sobe para cerca de R$ 71.
Com essa contribuição, os participantes do MEI ganham direito a se aposentar (pelas mesmas regras do INSS) com um salário mínimo, com acesso também a todos os outros benefícios da Previdência, como auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e salário maternidade. Com o CNPJ, abrem-se também para o MEI as vantagens das empresas formais, como acesso ao crédito, ao sistema judicial, a contratos com o governo etc.
Pela simples observação da baixa contribuição do MEI relativamente aos benefícios, já é possível perceber que o programa é pesadamente subsidiado e implica grande déficit atuarial, o que será detalhado na parte final desta Carta.
Os números de adesão ao MEI são impressionantes. Começando em 2009 com a inclusão de 44,2 mil participantes, em 2012 os ingressantes anuais no programa já ultrapassavam 1 milhão. Nos últimos quatro anos (2019-2022), a média de adesão por ano foi de 1,77 milhão. Nos dois anos da pandemia (2020-21), que afetou particularmente os informais, a média foi de 1,93 milhão.
Com esse ritmo de expansão, o MEI conta hoje, segundo os registros administrativos do governo, com 14,8 milhões de participantes (dado de 2022), cerca de 15% da população ocupada (PO) no Brasil. Mas aqui surge um primeiro fato inquietante sobre o MEI. Tomando-se dados de 2021, apenas 5,02 milhões em 13,3 milhões de inscritos no MEI, ou 37,8%, estavam adimplentes com a contribuição ao INSS. Ainda não há o dado administrativo de 2022 dos MEI que contribuem. É difícil explicar com algum grau de confiança o porquê dessa enorme inadimplência, embora haja algumas hipóteses, cuja investigação é relevante, mas não constitui o objetivo desta Carta.
Nosso foco são os 5 milhões de inscritos no MEI que efetivamente contribuem, e que se inserem no grupo de 25,7 milhões de trabalhadores por conta própria. Os dados são do terceiro trimestre de 2022 (nesse caso, o número dos MEI que contribuem veio de uma proxy utilizando a PNADC, como será explicado adiante, e não dos dados administrativos). Assim, os MEI adimplentes correspondiam nesse período a 5,1% da PO, e os conta própria como um todo, a 25,7%. Em relação ao universo dos contribuintes do INSS, os MEI (que contribuem, claro) correspondem a 9,3%.
Os MEI adimplentes com a Previdência são um grupo que com certeza se habilita a uma aposentadoria de um salário mínimo e aos demais benefícios do INSS. Em tese, seriam majoritariamente o segmento da população que sobrevive de trabalhos por conta própria na informalidade, normalmente com renda baixa e provido de escolaridade deficiente.
No entanto, pesquisa recente conduzida no FGV IBRE por pesquisadores voltados ao mercado de trabalho, com destaque para os economistas Fernando Veloso e Fernando de Holanda Barbosa Filho, revela que o perfil dos trabalhadores no regime MEI possivelmente é muito diferente daquele grupo fragilizado para o qual o programa foi desenhado.
Como os dados administrativos oficiais do MEI são muito incompletos em termos de detalhamento socioeconômico, Veloso e Barbosa Filho recorreram à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC). Um grande problema, porém, é que o questionário da PNADC não possui uma pergunta específica sobre se o respondente é MEI. Assim, seguindo metodologia similar à utilizada em trabalhos de Rogério Nagamine, talvez o maior especialista em MEI do país, o estudo do FGV IBRE não investiga o universo dos participantes do MEI precisamente, mas sim uma “proxy” (aproximação), que se pode obter por meio da PNADC.
Para efeitos dessa pesquisa do IBRE, o grupo de trabalhadores que têm CNPJ, trabalha por conta própria e contribui para a Previdência foi considerado como uma proxy do universo dos participantes do MEI adimplentes com o INSS.
Veloso ressalva que essa aproximação tem limitações, claro, como o fato de que há trabalhadores por conta própria “pejotizados”, que contribuem para a Previdência e não são MEI, como ocorre, por exemplo, com um contingente de profissionais liberais que abriram empresas unipessoais. Ainda assim, continua o pesquisador, o número de pessoas da proxy do MEI a partir da PNADC, de cerca de 5 milhões, coincide com o número oficial, no registro administrativo do governo, dos MEI que contribuem, um sinal de que a aproximação é razoável e pode ser utilizada para comparações, compreendida a ressalva.
Um primeiro dado que chama a atenção na proxy do MEI é que, ao contrário do que se esperaria de um regime voltado para trabalhadores por conta própria que antes estavam na informalidade, a proporção de pessoas com ensino superior completo é de 31,3%, muito maior do que a dos conta própria como um todo, de 15,7%; a dos trabalhadores sem carteira empregados, de 12,7%; e a dos empregados com carteira, de 22,4%. Os números a seguir referentes ao grupo dos conta própria como um todo sempre incluem os MEI (proxy).
Quando se toma a base da pirâmide educacional, reunindo as pessoas sem instrução nenhuma ou com fundamental incompleto, a proporção na proxy do MEI é de 13,4%, muito próxima da proporção do mesmo público entre os empregados com carteira. Nos segmentos mais vulneráveis dos conta própria como um todo e dos empregados sem carteira, a mesma proporção sobe para, respectivamente, 31% e 27,9%.
Quando se foca o rendimento do trabalho, a discrepância entre o perfil da proxy do MEI e o público teoricamente vulnerável para o qual o programa foi implantado se torna ainda mais chocante. Uma parcela majoritária de 56,4% do público da proxy do MEI ganhava mais do que dois salários mínimos no terceiro trimestre de 2022. Isso se compara a 32,1% para os empregados com carteira; 15,6% para empregados sem carteira; e 27,6% para os conta própria como um todo.
A distribuição regional reforça essa percepção, com o MEI sendo proporcionalmente a categoria mais concentrada nas regiões mais ricas do Sul e Sudeste e com menor proporção nas regiões mais pobres do Norte e Nordeste.
A outra parte do trabalho de Veloso e Barbosa Filho foi sobre o subsídio do MEI. Simulações foram feitas com a hipótese de que os participantes do programa começam a contribuir (os que o fazem, claro) aos 39 anos, a partir de estimativa média de Nagamine baseada nos dados administrativos. Em seguida, supôs-se um participante do MEI do sexo masculino que se aposenta aos 65 anos, com sobrevida segundo as tábuas de sobrevida mais atualizadas do IBGE. A simulação do subsídio com os MEI é conservadora, pois incluiu apenas a aposentadoria, e não qualquer outro benefício do INSS a que têm direito. Consideraram-se cenários com juro real de 3%, 4% e 5% para trazer os fluxos futuros de desembolsos e contribuições a valor presente.
O custo fiscal do programa – isto é, o quanto os benefícios ultrapassam as contribuições, ou o subsídio – é de 86,5% do valor presente dos benefícios, com taxa de juros real de 3%; de 83,2%, com 4%; e de 79,1%, com 5%. Para zerar esses subsídios, seria preciso aumentar a contribuição atual de 5% do salário mínimo para 37%, com taxa de juro real de 3%; para 29,7%, com 4%; e para 23,9%, com 5%.
Como se vê, trata-se de um subsídio maciço e um grande custo fiscal que se joga para as próximas gerações, em relação a um programa que tem todos os indícios de focalizar muito mal o seu público pretendido, dos conta própria informais e vulneráveis, e de transferir esses recursos públicos em grande parte para pessoas na parcela mais alta da pirâmide educacional e de renda do Brasil.
Os pesquisadores do FGV IBRE notam que o MEI foi avaliado no ano passado no âmbito do Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP), do governo federal, com conclusões não muito diferentes das relatadas nesta Carta.
Na prática, porém, todo esse diagnóstico parece não estar tendo efeitos políticos, pelo contrário. O substitutivo de um projeto em tramitação no Congresso (PLP 108/2021) amplia o limite de faturamento do MEI dos atuais 81 mil para 144,9 mil, que passam a ser corrigidos anualmente pelo IPCA, e ainda inclui a possibilidade de que o MEI tenha dois empregados. O mesmo projeto amplia o limite de enquadramento no Simples de R$ 4,8 milhões para 8,7 milhões.
Num momento histórico que combina fragilidade estrutural das contas públicas e urgência de apoio do governo à população mais vulnerável, o uso eficiente de recursos públicos torna-se mais essencial do que nunca. Nesse sentido, a discussão correta não é sobre a ampliação do MEI, um programa bem-intencionado, porém crivado de problemas, mas sim sobre o seu reexame e reformulação.
Esta é a Carta do IBRE de fevereiro/2023, da Conjuntura Econômica.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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