Recessão democrática: resposta a Samuel e Marcos
Em artigo de abril de 2018 na revista Piauí, sustentei, entre outras coisas, que:
- Não há evidência de viés sistemático da força-tarefa da Lava Jato contra a esquerda. Procuradores, juízes, a PF, a PGR, todos parecem ter se esforçado para ir atrás de corruptos dos dois lados.
- Mas é evidente que a direita conseguiu resistir muito melhor à ofensiva. A Lava Jato colecionou fracassos desde o impeachment. Entre as mudanças evidentes de regra ocorridas após a queda da esquerda, o artigo destaca as seguintes:
“Na verdade, o Brasil teve outra Constituição em 2015-2016, e ela foi revogada após o impeachment. Em 2015, delações eram provas suficientes para derrubar políticos e encerrar carreiras. Em 2017, deixaram de ser. Em 2016, era proibido nomear ministros para lhes dar foro privilegiado; em 2017 deixou de ser. Em 2016, os juízes eram vistos como salvadores da pátria, em 2017 viraram “os caras que ganham auxílio-moradia picareta”. Em 2015, o sujeito que sugerisse interromper a guerra do impeachment em nome da estabilidade era visto como defensor dos corruptos petralhas; em 2017 tornou-se o adulto no recinto, vamos fazer um editorial para elogiá-lo. Em 2015, presidentes caíam por pedaladas fiscais; em 2017 não caíam nem se fossem gravados na madrugada conspirando com criminosos para comprar o silêncio de Eduardo Cunha e do doleiro Lúcio Funaro. Em 2015, a acusação de que Dilma teria tentado influenciar uma decisão do ministro Lewandowski deu capa de revista e inspirou passeatas. Em 2017, Temer jantou tantas vezes quanto quis com o ministro do Supremo Tribunal Federal que o julgaria no TSE e votaria na decisão sobre o envio das acusações da Procuradoria-Geral da República contra ele, Temer, ao Congresso. Em 2015, Gilmar teria cassado a chapa Dilma-Temer. Em 2017, não cassou.”
É muito, muito difícil sustentar que essas mudanças não se explicam por diferenças de poder entre as coalizões que ocupavam a presidência antes e depois do impeachment.
- O impeachment de Dilma Rousseff foi uma violação, pela direita, da norma democrática de autocontrole institucional, a disposição de se abster de utilizar todos os recursos institucionais de que se dispõe para atacar o adversário. Como argumentaram os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em “How Democracies Die”, se todos os lados em disputa utilizarem todos os recursos disponíveis para desestabilizar o adversário, quem se torna instável é a própria democracia. Um dos exemplos utilizados pelos autores é justamente o recurso ao impeachment, que deve ser usado com parcimônia.
Em resposta publicada aqui no blog do Ibre, os craques Samuel Pessôa e Marcos Lisboa procuraram refutar as teses 2 e 3.
Embora tenham se contraposto à tese 2, Pessôa e Lisboa não enfrentaram as evidências apresentadas no artigo. Não há, em sua contestação, uma explicação alternativa para as diferenças supracitadas entre o funcionamento das instituições brasileiras em 2015 e em 2016.
O máximo que se consegue extrair sobre isso a esse respeito é a sugestão de que as diferenças de tratamento entre esquerdistas e direitistas se explica pela diferença de acesso ao foro privilegiado. Não são esses os fatos.
Em primeiro lugar, o acesso ao foro privilegiado também é função de disputas de poder. Se Lula tivesse sido ministro, teria foro privilegiado. Foi barrado pelas instituições e por intensa campanha junto à opinião pública, e por isso continuou sem foro. Poucos meses depois, exatamente a mesma operação foi realizada em benefício de Moreira Franco, com sucesso. Temer só continua tendo foro privilegiado porque não caiu após o Joesley Day, e não caiu porque tinha mais poder que o PT no parlamento.
Em segundo lugar, está cada vez mais claro que diversos políticos estão prontos para perder o foro privilegiado, se isso significar o julgamento em seus respectivos estados, onde governadores aliados exercem grande influência sobre o poder judiciário. Se a prisão após condenação em segunda instância cair, como todos apostam que cairá, perder o foro pode ser um grande negócio para quem tiver boas relações com as oligarquias estaduais.
Lisboa e Pessôa também confundem meu argumento sobre a bolsa de valores – é uma boa proxy do que o que o mercado quer que aconteça - com uma explicação de motivos. Os políticos de direita não foram blindados pela elite para que a bolsa não caísse, a queda da bolsa é que sugere que as elites não queriam que Temer caísse.
E é muito difícil discordar que, enquanto foram úteis ao programa de reformas, os políticos conservadores foram blindados. Cunha é o caso mais escandaloso, tendo sido poupado até muito depois das provas contra ele terem se tornado indiscutíveis. Caiu depois do impeachment, quando já era perfeitamente substituível. Se Temer tivesse caído no Joesley Day, o programa de reformas teria sido fortemente prejudicado. Quando Aécio foi poupado pelo Senado, ninguém escondia que era pelo papel que poderia desempenhar na articulação pela reforma da previdência. Abandonada a reforma da previdência, Temer e Aécio viraram fair game, como Cunha depois do impeachment.
Os próprios Lisboa e Pessôa o dizem: “A degringolada começou com o fracasso da agenda titubeante do ajuste”. Se Dilma tiver caído por não ter feito o ajuste, isso só reforça meu argumento.
O próprio Temer sabe que o jogo é esse, e por isso tenta desesperadamente se manter influente na sucessão presidencial. Sabe que precisa voltar a ser o tipo de político cuja queda derruba bolsa. Atualmente, não é.
Enfim, a tese 2 sai do debate ilesa.
Quanto à tese 3, os argumentos de Lisboa e Pessôa são melhores. Eles são os seguintes:
- A história de violação da norma de autocontenção é bem anterior à 2015, e é responsabilidade, sobretudo, do próprio PT, que fez oposição irresponsável a FHC e fraudou as contas públicas no primeiro mandato Dilma.
O primeiro argumento é fraco. O PT não fez contra FHC nada remotamente semelhante ao que foi feito contra Dilma em 2015. Vale lembrar, o “Fora FHC”, proposto pela esquerda petista, foi recusado pela direção do partido. Quem duvidar da afirmação deve consultar os Diários da Presidência de Fernando Henrique Cardoso, está tudo lá.
E, a propósito, não há dúvidas de que a maior violação da norma de autocontenção dos anos noventa, o gesto mais bolivariano da história da democracia brasileira pós-89, foi a aprovação da reeleição valendo já para FHC, com vergonhosa contribuição do Congresso e do Supremo. Aquilo foi chavismo puro.
Já o argumento das contas públicas é bem melhor. Em especial a avacalhação das contas públicas em 2014 foi claramente eleitoreira, e deve ser contada como violação da norma da autocontenção. Concedo o ponto.
- A esquerda tem um histórico de desrespeito à autonomia institucional do legislativo, exemplificada pela relação tensa e constantemente corrupta entre o PT e o Congresso. Segundo Lisboa e Pessôa, a campanha de 2014 convenceu os congressistas de que o PT estava disposto a fazer tudo para se manter no poder, e o medo desse bolivarianismo os teria levado a votar o impeachment.
O argumento não procede. O problema dos governos petistas com o Congresso era bastante objetivo: os governos petistas eram bem mais diferentes ideologicamente dos congressistas do que os governos tucanos. Não havia nenhum cenário em que a articulação da maioria parlamentar pelo PT não fosse mais difícil do que pelo PSDB. E, note-se, a predominância conservadora no Congresso tem uma de suas origens na circunstância de termos uma classe política herdada do regime militar. Supondo, como é razoável, que ser politicamente forte ajuda a continuar politicamente forte, a direita largou no período democrático com uma dianteira bastante razoável.
No fim das contas, quem desequilibrou o jogo irreversivelmente foi a direita no congresso, que derrubou a presidente de esquerda.
E quanto à tese de que o medo do bolivarianismo provocou o impeachment, não há nenhuma evidência disponível nesse sentido. Há, sim, evidência de que o Centrão acreditava que a direita seria mais capaz de barrar a Lava Jato: o áudio de Romero Jucá com Sérgio Machado.
Isto é, os congressistas do Centrão concordavam com minha tese 2). E o fato de que precisaram fugir da Lava Jato corrobora minha tese 1).
Além desses argumentos, há no texto de Lisboa e Pessôa um mal-entendido e uma discordância sobre minhas premissas.
O mal-entendido se refere à diferença entre o impeachment de Collor e o de Dilma. Lisboa e Pessôa reconstruíram meu argumento assim: houve um acordo entre esquerda e direita para derrubar Collor (como Levitsky e Ziblatt sugerem que se faça caso se decida impedir Trump), mas não houve nada disso no impeachment de Dilma. Contra esse argumento, lembram que o PT apoiou o impeachment, mas não apoiou o governo Itamar ou o Plano Real.
No meu argumento original, o que torna o impeachment de Dilma muito mais traumático do que o de Collor é justamente o fato de que, em 1992, os perdedores da eleição anterior não formaram o novo governo.
O governo Itamar foi formado a partir da base de governo de Collor. Seus ministros não foram recrutados primordialmente na Frente Brasil Popular (PCdoB, PSB, PT) que apoiou Lula em 1989. Temer, por sua vez, formou um governo com forte presença dos derrotados de 2014. Em regime presidencialista, isso é francamente bizarro.
E a discordância de fundo se refere à minha classificação de esquerda e direita. Meu critério é o universalmente aceito em todos os países do mundo: a direita é o setor do espectro ideológico que, mais do que o outro lado, enfatiza a importância do livre-mercado e tem a preferência dos setores empresariais. A esquerda, em geral, é mais simpática à redistribuição e ao provimento de serviços pelo Estado, e tem sua base política nos sindicatos.
Essa divisão não explica tudo, mas todos os analistas de todas as democracias modernas concordam que explica muita coisa. Mesmo divisões que não deveriam, em tese, ser bem mapeadas em esquerda vs. direita – como a defesa do meio ambiente – acabam, nas votações do congresso, funcionando desse jeito.
E, é claro, não é uma divisão entre bem e mal. Direita e esquerda são as duas metades da democracia moderna. Em um cenário ideal, as duas grandes coalizões competem pelo centro e moderam seu discurso. De fato, entre a centro-direita e a centro-esquerda a diferença não é grande. Mas cada um está moderando segmentos sociais e visões gerais do mundo razoavelmente diferentes.
Lisboa e Pessôa procuram reorganizar os termos do debate colocando o PT como defensor dos privilégios e o PSDB como defensor (ao menos em seus melhores momentos) do desenvolvimento com justiça social. Essa tipologia adere mal aos fatos.
Os gastos sociais dos governos Lula subiram mais, como proporção do PIB, do que os dos governos FHC. E uma parte muito maior do acréscimo de FHC era constituída por gastos com previdência, em que a discricionariedade do presidente é menor (existe, pela política do salário mínimo, mas o SM também subiu mais no governo Lula).
Ora, argumenta, Lisboa e Pessôa, o PT nunca propôs medidas de progressividade tributária quando foi governo. Na verdade, o PT não propôs quase nada muito à esquerda que dependesse do Congresso, porque sabia que ali jogava no campo do adversário. A redistribuição do PT foi inteira pelo lado do gasto. Mas o partido é defensor de progressividade tributária desde sempre.
Usando seu critério, Lisboa e Pessôa argumentam que o PPS foi muito mais eficaz do que o PT em construir uma esquerda razoável. Ficarei feliz se isso for verdade sobre o PPS atual, mas é sempre bom lembrar que o PPS rompeu com o PT no primeiro mandato Lula por oposição à política econômica moderada de Palocci.
Lisboa e Pessôa, enfim, consideram que meu texto é parte do esforço da esquerda de não encarar sua responsabilidade na crise atual. A responsabilidade da esquerda na crise econômica é evidente: não discordamos sobre a política econômica de Dilma. Mas a esquerda já tem culpas demais para ainda se dar ao luxo de assumir as dos outros, e quem fez a crise política não foi ela.
Meus interlocutores terminam o texto dizendo que é preciso construir novas pontes. Não poderia concordar mais, mas, se esse era o plano, era melhor não ter começado a conversa derrubando o governo dos outros caras.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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Veja mais: "A recessão democrática no Brasil: resposta a Celso" de Samuel Pessoa e Marcos Lisboa
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