2024: Fim da reversão dos choques inflacionários
Desinflação mais forte do que o esperado nos EUA gerou bonança nos mercados. No Brasil, surpresa positiva em 2023 foi no crescimento. Mas dúvidas ligadas à insustentabilidade da política fiscal brasileira devem continuar em 2024.
Em 2023 houve forte surpresa positiva na inflação americana. A conta que se fazia – certamente a coluna pensava desta forma – é que, após a reversão dos choques inflacionários, a inflação iria se estabilizar em torno de 4-4,5%. Isto é, a inflação inercial seria dessa ordem. Dado que a meta é de 2%, sobraria para o banco central americano, chamado de Federal Reserve, ou simplesmente Fed, promover uma desinflação de 2-2,5 pontos percentuais.
A experiência do pós-guerra para as economias desenvolvidas é que a desinflação tem uma razão de sacrifício na casa de 1: a cada 1 ponto percentual de desinflação, é necessário que a taxa de desemprego aumente 1 ponto percentual. Ou seja, a política monetária teria que promover uma desaceleração do crescimento ao longo de um intervalo de tempo suficiente para que o desemprego se elevasse em 2-2,5 pontos percentuais. A taxa de desemprego teria que subir de 3,5% para 5,5-6%.
Para que o desemprego se eleve em 2-2,5 pontos percentuais ao longo de um intervalo de tempo de 1 a 2 anos, o crescimento acumulado precisaria ficar aquém do potencial em 4-5 pontos percentuais. O crescimento potencial é de 2% ao ano. Ou seja, ao longo de 2 anos, por exemplo, o crescimento precisaria ser entre 0% e -0,5%.
Ocorre que a reversão dos choques foi maior do que se imaginava. A inflação – medida pelo núcleo por exclusão do deflator implícito do consumo (indicador que o Fed emprega para operacionalizar o regime de metas de inflação) – voltou para 3%. Adicionalmente, há sinais de que o mercado de trabalho tem se ajustado perfeitamente – até o momento –, sem aumentos do desemprego.
Após o choque inicial em fevereiro e março de 2020 da pandemia, já a partir de abril, a economia americana estava se recuperando fortemente. A recuperação ao longo do segundo semestre de 2020 e de 2021 ocorreu com as pessoas ainda dentro de casa. Houve enorme desequilíbrio setorial da demanda em relação à oferta: todos demandavam bens de consumo. Forte desocupação nos serviços.
A expressão no mercado de trabalho desse desequilíbrio foi um imenso excesso de vagas abertas não preenchidas. Havia mais do que duas vagas de trabalho abertas para cada trabalhador desempregado. Historicamente esse número é inferior a 1.
Conjuntamente com a reversão dos choques inflacionários, ocorreu em 2023 forte ajuste desse desequilíbrio do mercado de trabalho. Tomando por base a situação no quarto trimestre de 2019, aproximadamente 5/6 do ajuste já ocorreu.
Além de a reversão de choques ter sido mais intensa do que se imaginava, o regime de metas de inflação tem funcionado bastante bem: em nenhum momento as pessoas consideraram a possiblidade de a inflação de longo prazo ficar acima da meta. E hoje as melhores medidas de expectativa de inflação indicam que a inflação em 2024 deve ficar na casa de 2,5% ou um pouco menos. Ou seja, a expectativa de inflação já indica que a meta inflacionária será praticamente atingida já em 2024. Somente nos últimos três meses de 2023, houve surpresa desinflacionária para o Comitê de Política Monetária do Fed de 0,5 ponto percentual.
A desinflação mais forte do que se esperava fez com que o mercado adiantasse em suas projeções implícitas o ciclo de corte da taxa de juros. O Comitê de Política Monetária do Fed considera três cortes de 0,25 ponto percentual, um por trimestre, a se iniciarem no segundo trimestre. O presidente do Fed, Jerome Powell, deixou bem claro que, a partir de agora, vê os riscos para a política monetária como simétricos: errar para mais e ter que aceitar uma desaceleração da atividade maior do que a necessária; ou apertar de menos e conviver com uma inflação acima da meta. Até agora os riscos era assimétricos. O Fed enxergava maior risco de errar para menos na política monetária do que errar para mais. O mercado, diferentemente do Fed, trabalha com cinco cortes, a se iniciarem no primeiro trimestre.
Para a atividade da economia americana, depois do crescimento mais forte em 2023, de 2,5%, espero queda para 1,5% em 2024, em função da política monetária. A taxa de desemprego deve se elevar pouco: de 3,8% para 4,2%. Praticamente um cenário de pouso suave.
A surpresa positiva na inflação americana gerou a bonança de mercado que tivemos em novembro e dezembro. Causou valorização do câmbio por aqui e alguma queda dos juros de longo prazo brasileiros. O alívio nos juros ajuda na dinâmica da dívida pública e o câmbio mais comportado ajuda na dinâmica da inflação, o que também ajuda nos juros e, portanto, na dívida. Todos esses fatos melhoram a percepção de risco doméstico.
Para a economia brasileira, a grande surpresa em 2023 foi na atividade econômica. Eu trabalhava com crescimento de 1% e teremos 3%. Parte da surpresa foi um crescimento bem maior do que o previsto da agropecuária, bem como seus impactos em outros setores, principalmente serviços de transportes. Mas também deve ter havido certa elevação da taxa de crescimento potencial da economia. Após tantas reformas – reforma do abono salarial e da pensão por morte em 2015; a Lei de Responsabilidade das Estatais em 2016; a reforma trabalhista em 2017; a substituição da TJLP pela TLP, a regulamentação da Letra Imobiliária Garantida (LIG) e a Duplicata Eletrônica em 2018; a Lei do Cadastro Positivo e a Lei da Liberdade Econômica em 2019; a reforma da Previdência, o novo marco do saneamento básico e o PIX em 2020; a autonomia do Banco Central, a nova Lei de Recuperação Judicial e Falência, o novo marco regulatório do gás natural, o novo marco cambial, o open banking e a criação dos depósitos voluntários no BC em 2021; a Lei de Estímulo ao Transporte por Cabotagem em 2022; e reforma tributária em 2023 –, a taxa de crescimento do produto potencial deve ter aumentado. Considero uma alta de 0,5 ponto percentual, de 1,5% para 2%. É modesto, mas representa um comportamento da produtividade do trabalho bem superior ao que tivemos de 1981 a 2022, de 0,5%. Dado que o crescimento da população em idade de trabalhar é aproximadamente 0,7% ao ano, um crescimento potencial de 2% significa crescimento da produtividade do trabalho de 1,3%. Ou seja, representa uma elevação de 0,8 ponto percentual em relação à média dos últimos 41 anos.
Para 2024, considero que a inflação se estabilizará em torno de 4% ao ano com Selic terminal de 9,5%. Penso que iremos nessa toada até 2026: IPCA a 4% e selic a 9,5% e, portanto, juro real de 5,5%. Dado que o juro neutro real – isto é, o juro real que estabiliza oferta com demanda e inflação estável – encontra-se na casa de 4,5% ao ano, penso que o juro real praticado será 1 ponto percentual acima do neutro. Isto é, navegaremos nos três anos que faltam do terceiro mandato de Lula com contração monetária de 1 pp.
O presidente Lula deu sinais de que pretende repetir, no seu terceiro mandato, o padrão de política econômica praticado no seu segundo mandato: pé no acelerador do gasto público e pé no freio com a política monetária.
A grande dúvida para o cenário deve-se à insustentabilidade da política fiscal, que continuará a pesar sobre nós em 2024. Em 2023 o déficit primário deve ser da ordem de 1,4% do PIB, e há enorme dúvida sobre o poder arrecadador das medidas aprovadas pelo Congresso em 2023, com o objetivo de elevar a arrecadação. Penso que o déficit em 2024 será na casa de 1% do PIB.
Dado que, para 2024, a meta é déficit zero, teremos revisão da meta em março ou maio. O presidente Lula já deixou claro que não deseja contingenciar. Para que não haja nenhum contingenciamento, a meta terá que ser revista de 0% para déficit 1% do PIB. Nesse caso, estaremos em um cenário ruim, em que pode haver alguma reação do mercado.
No entanto, é possível que Haddad convença Lula de que é melhor uma revisão menor da meta, para algo como déficit de 0,5% do PIB. A meta não seria cumprida, mas o contingenciamento em 2024 seria menor. Por outro lado, as outras duas medidas corretivas do arcabouço fiscal seriam acionadas: os gatilhos que impedem aumentos automáticos dos gastos em 2025 e um limite de gastos menor em 2026 (elevação correspondente a 50% do aumento da receita de 2025, e não a 70%).
Se não houver uma surpresa negativa na economia internacional, Lula chegará bem até o final de 2024. E 2025? Bem, 2025 fica para daqui a 12 meses.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de janeiro de 2024.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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