Humor externo melhora, mas fundamentos domésticos preocupam

Ainda que, em princípio, menor risco de recessão global e, em geral, melhora do humor nos mercados sejam positivos para emergentes, é preciso cautela na avaliação do cenário externo e de suas consequências para o Brasil.
As últimas semanas foram marcadas por uma forte tensão entre China e EUA, desencadeada pela imposição de tarifas comerciais extremamente elevadas sobre as importações de produtos chineses pelos EUA. Com a retaliação pelo país asiático, a guerra comercial se acirrou. Como foi um evento sem precedentes, e com desdobramentos relevantes sobre as respectivas economias, os efeitos sobre os mercados foram igualmente fortes. Em 2024, o comércio de mercadorias entre os dois países somou cerca de US$ 585 bilhões. Os EUA importaram muito mais da China (US$ 440 bilhões) do que os chineses dos americanos (US$ 145 bilhões). Tarifas muito elevadas praticamente inviabilizariam o comércio bilateral, funcionando, na prática, como um embargo, como colocado pelo Secretário do Tesouro dos EUA. Um desdobramento adicional dessa guerra comercial e das incertezas em geral que marcaram esse período foi a forte desvalorização do dólar frente às moedas de países desenvolvidos, como também um aumento expressivo dos juros de 10 anos, com a venda de títulos americanos, para o que também contribuiu a perspectiva de uma piora adicional no déficit público dos EUA.
Mas, após muita tensão, foi anunciado, no dia 12 de maio, uma trégua de 90 dias na cobrança das tarifas “recíprocas”. Durante esse período, as tarifas dos EUA sobre as importações chinesas ficarão reduzidas de 145% para 30% e as da China sobre os produtos americanos de 125% para 10%. Mas os 30% de tarifas estão relacionados a 10% de tarifas recíprocas e 20% em função das exportações do fentanil [opioide], que pode cair, caso se entenda que a China fez progressos em conter o comércio desses produtos para os EUA. O efeito sobre os mercados foi imediato, com uma melhora expressiva no humor.
O recuo dos EUA gerou a expectativa de poder haver uma convergência para uma tarifa de 10% na maioria dos produtos, nos moldes do que o país acordou com o Reino Unido. Ainda é cedo para comemorar, mas com certeza as expectativas sobre inflação, possível recessão e sobre os juros nos EUA estão sendo revisadas. No contexto atual é bem mais provável que o banco central americano seja bem cauteloso e paciente antes de começar a cortar os juros. De fato, o mercado reduziu a previsão de cortes de juros neste ano, com alguns participantes não vendo espaço para cortes em 2025, pois a inflação segue acima da meta de 2%, apesar de os dados mais recentes de inflação ainda não terem refletido os efeitos das tarifas, o que se espera que venha ocorrer apenas a partir do próximo mês.
Ainda que, em princípio, o menor risco de uma recessão global e, em geral, a melhora do humor nos mercados sejam positivos para os emergentes, é necessária certa cautela sobre a avaliação do cenário externo e de suas consequências para o Brasil.
Em primeiro lugar, a reversão parcial das tarifas contribui para uma menor desaceleração da atividade, mas, mesmo assim, essas seguem tendo efeitos sobre a inflação, além de pressionar negativamente a renda real disponível e, consequentemente, o consumo das famílias. O investimento também deve sofrer diante do forte aumento da incerteza econômica, mesmo levando em conta que o impacto das tarifas se dá predominantemente sobre bens, enquanto a economia americana é relativamente concentrada nos serviços. Menor crescimento nos EUA e no mundo, por sua vez, afetam negativamente os preços de commodities.
Em segundo lugar, o dólar pode voltar a se valorizar frente às moedas de países desenvolvidos, com a postergação do ciclo de redução de juros nos EUA devendo contribuir para este movimento. Verdade que são vários os fatores impactando o dólar neste momento, mas o que se observa é que, em contraste com o padrão histórico, desta vez a redução do risco global tem ajudado a valorizar a moeda americana.
Além disso, o que será negociado entre EUA e China? Provavelmente os EUA vão demandar mais importação chinesa de produtos americanos. Em 2024, o principal produto exportado dos EUA para a China foi a soja — usada principalmente para alimentar os cerca de 440 milhões de porcos do país. Segundo Otaviano Canuto, “a promessa de compra de produtos agrícolas, como teve na primeira fase do acordo que foi oficializado no final do primeiro governo do Trump, mas foi interrompido pela pandemia e, depois, o Trump não se reelegeu. Tinha lá uma cláusula de voltar a comprar produtos agrícolas norte-americanos, o que foi um bônus para as nossas exportações agrícolas.”[1] De fato, o não avanço de acordos comerciais entre EUA e China beneficiou o Brasil e, hoje, cerca de dois terços de toda soja produzida no país vai para a China. Com relação ao mercado chinês, Brasil e EUA são países competidores: por isso, os desdobramentos do acordo comercial podem ser desfavoráveis para nós.
E, por fim, se de fato os EUA reduzirem a demanda por produtos chineses, para onde o excedente assim gerado será escoado? Estudo recente do Itaú-BBA mostra que há uma elevada semelhança entre as pautas de importação do Brasil e dos Estados Unidos de produtos chineses: “os dez principais produtos importados pelo Brasil da China – que concentram cerca de 80% do total –representam aproximadamente 65% das importações dos Estados Unidos provenientes do mesmo país. [2]
Por um lado, o aumento da participação da China nas importações brasileiras, bem como o recuo dos preços de commodities em dólares, atenuam a inflação doméstica. Pelo menos no curto prazo, não há expectativa de depreciação do real significativa. A previsão é uma moderada depreciação do real até o final deste ano, atingindo R$/US$ 5,80. Nesse contexto, a pressão deflacionária é dominante. Mas, por outro lado, podemos ter efeitos negativos sobre atividade e a arrecadação do governo. Concomitantemente, o próprio setor industrial pode demandar políticas protecionistas para se contrapor ao redirecionamento da exportação chinesa para o Brasil.
Como mencionamos em nossa edição do Boletim de abril, sabemos como guerras comerciais começam, mas é muito difícil prever como elas terminarão. Ainda teremos muitas rodadas e reações na maioria dos países. O resultado final é ainda muito incerto.
Sem dúvida, a piora do cenário internacional também ajudou a deixar as nossas fragilidades estruturais de fora do debate econômico, pelo menos temporariamente. Mas elas nem por isso desapareceram. O desafio fiscal segue significativo, com uma projeção de resultado primário do Governo Central de -0,6% do PIB em 2025. Diante da expectativa de receitas menores, pela queda nos preços de petróleo, seria necessário que o governo anunciasse medidas de contenção de despesas. As receitas ainda têm mostrado bom resultado, mas devem desacelerar ao longo do ano, e há despesas subestimadas. As medidas que devem ser anunciadas devem ser mais paliativas, ou seja, uma estratégia de postergar medidas estruturais apenas para 2027.
E há muitos desafios à frente. Entre eles temos os gastos com precatórios, que têm subido constantemente há alguns anos, e, como é uma despesa obrigatória, comprime as discricionárias, como investimentos e custeio. Além disso, 2026 é o último ano no qual o Executivo poderá contar com a decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a exclusão de parte relevante dos gastos com as sentenças judiciais dos limites de gasto e da meta de resultado primário. A partir de 2027 tudo deverá ser contabilizado dentro do orçamento. E como vai caber no orçamento público?
Concomitantemente, diante da baixa popularidade e da aproximação da eleição do ano que vem, o governo tem indicado uma série de medidas para estimular a economia, principalmente o consumo das famílias, o que deve contribuir para uma desaceleração mais modesta da economia, mas vai dificultar um recuo da inflação e complicar ainda mais o quadro fiscal. Ou seja, os juros reais devem permanecer em um patamar muito elevado por um período prolongado.
Este é o Sumário do Boletim Macro FGV IBRE de abril de 2025.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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