A natureza dual do mandato de Lula
Oscilação entre defesa da democracia e da economia popular deve marcar Lula III. Amplitude e frequência das oscilações dependerão de fatores como popularidade, apoio legislativo e capacidade disruptiva da extrema direita.
Em 2022, pela primeira vez na história brasileira, disputaram a chefia do Poder Executivo federal o titular do cargo e um ex-presidente da República. Foi uma disputa entre o legado de cada um. Apesar da relevância da questão democrática durante a campanha, sobretudo no segundo turno, Lula venceu por conta da percepção de que era o mais capaz de enfrentar os problemas socioeconômicos que afligem os mais vulneráveis. O legado positivo de combate à pobreza que Lula deixara em seus dois primeiros mandatos foi decisivo para a vitória. A incompetência de Bolsonaro no combate à pandemia e seu descaso com as políticas públicas vitais para o bem-estar da população de baixa renda cobraram-lhe um preço alto. Portanto, o mandato de Lula III oscilará entre dois eixos: melhorar a vida do eleitorado pobre e defender a democracia.
A defesa da democracia começou com a formação da chapa Lula-Alckmin em dezembro de 2021, foi se expandindo ao longo do primeiro semestre do ano seguinte, vindo a consolidar-se no segundo turno da disputa presidencial. Assim que Lula venceu a corrida ao Planalto em 30 de outubro de 2022, outro aspecto marcante da defesa da democracia emergiu. Tratou-se da formação de uma ampla aliança diplomática de enfático apoio à vitória de Lula e à integridade do processo eleitoral brasileiro, aliança que incluiu, entre vários outros países, Estados Unidos, Argentina, Portugal, Espanha, Alemanha, França e México. Pela primeira vez desde janeiro de 1985, isto é, quando Tancredo Neves fora eleito presidente da República pelo Colégio Eleitoral, encerrando o regime militar, a constituição de um novo governo brasileiro precisou de sustentação internacional, sinal claro de o quanto o mundo estava ciente da extensão da ameaça bolsonarista à democracia.
Sobreveio, então, a fracassada tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. A intentona bolsonarista fortaleceu tanto o respaldo nacional quanto o internacional à defesa da democracia. Além disso, o esforço de reversão do desmonte do Estado promovido por Bolsonaro consumiu boa parte da energia despendida pelo novo governo em seus três primeiros meses. O que, como mostrou o jornalista Daniel Haidar, fica claro a partir de uma pesquisa acadêmica: “Nunca antes um presidente da República teve de concentrar tantos esforços em revogar atos de seu antecessor. É o que revela um levantamento feito para a coluna pelo grupo PEX—Network da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenado pela professora Magna Inácio. Dos 136 decretos presidenciais editados por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) até agora, 83 buscaram revogar atos de Jair Bolsonaro (PL). O criticado ‘desmonte’ do Estado brasileiro não deu menos trabalho. Lula precisou editar 40 decretos para reestruturar órgãos, cargos e funções, ainda de acordo com o levantamento”.[1]
Convém destacar que o desmantelamento do Estado empreendido pelo governo anterior não tinha a ver apenas com uma suposta política liberal de redução da burocracia federal. Era também componente fundamental de um projeto de erosão das bases administrativas e organizacionais do Estado de Direito. Portanto, a revogação dos atos de Bolsonaro encaixa-se na defesa da democracia.
[1] Ver Daniel Haidar, “Em 3 meses, Lula editou 83 decretos para revogar atos de Bolsonaro”, Terra, 31/03/2023, disponível em https://www.terra.com.br/noticias/daniel-haidar/em-3-meses-lula-editou-83-decretos-para-revogar-atos-de-bolsonaro,6843213fe90c9e55114bd94583a4402e06wjtnah.html.
Leia aqui o artigo completo na versão digital do Boletim Macro de abril/2023.
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