A perigosa complacência com Lula 3
A despeito da propalada proteção que o congresso (e outras instituições de veto) representa frente aos arroubos populistas que Lula 3 quer impor aos cidadãos do nosso país, a sociedade brasileira já “tomou vários gols”.
Desde a reeleição de Lula para seu terceiro mandato, tenho acompanhado atentamente o desempenho do presidente Lula (eleito, à época, e em exercício, atualmente). As colunas que escrevi para o Broadcast neste período são um registro do que eu observei com grande preocupação e perplexidade. Vai passando o tempo e vai ficando claro aquilo com que agora uma grande maioria de analistas concorda: Lula 3 não tem como propósito fazer um governo de coalizão. Nosso presidente tem por objetivo impor ao país uma agenda ultrapassada de uma esquerda que ficou na década de 70. Esta esquerda é minoritária no congresso, que tem parlamentares que representam de maneira muito mais fidedigna os anseios da população. Esta maioria folgada da direita no congresso tem sido muito importante para barrar os retrocessos que o governo tem proposto. Já notamos aqui neste espaço do Broadcast alguns subterfúgios que Lula 3 empregou para driblar a divisão de poderes como o uso de decretos para modificar leis e de jabutis para aprovar matérias que são contrárias ao sentimento da maioria do legislativo. Também notamos que, quando aplicável, os outros poderes da república estão reagindo. De uma certa forma, esta blindagem institucional tem dado alento a uma visão complacente das pessoas que estão preocupadas com o bem-estar da população brasileira. Pode-se resumir a visão complacente assim: afinal, o que importa que Lula 3 seja retrógrado e não esteja governando de acordo com a frente ampla que o elegeu, já que o congresso e as outras instituições de controle da nação vão coibir seus excessos? Cabe lembrar um fato muitas vezes esquecido – bastaria que 0,9% dos eleitores tivessem trocado seu voto de Lula para Bolsonaro para que Lula perdesse a eleição, percentual este que é muito inferior ao total de votos que Simone Tebet teve no primeiro turno (4,2%).
Os acontecimentos recentes indicam que esta complacência pode levar a um falso sentimento de segurança, e diminuir a pressão para que o governo venha a seguir seu caminho de respeito às intenções da população brasileira – o Brasil é majoritariamente de direita e rejeita as ideias retrógradas defendidas pelo PT e pela esquerda de nosso país. Aliás, por ocasião do aniversário de 10 anos das manifestações de 2013, ficou claro que estas foram um marco que deu um basta na visão petista de mundo – a população brasileira quer mais retorno aos impostos que paga. Quer serviços públicos de qualidade, não importa se fornecidos pelo governo ou pelo setor privado.
Há ainda muita incerteza no ar em relação ao bom funcionamento das instituições de veto, que são a base dos pesos e contrapesos das democracias modernas. Com efeito, a despeito da propalada proteção que o congresso (e outras instituições de veto) representa frente aos arroubos populistas que Lula 3 quer impor aos cidadãos do nosso país, a sociedade brasileira já “tomou vários gols”.
Primeiro, as MP’s 1139 e 1147 que incluíam jabutis que permitiram que o FNDCT e o FAT fossem corrigidos pela TR ao invés da TLP foram aprovadas no congresso. Como resultado disto, começam-se a reintroduzir no Brasil os subsídios parafiscais que tanto mal causaram. Isto mostra o óbvio: quando um artigo que nada tem a ver com o texto de uma lei ou medida provisória é incluído, muitas vezes (como foi o caso nas duas MP’s) não há tempo hábil para que ocorra uma discussão mais detalhada das consequências. Como resultado, o lobby feito no congresso é sempre favorável aos jabutis. Apenas aquelas pessoas que já sabem, apoiam e patrocinam a inclusão do artigo no texto da MP pressionam os parlamentares, não sendo possível o contraditório.
Segundo, surpreendentemente o senado tem-se mostrado um aliado das pretensões de Lula 3. Nota-se que o presidente do senado, com o objetivo de mostrar “moderação”, adiou decisões muito relevantes que impactam sobremaneira a vida dos brasileiros. Duas são muito relevantes: o marco do saneamento e o marco temporal. O decreto legislativo que acaba com as consequências mais nefastas dos decretos presidenciais que alteram o marco do saneamento foi deixado para ser decidido com lentidão. Ora os decretos presidenciais ainda estão em vigor, e alteram fundamentalmente o marco do saneamento aprovado no congresso. É muito negativo para os investimentos de longo prazo que esperamos para o setor. E esperar o judiciário decidir só fará com que a estratégia de Lula 3 mostre-se acertada – usar de subterfúgios para passar por cima do ordenamento legal do país, mesmo que temporariamente. Vai inclusive incentivar o uso desta estratégia de alteração de leis sem precisar da aprovação do congresso. Já o marco temporal da demarcação de terras indígenas é uma medida que é positiva e teve ampla maioria na câmara. A discussão sobre este assunto tem sido muito ideologizada, e a ampla maioria da câmara mostra que estes argumentos são pouco convincentes. Hoje temos (portal da Fundação Nacional dos Povo Indígenas) 13,8% do território brasileiro que é formado por reservas indígenas, quando a população total destes é (Agência Brasil – dados preliminares censo 2022) 0,8% do total dos habitantes de nosso país. E a discussão verdadeira, que é como podemos assegurar que as reservas existentes sejam protegidas de invasão e que não tenhamos mais os problemas de morte por desnutrição e doenças que estão sendo observados na população yanomami de Roraima, não é feita. Repete-se o que vem acontecendo desde a constituição de 1988: criam-se reservas, que muitas das vezes ficam apenas “no papel”. A propósito, o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) de 1988 diz: “Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Então, estabelecer alguma data de corte não só é relevante para assegurar que não haja mais incerteza legal à propriedade privada, como também foi expressamente deixado claro no próprio texto constitucional que instituiu a demarcação. Pode ser que o texto que chegou da câmara no senado possa ser aperfeiçoado, mas no momento o movimento no senado foi “deixar para mais tarde” algo que já faz tempo deveria ter sido resolvido (pelo art. 67 do ADCT desde 1993!). Outro péssimo exemplo.
Terceiro, um outro exemplo de complacência perigosa está no arcabouço fiscal. O teto de gastos vai ser abolido, e em seu lugar vamos aprovar uma regra de difícil aplicação e que tem sido demonstrado que será de difícil implantação, a não ser que haja muito aumento da arrecadação. Retira-se a criminalização da falta de responsabilidade fiscal, um poderoso instrumento que pode levar ao impeachment do presidente em caso de descumprimento. Claramente o arcabouço é melhor que a ausência de teto e regras, mas é obviamente uma regra frágil.
Em suma, a sociedade brasileira, majoritariamente de direita, está-se acostumando com a ideia propalada que as instituições nacionais vão evitar retrocessos desejados pela esquerda antiquada de nosso país, que representa a minoria dos eleitores. Infelizmente, isto é uma verdade apenas parcial, como os exemplos acima constatam. Há vários outros exemplos, como a aplicação da lei das estatais, e das diversas agências do governo (ex: Apex). Note-se apenas que a atuação do senado como um contrapeso do poder executivo merece muita atenção. A complacência é perigosa. Já houve importantes retrocessos e mais podem vir a acontecer.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 12/06/2023, terça-feira.
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