Macroeconomia

Auxílio emergencial para Estados e municípios na “coronacrise”

14 abr 2020

Na última sexta, apresentei uma proposta de auxílio para estados e municípios (E&M) em minha coluna semanal no jornal Folha de São Paulo. Hoje volto ao tema com um texto mais longo, pois nem tudo cabe em coluna de jornal. Aproveito para corrigir erros e incorporar sugestões de alguns colegas, em resposta à minha proposta. Para facilitar a exposição, dividirei o texto em seções.

O problema

Assim como famílias e empresas, E&M também estão sofrendo queda abrupta e substancial de receita após o choque do Covid-19. Porém, diferentemente do setor privado, E&M têm despesa rígida, isto é, eles não podem cortar rapidamente seus gastos diante da redução da receita. Para a economia como um todo é melhor que seja assim, pois se E&M resolvessem praticar um hiperajuste fiscal diante da queda do nível de atividade, isto aprofundaria ainda mais a recessão.

Neste momento, o ideal é que prefeitos e governadores mantenham seus gastos essenciais, bem como aumentem suas despesas com programas emergenciais para atender à população (na saúde, na transferência de cestas básicas e ações semelhantes).

O problema da medida acima é que, diferentemente da União, E&M não têm capacidade de emitir dívida para atravessar a crise. No Brasil, o endividamento “subnacional” é controlado pelo Tesouro Nacional (TN) e, mesmo se não fosse assim, mesmo se nossos prefeitos e governadores pudessem emitir títulos no mercado de renda fixa, isto seria inócuo diante da atual aversão ao risco no mercado.

Traduzindo do economês, mesmo se E&M pudessem se endividar à revelia do TN, o mercado cobraria uma taxa de juro altíssima de prefeitos e governadores. Uma prova disso é que, nos EUA, onde E&M podem se financiar com títulos isentos de imposto de renda, o Federal Reserve (Banco Central de lá) já anunciou que comprará títulos subnacionais devido ao encolhimento do mercado para este tipo de dívida.

A lição é que, em tempos de crise, todos correm para o ativo de menor risco, os títulos do governo federal, e por isso cabe ao governo federal se endividar para repassar os recursos aos mais necessitados, sejam famílias, empresas, prefeitos e governadores. Essas transferências podem ser a fundo perdido ou financiamentos, dependendo do propósito almejado e da situação financeira de quem recebe.

No caso específico do Brasil, hoje os E&M têm que buscar recursos junto à União, seja via transferências, empréstimos ou ambos. Vejamos o que já foi anunciado.

O Pacote Inicial de Bolsonaro-Guedes

O governo federal está ciente do problema dos E&M e já anunciou R$ 88,2 bilhões em ajuda. Isto é mais do que 1% do PIB previsto para 2020. Apesar de parecer um valor elevado, nem todos os R$ 88,2 bi estão disponíveis. A tabela 1 apresenta os detalhes da ajuda federativa, com base nos dados levantados pelo Observatório de Política Fiscal do IBRE.

Tabela 1:

Medida

em R$ bi

% do Total

Implementação

Transferência do Fundo Nacional da Saúde para E&M

8.0

9.1

CN (MP 940)

Suspensão da dívida dos E/M com a União com retomada gradual em condições de pagamento mais favoráveis

12.6

14.3

PPEF (PLP 149/19, em discussão)

Renegociação de dívidas de E/M com bancos públicos

9.6

10.9

Administrativo (em discussão)

Ampliação do orçamento do SUAS

2.0

2.3

CN (MP 941)

Recomposição do FPE e FPM

16.0

18.1

CN (MP 939)

Operações de crédito com securitização de dívida + Plano Mansueto

40.0

45.4

PPEF (PLP 149/19, em discussão)

TOTAL

88.2

100.0

 

Fonte: Governo Federal e FGV IBRE

Dos R$ 88,2 bi anunciados, somente R$ 26 bi (30% do total) estão garantidos: R$ 16 bi em recomposição dos fundos de participação dos estados e municípios (FPE e FPM), R$ 8 bi em transferências via Fundo Nacional da Saúde (FNS) e R$ 2 bi em transferências via Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Estes recursos são a fundo perdido, isto é, doação da União para E&M em tempo de crise, como deve ser feito.

Os R$ 62,2 bi restantes correspondem a financiamentos, via suspensão dos pagamentos das dívidas do E&M com a União (R$ 12,6 bi), renegociação de dívidas dos E&M com bancos públicos (R$ 9,6) e novos empréstimos (R$ 40 bi). Nesses casos os recursos terão que ser pagos posteriormente.

Mais importante, o governo condicionou os R$ 62,2 bi de refinanciamento ou endividamento à aprovação do “Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal” (PPEF), o chamado “Plano Mansueto”, enviado ao Congresso no ano passado (PLP 149/2019).

O PPEF foi pensado para a situação pré Covid-19, para incentivar E&M a reequilibrarem suas contas mediante autorização para novas operações de crédito, desde que prefeitos e governadores adotassem uma série de medidas de ajuste. Como apontou levantamento do Senado Federal, as principais contrapartidas para aderir ao Plano Mansueto eram:

  • Autorizar a privatização de bancos públicos e companhias de energia, saneamento ou gás;
  • Reduzir pelo menos 10% dos incentivos tributários que concedem, além de suspender a concessão de novos incentivos;
  • Retirar do seu regime jurídico de servidores públicos as vantagens que não existem no regime da União;
  • Instituir mecanismos para limitar o crescimento de despesas correntes à variação da inflação ou da receita;
  • Eliminar vinculações de receitas que não tenham previsão constitucional;
  • Instituir a unidade de tesouraria (gestão financeira concentrada num único organismo);
  • Promover reformas estruturantes na prestação de gás canalizado, de acordo com diretrizes regulatórias nacionais;
  • Contratar serviços de saneamento em modelo de concessão.

O Plano Mansueto já era inadequado antes do Covid-19, pois ele não enfrenta adequadamente a situação de Estados quase insolventes, como RJ, MG e RS, bem como aposta muito no poder mágico de privatizações para levantar recursos suficientes para abatimento da dívida. Além disso, o PPEF também não prevê explicitamente refinanciamento em condições mais favoráveis para os E&M que atenderem às suas condições, limitando-se a oferecer garantia da União para os novos empréstimos em condições de mercado. Uma solução mais crível deveria incluir reestruturação de dívidas e perdão do principal em troca de, por exemplo, redução do gasto com pessoal em termos da receita corrente líquida (RCL) do Estado ou prefeitura em dificuldade. Tudo isso ainda pode ser incorporado ao PPEF, mas agora a prioridade é outra.

Prefeitos e governadores precisam de ajuda já, com pouco ou nenhum condicionante, para evitar o aprofundamento da crise. Depois, quando o pior passar, o estoque anterior de dívida e as novas obrigações contraídas durante o combate à pandemia poderão ser objeto de ajuste estrutural e gradual, como já ocorreu no Brasil.

Agora precisamos de ações emergenciais, em pelo menos quatro linhas, que abordarei separadamente abaixo.

Suspensão do serviço da dívida com a União

O governo Bolsonaro já sinalizou com a suspensão do serviço da dívida de E&M com a União, mas somente após a aprovação do Plano Mansueto. Como a situação é grave e vários prefeitos e governadores não podem esperar as deliberações do Congresso, alguns E&M já pediram e obtiveram liminares junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender o pagamento de juros e amortizações à União. O ideal é que ests ação seja ampliada para todos os entes da federação por Medida Provisória (MP) ou Projeto de Lei (PL) de iniciativa do Poder Executivo.

Estamos perdendo muito tempo discutindo o Plano Mansueto enquanto, no mercado, a crise já levou vários bancos a suspender a cobrança de dívidas, rolando os juros e amortizações, por pelo menos seis meses. O mesmo deve ser feito pela União em relação aos E&M, só que com prazo maior, pois nada indica que a saída da crise será rápida e, enquanto isto não acontecer, provavelmente prefeitos e governadores precisarão tomar novos empréstimos.

Assim, a primeira medida federativa do governo Bolsonaro deveria ter sido a suspensão do serviço da dívida dos E&M com a União até junho de 2021. Essa suspensão não significa perdão, pois os juros e amortizações não pagos serão incorporados ao valor da dívida, e terão que ser pagos depois.

A suspensão é “apenas” um alívio temporário de caixa para E&M endividados, com aumento de endividamento, que depois será enfrentado de modo mais estrutural, inclusive com tratamento diferenciado para o estoque de dívida existente em janeiro de 2020 (antes da Covid-19) e o aumento de dívida gerado entre fevereiro de 2020 e junho de 2021.

Antes de passar ao próximo ponto, cabe lembrar que E&M não devem somente à União. Também existem dívidas estaduais e municipais com bancos nacionais e estrangeiros, com e sem garantia da União. O serviço dests dívida privada também deveria ser suspenso, em negociação dos prefeitos e governadores com cada credor, com coordenação por parte da União, que poderia assumir parte das obrigações (como FHC fez no final dos anos 1990).

Transferências de Renda

Além da suspensão do serviço de suas dívidas, E&M também precisam de recursos a fundo perdido para enfrentar a pandemia. Gastos com saúde pública já estão aumentando, e o mesmo deve acontecer com assistência direta à população mais pobre, com transferências de bens e serviços em espécie (exemplo: cestas básicas, produtos de higiene pessoal e proteção contra a Covid-19).

Devido aos gastos extraordinários contra a pandemia, e para ajudar prefeitos e governadores a manter suas folhas de pagamentos, sobretudo para servidores de menores salários, o governo deve manter suas transferências via FPE e FPM em um patamar mínimo. Foi isto que Lula fez logo após a crise de 2008, e é isso que Bolsonaro já concordou em repetir com a MP 939.

No caso do FPE e FPM, as únicas questões a analisar são se os recursos transferidos serão suficientes, se não será preciso adotar a mesma medida em 2021, caso a economia não se recupere rapidamente. Uma forma simples de fazer isto é dizer que, em 2020 e 2021, o valor nominal transferido via FPE e FPM será no mínimo igual ao que ocorreu em 2019.

A outra modalidade de transferência ou doação deve direcionar recursos para saúde e assistência social, como Bolsonaro já fez via as MPs 940 e 941. Como mencionei acima, estss transferências somam R$ 10 bi, sendo R$ 8 bi via FNS e R$ 2 bi via SUAS. A ação está na direção correta, mas em volume insuficiente. Este tipo de transferência deveria ser de no mínimo R$ 30 bilhões, tendo em vista outros episódios de ajuda emergencial a E&M em tempos de crise.

Por exemplo, em 2016, o então governo Temer doou aproximadamente R$ 3 bi para o Rio de Janeiro devido à realização das Olimpíadas daquele ano em meio à crise fiscal fluminense. Agora, diante de uma emergência muito maior e em todo território nacional, com certeza a União pode e deve transferir muito mais recursos para E&M.

E para garantir que as transferências extraordinárias sejam bem aplicadas, também é desejável que a União estabeleça algumas diretrizes para utilização dos recursos, em programas e ações coordenados pelo Ministérios da Saúde e da Cidadania (eu sei que é difícil), Porém, para que isso aconteça, o governo federal tem que reconhecer a gravidade do problema e assumir um papel mais proativo no combate à pandemia. em vez de menosprezar o risco de saúde pública para a população (novamente, eu sei que é difícil).

Para terminar do lado positivo, considerando que:

  • O teto Temer de gasto admite a realização de despesas emergenciais e imprevisíveis “extrateto”,
  • A decretação de estado de calamidade suspendeu a meta de resultado primário deste ano,
  • O STF decidiu, por liminar, que certos trechos da LRF são “temporariamente inconstitucionais” (sic)
  • E o STF também decidiu, por liminar, que a regra de ouro é “temporariamente inconstitucional” (sic),

Nada impede o governo Bolsonaro de aumentar as transferências extraordinárias para E&M via MP, com efeito imediato. O problema nesse caso não parece ser o governo federal, que já concedeu R$ 26 bi em ajuda, mas as demandas excessivas dos E&M.

Por que não recompor receita de ICMS e ISS

O Plano Mansueto emperrou no Congresso, mais especificamente na Câmara dos Deputados, por dois motivos: (1) as limitações da proposta do governo para E&M já no cenário pré-Covid, como analisei acima, e (2) as demandas excessivas de recomposição de perda de receita por parte de prefeitos e governadores. Vejamos este segundo ponto.

Segundo o noticiário, E&M desejam que a União compense sua perda de arrecadação com ICMS e ISS devido ao Covid-19. Como seria feito isso? Cada prefeito ou governador apresentaria quanto arrecadou em cada mês do ano passado, compararia com a arrecadação deste ano, e a União cobriria a diferença. Operacionalmente parece simples, mas o problema é o incentivo que essa medida traria, além da injustiça para com trabalhadores e empresas no setor privado.

Começando pelo primeiro problema, se a União cobrir toda perda de receita com ICMS e ISS, qual é o incentivo dos governadores e prefeitos cobrarem e dos contribuintes pagarem seus impostos? Cobrir perda de arrecadação pode simplesmente levar alguns (estou sendo generoso) prefeitos e governadores a estimular que seus contribuintes locais não paguem imposto, pois isto será assumido pela União. O resultado será aumento da dívida pública federal, que por sua vez será paga por todos os contribuintes nacionais (o que inclui os locais).

Cobrir perdas de arrecadação de ICMS e ISS é simplesmente errado do ponto de vista econômico. Para piorar ainda mais, lembro que, no caso de assistência para empresas, o governo não ofereceu cobertura da perda de receita ou vendas em relação ao mesmo mês do ano anterior, pois isto seria um absurdo.

O que o governo federal corretamente ofereceu foi cobertura de parte da renda para trabalhadores informais (os R$ 200/mês de Guedes e Bolsonaro que o Congresso elevou para R$ 600/mês) e pagamento de parte dos salários de quem têm carteira assinada no caso de acordos de redução de jornada e salários. Oferecer cobertura de perdas de ICMS e ISS para prefeitos e governadores é, portanto, injusto, pois excede em muito o que governo federal já ofereceu ao setor privado.

Em vez de cobrir perda de arrecadação, o governo deveria adotar alguma medida de auxílio para E&M pagarem suas folhas, similar ao que já foi adotado para o setor privado. Essa ajuda pode ser via transferência adicional (fundo perdido) ou financiamento (dívida). Prefiro que seja financiamento, até porque cada E&M tem situação financeira particular, mas avaliarei as duas alternativas porque alguns colegas consideram que, pelo menos para baixos salários, o governo deveria cobrir o pagamento sem cobrar nada de prefeitos e governadores. Vamos por partes.

Transferências para pagar a folha

O governo federal já se dispôs a compensar parte da perda salarial de trabalhadores no setor privado, pagando parte da redução de salários no caso de redução da jornada ou suspensão do contrato de trabalho (MP 936).

Traduzindo do economês, o programa de proteção de emprego proposto por Bolsonaro significa que a União pagará parte dos salários de trabalhadores do setor privado, usando o benefício do seguro-desemprego como referência para a ajuda. Como bem explicaram os economistas da Unicamp (Nota Cecon 11, IE-Unicamp):

“(...) o benefício será pago mensalmente em caso de redução proporcional de jornada de trabalho e de salários ou suspensão temporária do contrato de trabalho. Independentemente do tempo de vínculo empregatício. A base de cálculo do valor a ser pago será o seguro-desemprego que o trabalhador teria direito a receber de acordo com sua média salarial. O piso de seguro-desemprego equivale ao salário mínimo (R$ 1.045). No atual formato, o benefício do governo não será uma antecipação do valor que o trabalhador tem direito a receber caso seja demitido (...).

O valor do seguro-desemprego é calculado através da média salarial dos últimos três meses. Se esta for de até R$ 1.599,61, multiplica-se o salário médio por 0,8 (80%), tendo como piso o salário mínimo; se a média estiver entre R$ 1.599,62 e R$ 2.666,29, o que exceder R$ 1.599,61 será multiplicado por 0,5 (50%) e somado a R$ 1.279,69; já para o caso de média salarial acima de R$ 2.666,29, a parcela será de R$ 1.813,03.”

No caso de redução de jornada e salários, que pode ser de 25%, 50% e 70% na proposta de Bolsonaro, o trabalhador terá direito a receber o percentual de redução do salário sobre o benefício que teria se fosse demitido.

Por exemplo, considere o caso de um trabalhador que ganha 2 salários mínimos (SM), R$ 2.090. Caso demitido, este trabalhador teria direito a um seguro de desemprego de: R$ 1.599,61 x 80% + 490,39 x 50% = 1.524,88. Com redução de jornada e salários em 25%, este trabalhador receberá:

  • R$ 2.090,00 x 75% = 1.567,5 da empresa e
  • R$ 1.524,88 x 25% = 381,22 do governo.

A remuneração total será, portanto, de R$ 1.948,72, ou seja, 93% da remuneração original de 2 SM.

Já no caso de suspensão do contrato de trabalho, há duas situações.

Primeiro, se o trabalhador for empregado por micro ou pequena empresa, ele terá direito a todo o seguro desemprego a que tem direito. No exemplo acima, de 2 SM, isto corresponde a uma remuneração total de R$ 1.524,88, integralmente paga pelo governo.

Segundo, se o trabalhador for empregado por empresa com faturamento anual superior a R$ 4,8 milhões, ele receberá 30% do salário da empresa e 70% do seguro-desemprego a que teria direito do governo. No exemplo acima, de 2 SM, isto corresponde a uma remuneração total de R$ 1.694,42, sendo R$ 627,00 pagos pela emprega e R$ 1.067,42 pagos pelo governo.

Na prática, o programa de proteção ao emprego de Bolsonaro oferece cobertura de 100% de renda para quem ganha 1 SM. Acima disso a reposição salarial não é integral, caindo quanto maior for o valor envolvido.

Reposição parcial de salários acima de um valor de referência é normal em programas de proteção ao emprego adotados por países avançados, mas uma das críticas à proposta de Bolsonaro é que o “sarrafo” ficou muito baixo por aqui, isto é, que o governo deveria repor uma parcela maior da renda, de até 3 SM (como propõem os moderados do PT, no PLS 1.168/2020 ) ou 4 SM (como sugeriram os “populistas” do Terraço Econômico).

Sou mais favorável à proposta do PT, mas independentemente desta questão e voltando ao auxílio para E&M, o programa de proteção ao emprego apresentado por Bolsonaro serve de referência para uma eventual ajuda para prefeitos e governadores pagarem seus servidores durante o pior da crise.

Lembrando, servidores têm estabilidade no emprego e a possibilidade de reduzir jornada e salários no governo já foi barrada pelo Poder Judiciário. Assim, no caso de E&M, uma eventual transferência federal para evitar atrasos na folha de pagamento não pode ser condicionada à redução de jornada e salários. Como fazer?

Uma opção, levando em consideração que Bolsonaro já se dispôs  a garantir 1 SM para trabalhadores de MPEs, seria fazer uma transferência de até 1 SM por servidor (ativo e inativo) de E&M. Com isto a União ajudaria prefeitos e governadores a pagarem parte de sua folha de pagamento, sobretudo dos menores salários, no período mais grave da crise.

Assim como a ajuda às empresas requer contrapartidas, a eventual transferência para E&M também deveria ter alguns requisitos, como não concessão de aumento salarial durante a crise (às vezes é preciso dizer o óbvio) e maior transparência e uniformidade no cálculo das despesas com pessoal. Voltarei a esse ponto mais à frente, pois estes requisitos devem ser os mesmos se o “auxílio-folha” da União for realizado via financiamento.

Voltando à transferência ou doação, e considerando que E&M não podem reduzir jornadas e salários durante a crise, uma proposta de ajuda poderia ser transferência, pela União, de meio SM por servidor estadual e municipal, a fundo perdido, por alguns meses.

Porém, dado que o número de servidores por habitante não é o mesmo em cada ente da Federação, e para não premiar quem tem folha de pagamento “excessiva”, a ajuda deveria levar em conta a média nacional de servidores por habitantes nos Estados e nos municípios como referência para ajuda. Mais formalmente, a ajuda seria dada pelo número de habitantes do ente federativo, multiplicado pela média nacional de servidores por habitante do tipo de ente em questão (Estado ou município), multiplicado pelo valor de referência do benefício (até 1 SM).

E dado que em alguns casos a União já paga parte da folha estadual (no DF e em “ex-territórios”), a eventual “transferência-folha” deveria considerar somente os servidores efetivamente pagos pelos prefeitos e governadores.

Agora vejamos por que a opção de financiamento é melhor do que transferência para pagar folha.

Financiamento para pagar folha

A situação de E&M varia muito no Brasil. Por exemplo, a maioria dos municípios depende mais de transferências da União e dos Estados para pagar suas contas do que de receita tributária própria com ISS, IPTU, ITBI e outros impostos e contribuições. Nesses casos, a simples recomposição de FPM e FPE para os valores pré Covid-19 pode ser suficiente para pagar os servidores municipais, que na sua maioria ganham entre 1 e 2 SM, sem necessidade de novas transferências a fundo perdido.

No mesmo sentido, em vários Estados as transferências do FPE respondem por parte considerável da arrecadação e, portanto, sua manutenção no nível pré-crise já resolve a maior parte do problema financeiro. E ainda há unidades da federação como o DF e os “ex-territórios” em que parte considerável da folha já é bancada pelo governo federal. Neste caso, não faz muito sentido transferir recursos adicionais para pagamento de servidores.

A falta de recursos para pagar folha é mais grave em Estados e municípios mais ricos, nos quais o ICMS e ISS respondem por grande parte da receita, e em que as transferências da União via FPE, FPM e outros meios (como no DF e “ex-territórios”) não são significativas.

A situação é mais crítica em “Estados ricos” com folha de pagamento excessiva, acima dos limites da LRF, como RS, RJ e MG. Devido a essa heterogeneidade federativa, o eventual auxílio federal para pagamento de servidores deveria ocorrer na forma de financiamento em vez de transferência, uma vez que a opção pelo financiamento seria de cada prefeito e governador, a partir de uma avaliação preliminar pela União de sua necessidade.

E&M já bem atendidos por transferências via FPM e FPE não precisariam de financiamento adicional, ou teriam financiamento adicional limitado à parcela de sua folha de pagamento não coberta pelos recursos extra do FPM e FPE. Já nos E&M onde as transferências adicionais de FPM e FPE não fossem suficientes para garantir o pagamento da folha durante a crise, seria possível tomar novos financiamentos. Como?

Usando o mesmo raciocínio da seção anterior, os E&M com grave perda de receita poderiam tomar um financiamento de até 1 SM por servidor (ativo e inativo), durante a fase mais grave da crise. Essa linha de financiamento teria carência de um ano, juros limitados à taxa SELIC, e amortização em quatro anos após o prazo de carência (neste ponto estou usando o exemplo dos EUA).

O financiamento de 1 SM por servidor com certeza não cobrirá altos salários no nível estadual e municipal, mas este não é o objetivo do programa. A prioridade é garantir o pagamento em dia da maioria dos servidores, que ganham de 1 a 3 SM. Nesse sentido, e para evitar que os recursos eventualmente transferidos pela União sejam retidos por ordem judicial para pagar salários elevados nos E&M, o financiamento da folha deveria ter mecanismos que garantissem que os recursos chegarão a quem mais precisa, como crédito na conta do servidor.

Além de ser opcional, com foco em quem mais precisa, outra vantagem do financiamento sobre a transferência, para pagamento de folha, é que, por ser compromisso financeiro, os E&M que solicitassem este tipo de ajuda teriam que abrir suas folhas de pagamento para a União, identificando os gastos por Poder e CPF, incluindo os chamados “penduricalhos”. E, obviamente, também seria necessário não conceder aumento salarial durante o período do financiamento.

Abrindo a verdadeira caixa-preta

Como coloquei no início deste texto, devemos evitar impor condicionalidades em tempos de crise. Por isso a suspensão do serviço da dívida, a garantia de valor mínimo do FPM e FPE e as transferências extra para saúde e assistência social devem ser feitas sem condicionantes além dos necessários para boa administração e transparência dos recursos.

Já no caso de transferência ou financiamento (prefiro financiamento) para pagamento de folha, é necessário impor pelo menos um condicionante, de maior transparência, para garantir a boa alocação dos recursos e as eventuais reformas que certamente acontecerão depois da crise.

Em outras palavras, se a União (todos os brasileiros) irá ajudar o Estado “X” a pagar parte de sua folha, seja com transferência ou financiamento, o mínimo requerido é que o Estado “X” diga para quem foi o recurso. Isto pode ser feito rapidamente via portal da transparência da União, ou endereço eletrônico específico criado pela Secretaria do Tesouro Nacional, para monitorar o programa.

Por exemplo, suponha que o Estado “X”, em grave dificuldade financeira, solicite o financiamento de 1 SM por servidor ativo e inativo, por até quatro meses. Nesse caso o Estado “X” deverá informar que, da remuneração do Juiz “Y”, que ganha R$ 50 mil por mês, entre penduricalhos e salário, 1 SM foi pago com ajuda da União.

O mínimo pedido é que, todos que tenham parte do seu salário pago com recursos transferidos ou financiados pela União tenham essa informação divulgadas para todos os contribuintes brasileiros. Essa base de informação aumentará bastante a transparência das finanças públicas estaduais e municipais, bem como ajudará no desenho de programas de reestruturação de dívidas e reequilíbrio fiscal após a crise.

Resumo da proposta

Para concluir, faço um resumo das propostas acima em quatro itens:

  1. Suspensão imediata do serviço da dívida de E&M com a União, até junho de 2021. Os pagamentos suspensos serão acrescidos ao principal e, quando o pior da crise passar, a dívida poderá ser reestruturada, em troca de medidas de reequilíbrio orçamentário gradual, pois será preciso evitar “austericídio” no nível estadual e municipal.
  2. Garantia de valor mínimo de repasse para E&M, via FPM e FPE, por dois anos, 2020 e 2021.
  3. Transferências adicionais de pelo menos R$ 30 bilhões para E&M, focadas em ações de saúde, assistência social e segurança pública, para combater a pandemia e administrar suspensão gradual do isolamento social, se e quando isto for possível (Bolsonaro já concedeu R$ 10 bilhões).
  4. Financiamento temporário para pagamento dos servidores estaduais e municipais, no caso em que as medidas (1) e (2) acima não sejam suficientes para aliviar a restrição financeira, com condições favorecidas (juro, carência e amortização) e obrigação de abertura dos dados da folha de pagamento, por poder e CPF, incluindo “penduricalhos”.

Não coloquei a transferência como opção para pagamento da folha nos itens acima, pois acho isto inadequado em relação à opção de financiamento, por motivos de transparência e melhor focalização dos recursos. Porém, como alguns colegas acham que E&M precisam de doação para pagar suas folhas, isto pode ser combinado com a iniciativa (4), fazendo transferências até um determinado valor por servidor, e financiamento acima disso. Não gosto da ideia, mas registro a sugestão.

Por fim, alguns colegas também apontaram que é melhor transferir do que emprestar recursos para pagar a folha porque a Constituição proíbe financiamentos da União para E&M destinados ao pagamento de servidores. Esta vedação está no inciso X do artigo 167 da Constituição, o mesmo que prevê a regra de ouro em seu inciso III.

Em reposta à crítica acima, em primeiro lugar agradeço aos colegas pelo esclarecimento, pois errei ao dizer que o financiamento que defendo poderia ser feito via PL. Pensei que o STF, na liminar que declarou a regra de ouro “temporariamente inconstitucional” (sic), também tivesse suspendido outros trechos do artigo 167 da Constituição. Como isso não ocorreu, a realização de financiamento temporário e emergencial da folha de pagamento de E&M pela União depende de PEC (uma emenda na PEC 10/20 em análise no Senado) ou outra liminar do STF dizendo que o inciso X do artigo 167 da Constituição também é “temporariamente inconstitucional” (sic).

Para não nos perdermos tentando descobrir que artigos ou incisos da Constituição estão sob “isolamento legislativo”, enfatizo que o crucial é fazer a ajuda chegar aos E&M que precisam, do contrário podemos ter a repetição de crises passadas do RJ, MG e RS, em escala nacional.

Por fim, lembro que financiar temporariamente E&M está em linha com o adotado pelos EUA, onde o Federal Reserve anunciou linha especial de crédito para comprar créditos (títulos ou empréstimos) concedidos pelo sistema financeiro a administrações subnacionais. Por aqui algo similar pode ser feito, com o BC comprando créditos concedidos por bancos (públicos e privados) a E&M, com garantia da União. O Tesouro Nacional, o BC e nossos bancos têm capacidade operacional para fazer isso rapidamente. O que falta é consenso político entre o receio excessivo da União e a demanda infinita por parte de prefeitos e governadores. Para o bem de todos nós, espero que o Congresso saiba arbitrar essa questão, e rápido.

Pós-escrito:

O texto acima foi concluído na segunda-feira (13/4), antes de a Câmara dos Deputados aprovar, erradamente, a compensação de perdas de ICMS e ISS por seis meses, de maio a outubro. Reitero que essa medida é equivocada, pois dá o incentivo errado, concentrado nos Estados e municípios “mais ricos” (que respondem pela maior parte da arrecadação de ICMS e ISS), além de não eliminar a necessidade de financiamento e rolagem de dívidas, como alguns secretários de Fazenda já declararam hoje. 

Para ilustrar como a reposição de ICMS é concentrada, a figura abaixo aponta a distribuição da arrecadação total de 2018, por estado da Federação. Quatro Estados (SP, MG, RJ e RS) concentram 55% do total e, portanto, devem receber a maior parte da reposição de receita proposta pela Câmara. Depois voltarei a esse tema, com texto específico sobre a forma de financiamento de cada Estado no Brasil, entre tributos próprios, transferências da União e dívida.

Arrecadação de ICMS em 2028

 

Receita de ICMS em R$ milhões (2018)

Participação de cadaEstado

Participaçãoacumulada

TOTAL Brasil

410358

100.0%

NA

SP

118138

28.8%

28.8%

MG

41902

10.2%

39.0%

RJ

36768

9.0%

48.0%

RS

29665

7.2%

55.2%

PR

25673

6.3%

61.4%

BA

20104

4.9%

66.3%

SC

18092

4.4%

70.8%

GO

13470

3.3%

74.0%

PE

13354

3.3%

77.3%

CE

10247

2.5%

79.8%

PA

9281

2.3%

82.0%

MT

8865

2.2%

84.2%

ES

8666

2.1%

86.3%

AM

7885

1.9%

88.2%

MS

7280

1.8%

90.0%

DF

6671

1.6%

91.6%

MA

5956

1.5%

93.1%

RN

4820

1.2%

94.3%

PB

4804

1.2%

95.4%

PI

3855

0.9%

96.4%

AL

3668

0.9%

97.3%

RO

3148

0.8%

98.0%

SE

2950

0.7%

98.8%

TO

2421

0.6%

99.3%

AC

1201

0.3%

99.6%

RR

748

0.2%

99.8%

AP

727

0.2%

100.0%

Fonte: STN, Boletim de Finanças Regionais de 2019


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.              
  

Comentários

Antonia
MARIA DE LOURDE...

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.