“Brasil em primeiro lugar” na contenda entre China e Estados Unidos
Primeiro, alguns dados do comércio brasileiro. O saldo da balança comercial de julho foi de US$ 8,1 bilhões, elevando o superávit acumulado nos sete primeiros meses do ano para US$ US$ 30,4 bilhões. A principal contribuição para esse superávit foi da China[1] — US$ 23,3 bilhões, um aumento de US$ 7,2 bilhões em relação ao mesmo período acumulado em 2019. Com a América do Sul e a União Europeia, o Brasil registrou saldo positivo de US$ 3,3 bilhões e US$ 1,7 bilhaõ, respectivamente. A balança comercial com os Estados Unidos foi deficitária em US$ 3,1 bilhões.
A participação da China nas exportações ou importações brasileiras superou a dos principais parceiros no acumulado do ano até julho. No caso das exportações, a participação da China foi de 38% e o segundo lugar registrou percentual de 13,4% (União Europeia. Quando se descreve a participação do comércio por grandes regiões, a Ásia passa a responder por quase 50% das exportações brasileiras, seguida da Europa (18,7%), América do Norte (12,6%) e América Latina (11,2%). Conforme analisado no Boletim de Comércio Exterior (ICOMEX)[2] edição de julho, esse resultado para a Ásia e a China não é uma questão conjuntural. A ascensão da participação da China iniciada em meados da primeira década dos anos 2000 tem sido contínua e acompanhada de um aumento das commodities na pauta exportadora.
Participação das regiões nas exportações/importações brasileiras: jan-julho 2020
Fonte: Balança Comercial/SECEX.
O comércio exterior brasileiro era descrito tradicionalmente como o de um “global trader”, um dos argumentos que embasavam a importância de uma estratégia multilateral do Brasil nos fóruns comerciais. O país tinha um comércio relativamente equilibrado entre as principais regiões (Estados Unidos, União Europeia e América Latina). Quando se debatia se o país deveria aderir à Alca (projeto liderado pelos Estados Unidos para a criação de uma área de livre comércio das Américas) ou somente perseguir o acordo Mercosul-União Europeia nos anos de 1990, a resposta da politica externa e dos que operavam no comércio exterior era majoritariamente de que, se fizermos acordo com um lado, temos que fazer com outro.
A nova estrutura da pauta de exportações brasileiras significa que devemos deixar de lado o foco multilateral do comércio? Não. As exportações de commodities são bem vindas, mas a diversificação da pauta a partir de um aumento da produtividade e, logo, da competitividade dos produtos industriais e dos serviços, deve constar da agenda de crescimento econômico do país. E, nesse caso, as estratégias e as oportunidades variam por mercados. A pauta brasileira está concentrada na Ásia, mas a concentração de produtos varia por mercados. Os Estados Unidos alternam com a Argentina na posição de primeiro mercado de destino das exportações de manufaturas brasileiras. Na União Europeia, a pauta também é diferenciada entre os seus países membros.
Da mesma forma, interessa ao país manter o foco multilateral, assegurando canais diversificados em relação à importações e investimentos. O multilateralismo nas relações econômicas não é uma opção ideológica, mas parte da análise das condições coma as quais o país convive.
A política comercial não está dissociada, porém, da política externa. Na literatura acadêmica foram cunhados os conceitos de autonomia pela distância e autonomia pela participação, que passaram a integrar a análise do histórico das relações diplomáticas do país. [3] Todos esses conceitos pressupõem um alinhamento entre a política comercial e a política externa.
A autonomia pela distância está associada aos tempos da Guerra Fria, quando, exceto em alguns períodos, o país procurou se distanciar de um alinhamento irrestrito, e quando o contexto permitiu adoção de políticas comerciais que contrariavam os compromissos internacionais, como restrições quantitativas às importações. Autonomia pela participação corresponderia ao final dos anos de 1980 e os anos de 1990, quando o país passou a privilegiar uma estratégia de maior presença na economia global e procurou, através de suas políticas comerciais, como o Mercosul, fortalecer o seu papel no cenário global, além de acatar os compromissos no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC). Posteriormente, conceitos como autonomia pela integração, autonomia e determinação das agendas foram incorporados.
A nossa mensagem básica é que, em todos eles, os objetivos da política comercial e a política externa caminhavam juntos. Tensões sempre podem existir, mas são resolvidas de forma a não provocarem estratégias dissonantes entre a política comercial e a política externa.
No momento atual, a condução das duas políticas provoca ruídos. A China é o principal parceiro comercial, mas “não é um parceiro confiável”. É preciso garantir o mercado chinês para as exportações brasileiras, mas se questiona a condução das políticas chinesas em áreas como tecnologia e sua atuação, de forma geral, no cenário político e econômico global. Declarações de apoio ao atual governo dos Estados Unidos por representantes do governo brasileiro transformam relações de Estado em relações de afinidades partidárias entre governos.
A tensão entre os Estados Unidos e a China não irá se dissipar tão cedo, mesmo que seja eleito o candidato do Partido Democrata. O que os Estados Unidos desejam é conter/controlar a expansão da China, em especial, na liderança das novas tecnologias. A lógica não é a mesma da Guerra Fria, quando a disputa se dava prioritariamente no campo da segurança. A tensão com a China se dá prioritariamente no campo econômico, embora o tema da segurança esteja presente e se confunda com o econômico, no caso da tecnologia. A China cresceu inserida no contexto de uma economia mundial regida pelas regras do sistema construído pelos Estados Unidos e seus aliados.
Como fazer conviver duas potências com modelos de desenvolvimento pautados em formas de atuação dos Estados nem sempre coincidentes é um desafio ainda não resolvido. A insistência dos Estado Unidos de defender que suas regras garantam “a level playing field” (um jogo leal) não faz sentido para a China. Para a China, a atuação das políticas de apoio aos setores industriais e o papel das empresas estatais é que permitem uma “concorrência justa”, pois integram o modelo de desenvolvimento que permite o seu crescimento e a melhora de condições da sua população.
Nesse contexto, o Brasil não ganha nada se escolher um lado, pois, para ambas as potências, não somos um ativo estratégico que possa levar à subjugação de interesses das potências em prol de demandas brasileiras.
Manter a autonomia para o Brasil não significa ficar alheio ou distante das transformações no mundo. A contribuição do país se faz na construção de propostas que permitam atenuar os conflitos no fórum multilateral a partir da identificação dos interesses dos setores brasileiros. Nesse caso, política externa e política comercial tem que caminhar juntas.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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