O trilema da Reforma Tributária e a solução “à brasileira”
Tramitação da Reforma Tributária criou um trilema (ou seja, uma tríade impossível) entre o limite superior à alíquota do IVA, a manutenção do nível de arrecadação (alíquota-neutra) e o número de exceções à alíquota-base.
O Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024, que regulamenta a reforma da tributação do consumo, foi aprovado na Câmara, indo agora à sanção presidencial[1]. O processo de aprovação da Reforma Tributária possui múltiplas fases, tanto jurídicas quanto operacionais. Mais um estágio foi vencido, mas ainda restam dúvidas e incertezas importantes – e isso nem sempre é reconhecido pelos agentes econômicos.
Desde a aprovação da etapa constitucional da reforma tributária (PEC 45/2019), em 2023, havia a preocupação de que, na etapa de regulamentação, ocorresse uma “passagem de boiada”. Ou seja, essa etapa poderia ser marcada por elevadas concessões a interesses setoriais específicos, por um aumento expressivo da lista de exceções à alíquota-padrão e por uma redução do número de produtos sujeitos ao imposto seletivo. A potência da reforma seria reduzida, com uma menor simplificação do regime tributário brasileiro (ainda que com avanços frente ao regime atual), e acabaríamos com uma alíquota-padrão bastante elevada.
A margem para novas exceções era muito reduzida – ou seria necessário pagar o “custo reputacional” de se ter a maior alíquota-base do mundo. Uma alíquota geral de 27% já se apresentava, junto à opinião pública, como um limite informal para a alíquota do novo imposto unificado, igualando o cobrado na Hungria (país com o maior IVA do mundo). No entanto, as estimativas oficiais de alíquota neutra (do ponto de vista arrecadatório) já se aproximavam desse limite informal, mesmo incorporando ganhos de eficiência no sistema tributário que são de magnitude, no mínimo, disputável[2].
Não houve uma “passagem de boiada”, mas alterações no texto do PLP 68/2024, durante a sua tramitação congressual, elevaram a estimativa de alíquota neutra. A versão original do texto implicava em alíquota geral de 26,5%, segundo estimativas do Ministério da Fazenda[3]. Para a primeira aprovação do texto na Câmara (10/07/24), os deputados fizeram diversas alterações no PLP, com destaque para: (i) a inclusão de carnes e queijos na cesta básica; (ii) o redesenho do regime específico de bens imóveis; (iii) a concessão de crédito na compra de imunidades (livros e jornais, por exemplo); e (iv) o aumento da lista de medicamentos com alíquota reduzida. Nessa primeira rodada da tramitação congressual, a alíquota estimada subiu 1,47p.p., de acordo com o Ministério da Fazenda[4]. Na segunda fase da tramitação (12/12/24), o Senado modificou adicionalmente o texto, sendo a principal mudança a inclusão do setor de saneamento na alíquota reduzida por 60% (ou seja, o setor pagaria somente 40% da alíquota-padrão). Houve também: (i) remoção de armas, munições e bebidas açucaradas do imposto seletivo; (ii) aumento dos descontos na tributação de alguns medicamentos, fraldas e outros produtos, além de revisão da composição da cesta básica; (iii) criação de cashback para internet e telefonia; e (iv) mudanças na tributação sobre o setor imobiliário, incluindo aluguéis. As alterações do Senado elevaram a alíquota estimada em mais 0,58 p.p., atingindo 28,55% de acordo com projeções preliminares[5]. Por fim, na última rodada de tramitação (17/12/24), a Câmara dos Deputados acatou boa parte das alterações propostas pelo Senado, mas reverteu o desconto de 60% para o setor de saneamento e a remoção de bebidas açucaradas do imposto seletivo. Segundo estimativas do Congresso, a alíquota neutra do IVA brasileiro seria de 27,84% - “oficialmente”, portanto, a maior do mundo
Note-se que o projeto de lei conta com uma trava para a alíquota-base, em 26,5% - abaixo das estimativas finais para a alíquota neutra. O PLP incorpora um mecanismo de avaliação quinquenal da alíquota do IVA, sendo a primeira com base nos dados de 2026 a 2030, implicando em eventuais mudanças a partir do ano-calendário de 2032. Se a alíquota que evita perda de arrecadação for superior a 26,5%, o Poder Executivo deverá apresentar um projeto de lei complementar com medidas que assegurem o cumprimento desse limite, calibrando o IVA antes da extinção do regime tributário atual[6] (o que ocorrerá em 2033).
Será necessário rediscutir as exceções e os descontos à alíquota-base, mantendo o debate tributário em ebulição por longo período. O dispositivo de avaliação e calibragem, importante para a suavização da transição entre os sistemas tributários e para o ajuste fino do IVA, parece estar sendo empregado de forma distorcida pelo Congresso, adiando decisões importantes para o novo sistema tributário brasileiro. Assim, a incerteza tributária (fiscal) seguirá elevada, atrapalhando o planejamento dos agentes econômicos, tanto governamentais (todos os níveis da Federação) como privados (empresas e consumidores).
Da forma como está desenhada, a Reforma Tributária implica em um trilema[7] – fato que não nos parece estar claro para a sociedade. Não há possibilidade de termos, ao mesmo tempo, (i) a garantia de neutralidade arrecadatória; (ii) a patamar de concessões à alíquota-padrão aprovado na Reforma Tributária; e (iii) o limite superior à alíquota-padrão, que faz parte do instrumento jurídico da Reforma. Com base na melhor informação hoje disponível, um desses vértices “precisa cair”.
Frente ao Trilema da Reforma Tributária, o Congresso buscou uma solução “à brasileira”. Com uma discrepância de aproximadamente 1,3p.p. entre a alíquota máxima e a alíquota-neutra (estimada pelos próprios congressistas), o Congresso escolheu empurrar o problema com a barriga, “torcendo” para que as estimativas feitas, com a melhor informação hoje disponível, estejam superestimando a alíquota do IVA. O novo regime tributário ainda nem nasceu, e já é marcado por uma incerteza seminal.
Ao não atacar questões primordiais, o Congresso aumenta a incerteza tributária – com repercussões na política fiscal e no planejamento econômico. Com base na melhor informação disponível atualmente, é provável que no início da próxima década o Congresso precise revisar, de um ano para o outro, as exceções à alíquota geral, ou, de forma alternativa, abolir o limite à alíquota do IVA. Em termos práticos, decisões que poderiam ser tomadas com calma e planejamentos provavelmente serão feitas de forma açodada, ficando sujeitas à captura de grupos de interesse específicos. O planejamento tributário e fiscal da sociedade será prejudicado, indo em direção oposta aos ganhos de eficiência e à redução dos custos acessórios que estão na raiz da simplificação do regime tributário brasileiro.
O texto final do PLP 68/24 ainda não indica como a nova tributação do consumo ficará de pé. São inúmeros os ajustes necessários para tornar o novo regime tributário crível (seja em termos jurídicos, seja em termos operacionais), e as perspectivas de solução desses desafios são, no mínimo, incertas. O estabelecimento do novo IVA trará benefícios importantes em termos de simplicidade e eficiência tributária, mas até a estabilização do novo regime, teremos uma fonte de incerteza adicional a afetar as finanças públicas e as decisões de investimento e consumo dos agentes econômicos.
Em 2025, o debate sobre a Reforma Tributária continuará gerando conflitos. O principal destaque é o Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, enviado ao Senado após aprovação inicial na Câmara. Durante a tramitação, propostas como a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Sucessão (ITCMD) sobre planos de previdência privada (PGBL e VGBL) e a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) foram descartadas. Embora essas propostas não tenham avançado, indicam que o texto pode incluir mudanças significativas na tributação sobre patrimônio, o que pode gerar conflitos entre governo e (ao menos parte dos) contribuintes.
Ainda temos batalhas nas partes operacional e administrativa da Reforma Tributária. O PLP 108/2024 também aborda o processo administrativo tributário do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que substituirá o ICMS e o ISS nos estados e municípios. Essa fase envolve a conciliação de regulamentações e processos administrativos de milhares de municípios e dezenas de estados, além da criação de um comitê gestor para a repartição dos fundos. A posição dos entes federativos em relação à transição para o novo regime tributário tende a ser bastante heterogênea, mesmo que etapas anteriores da Reforma tenham estabelecido formas de compensação por potenciais perdas de arrecadação e autonomia tributária. Diferenças ainda não totalmente pacificadas podem implicar em ajustes que reduzam, ainda mais, os ganhos de eficiência esperados com o novo regime tributário brasileiro.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Esse artigo foi originalmente publicado como Destaque BRCG. Disponível em www.brcg.com.br
[2] Números do governo já contavam com grande redução do hiato de conformidade (impacto de evasão, elisão, contencioso e inadimplência sobre a arrecadação).
[3] Ver: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/regulamentacao-da-reforma-tributaria/lei-geral-do-ibs-da-cbs-e-do-imposto-seletivo/notas/nota-tecnica-aliquotas_2024-07-01_sertmf-1.pdf
[4] Estimativa média que consta nesta nota técnica: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/central-de-conteudo/publicacoes/notas-informativas/2024/agosto/nota-tecnica-aliquotas-sertmf.pdf/view
[5] As estimativas preliminares de alíquota geral após mudanças no Senado e após a revisão na Câmara foram divulgadas pelo relator do PLP 68/24 na Câmara, deputado Reginaldo Lopes: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-12/camara-rejeita-mudancas-do-senado-e-aprova-reforma-tributaria
[6] Com a cobrança de ICMS, ISS, PIS, COFINS, IPI e afins
[7] Em economia, o termo é utilizado para descrever a impossibilidade de que três coisas ocorram ao mesmo tempo – ou seja, uma tríade impossível.
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