Ao mexer no FGTS, é importante levar em conta toda a complexidade do tema
Segundo o Executivo, o novo arcabouço institucional proposto para o FGTS através da Medida Provisória (MP) 889/2019 contempla três preceitos: “devolver ao trabalhador o dinheiro que é dele”; “aumentar a remuneração do trabalhador”; e “elevar a produtividade”.
Para discutir as mudanças do FGTS, iniciaremos esta Carta com uma apresentação sucinta das principais mudanças introduzidas pela MP 889/2019. No curto prazo, os cotistas do Fundo recebem autorização para sacar até R$ 500,00 em uma operação denominada saque imediato.
Quanto à política de mais longo prazo, que estabelece a rentabilidade das cotas do fundo, a MP 889/2019 determina a distribuição integral dos lucros do FGTS aos cotistas. Além disso, faculta ao trabalhador o direito de ter acesso anual a uma parte dos seus saldos acumulados, no esquema denominado saque-aniversário. Neste regime, os saques anuais vão de um máximo de 50% do saldo do FGTS, para contas de até R$ 500 de saldo; até 5%, para contas com mais de R$ 20 mil. A partir de saldos de R$ 500, o saque também inclui uma “parcela adicional”, que varia de R$ 50 (na faixa de saldo entre R$ 500 e R$ 1.000) até R$ 2.900, para contas com mais de R$ 20 mil. É importante salientar que o trabalhador que optar pelo saque-aniversário abre mão automaticamente da possibilidade de sacar todo seu saldo no Fundo em caso de demissão sem justa causa.
O cumprimento da MP 889/2019 trará efeitos macroeconômicos. Segundo as estimativas da equipe do Boletim Macro do FGV IBRE, o impacto do saque imediato deve ser de uma melhora de aproximadamente 0,15 ponto percentual (p.p.) no PIB de 2019 e de 0,35 p.p. no de 2020. De acordo com o governo, as mudanças propostas teriam efeitos estruturais relevantes. Em um prazo de dez anos, aumentariam o PIB per capita em 2,6 p.p. e a população ocupada com carteira em 5,6%, com um efeito acumulado no emprego formal de 2,9 milhões e um aumento das contribuições ao Fundo de R$ 11,3 bilhões. Adicionalmente, o redesenho permitiria utilizar o saque-aniversário como colateral para crédito bancário, ajudando a desenvolver um importante mercado de recebíveis.
É forçoso reconhecer que o saque imediato está ligado à tentativa do governo de reimpulsionar a economia com alguma ação pelo lado da demanda: mais dinheiro no bolso do trabalhador hoje certamente caminha nesta direção. Não há tampouco como negar que a iniciativa do Executivo foi oportuna, uma vez que a equipe econômica se antecipou a medidas que certamente viriam a ser propostas pelas Casas Legislativas. Afinal, os atores políticos não poderiam se calar frente ao estado de letargia pelo qual passa o mercado de trabalho.
Com relação aos dois primeiros preceitos mencionados no início desta Carta – “devolver ao trabalhador o dinheiro que é dele” e “aumentar a remuneração do trabalhador” – a MP 889/2019 certamente os atende. No entanto, quando se passa para o terceiro princípio – “elevar a produtividade” –, o entendimento já não é tão claro e dá margem a controvérsia. Para se entender melhor esse ponto, é preciso conhecer a lógica por trás da ideia de que a mudança no FGTS pode contribuir para aumentar a produtividade.
O Brasil é um país com rotatividade do trabalho muito alta, o que é visto como um dos numerosos fatores explicativos da baixa produtividade nacional. Com mudanças constantes de emprego, os trabalhadores reduzem os ganhos de produtividade obtidos pela experiência e aperfeiçoamento nas mesmas tarefas, ao mesmo tempo em que patrões são desestimulados a investir no treinamento de profissionais que podem partir a qualquer momento.
Entre as causas da alta rotatividade do trabalho no Brasil, é comum incluir o FGTS, que o trabalhador pode sacar, acrescido da multa de 40%, quando é demitido sem justa causa. Um aspecto prosaico e bem conhecido dessa realidade são os “acordos” entre patrões e empregados para que estes últimos sejam demitidos, em vez de pedir demissão, de tal forma que possam sacar seus saldos do FGTS. Assim como o seguro-desemprego, os saques do FGTS costumam aumentar em momentos de aquecimento do mercado de trabalho, o que parece um contrassenso, mas faz sentido se os incentivos destes mecanismos forem devidamente considerados.
Sob a ótica do governo, a lógica do aumento da produtividade com a mudança no FGTS parece vir da redução na rotatividade do trabalho. Segundo essa visão, com o advento do saque-aniversário uma grande parcela dos trabalhadores se incomodará menos com a poupança compulsória represada pelo Fundo e não buscará sacar todos os recursos das suas respectivas contas por meio de demissões sem justa causa.
Assim, tendo a opção de fazer saques parciais anuais, e recebendo uma remuneração nas suas contas do FGTS mais próxima da rentabilidade das alternativas voluntárias de investimento, haverá uma redução do incentivo ao cotista de buscar ser demitido e resgatar seu FGTS.
Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE, manifesta ceticismo em relação a esse ponto de vista. Para ele, trabalhadores acostumados ao regime de alta rotatividade, com saques frequentes de 100% do Fundo mais multa de 40% (que foi mantida) a cada vez que são demitidos, não trocarão de regime. Manter-se-ão na modalidade de saque vinculada à demissão imotivada. Entretanto, a medida permitirá que os trabalhadores de baixa rotatividade façam saques parciais anuais do saldo das suas contas do FGTS, aumentando, portanto, a quantidade e o volume dos saques quando o conjunto dos cotistas é considerado. E isso introduz toda uma nova problemática na discussão, que não foi claramente abordada pelo governo na defesa da MP 889/2019: a governança do Fundo e a sua sustentabilidade financeira.
Há uma clara economia política ao longo de muitos anos de ampliar o acesso dos trabalhadores aos seus recursos no FGTS. Assim, mudanças legais viabilizaram saques sucessivos com pouco tempo decorrido entre eles, e também criaram opções de resgate para as situações em que o trabalhador ou seus dependentes tenham contraído o vírus HIV, sejam pacientes em estado terminal, precisem adquirir prótese, e nos casos de pagamento de curso de nível superior ou cirurgias essenciais à saúde.
Entre as mais de cem emendas já apresentadas à MP 889/2019, uma enorme parcela propõe aumento das possibilidades de acesso ao Fundo. Adicionalmente, com a distribuição de 100% dos lucros, a remuneração das contas dos trabalhadores muito abaixo da rentabilidade de mercado é algo que tende a ficar no passado.
Nota-se, portanto, que, na economia política de proteger o trabalhador, a tendência, pelo lado do passivo do FGTS, é de rendimentos mais altos e maiores possibilidades de saque. A questão importante, porém, do ponto de vista da governança e da higidez financeira, é sobre as mudanças concomitantes a serem feitas pelo lado do ativo do Fundo.
E a resposta é preocupante, de acordo com Livio Ribeiro, pesquisador do FGV IBRE, que vem trabalhando com a questão. O FGTS tem investido crescentemente em projetos de habitação (incluindo subsídios), saneamento básico e infraestrutura – muito ligados aos seus objetivos precípuos, mas com rentabilidade menor que a das aplicações financeiras no ativo do fundo. Segundo Ribeiro, não há no projeto do governo o estabelecimento de um horizonte atuarial adequado a um fundo que, por sua natureza, combina ativos de longa maturidade com um passivo em contas sujeitas a saques cada vez mais frequentes, e maiores em seu conjunto.
Com saques crescentes (caso se confirme o prognóstico dos pesquisadores do FGV IBRE), a consequente diminuição do volume de recursos do FGTS, configura uma questão complexa e importante de política pública. O que leva a algumas indagações: faz sentido reduzir um mecanismo de poupança compulsória num país tão carente de poupança doméstica? O FGTS é de fato a melhor forma de financiar e subsidiar o setor habitacional (e secundariamente, saneamento e infraestrutura)? Caso não seja, ainda assim não seria arriscado desmontar um sistema antes de se ter outro em seu lugar? São questões importantes e que podem ter profundo impacto na economia, na geração de empregos e em setores de enorme relevância social.
As mudanças propostas no FGTS deveriam explicitar a preocupação com toda essa ampla e complexa gama de temas para que os resultados almejados sejam atingidos, sem que advenham consequências negativas não antecipadas.
Esta é a Carta do Ibre de setembro de 2019, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Deixar Comentário