Macroeconomia

Analisando a reforma da Previdência: Militares

9 out 2019

Encerro minha série de doze textos sobre a reforma da previdência analisando o caso dos militares. Sei que os militares preferem se referir ao seu caso como “sistema de proteção social” em vez de “previdência”, mas como se trata de pagamento de benefícios durante a “reserva” ou inatividade da pessoa em questão, ou de pensões para seus dependentes, acho melhor tratar isso com a mesma lógica da previdência.

Para facilitar a exposição, dividirei o texto em três pontos: por que militares merecem tratamento especial, como isso é feito em outros países e qual é a proposta do governo.

Natureza Especial da Carreira Militar

Começando pelo tratamento especial, militares têm regime diferenciado de trabalho e aposentadoria em quase todos os países do mundo.

Como bem disseram vários representantes da categoria, durante o debate da previdência, a carreira militar tem risco de morte, proibição de greve, sem adicional noturno ou hora extra, sem FGTS e disponibilidade permanente, mesmo quando na reserva. Diante dessas condições, os militares se encaixam perfeitamente no quesito de aposentadorias especiais previsto na Constituição.

A principal questão em debate não é, portanto, se militares devem ou não ter tratamento especial, eles devem. A principal questão é quão especial deve ser este tratamento e há duas formas de complementares de responder isso.

A primeira é uma análise financeira, de quanto pesa a previdência ou “sistema de proteção social militar” (SPSM) no orçamento público. Segundo informações do governo e da Instituição Fiscal Independente:

“Hoje são gastos R$ 43,9 bilhões com pensões e para cerca de 300 mil militares e pensionistas, enquanto a União despende R$ 46,5 bilhões para 680 mil servidores do regime civil”

Os números também indicam que a proporção de pensionistas é bem maior entre militares (50%) do que entre servidores federais civis (38%), haja vista as regras mais favoráveis para dependentes de militares.

Com base nas informações acima, a lógica estritamente financeira recomendaria um ajuste maior nos benefícios concedidos aos militares, mas também é preciso levar em conta a natureza especial da carreira.

A segunda forma de responder se os benefícios dados aos militares brasileiros são excessivos deve se basear nas condições diferenciadas de trabalho dos militares, principalmente de risco e responsabilidade, como apontado anteriormente.

Porém, este tipo de avaliação é difícil do ponto de vista numérico, uma vez que simplesmente não existe equivalente civil à carreira militar. Assim, a melhor forma de responder se o tratamento adotado pelo Brasil é excessivo ou não é utilizar o caso de militares de outros países como referência.

Reforma Recente da Aposentadoria Militar nos EUA

Os leitores sabem que gosto de usar os EUA como exemplo ou referência para vários pontos de políticas públicas. No caso dos militares farei isso novamente porque as informações sobre as carreiras e pensões de militares são bem transparentes nos EUA.

Além disso, como o governo norte-americano tem o maior orçamento militar do mundo, com bases em várias partes do globo e ações durante quase todas as décadas desde o fim da 2ª guerra mundial, creio que os EUA são uma boa referência para as forças armadas de qualquer país.

Pois bem, quais são as regras de “reserva” ou “aposentadoria” na maior potência militar do mundo?

Em primeiro lugar cabe destacar que os EUA acabaram de implementar um novo sistema de aposentadoria para seus militares, o Blended Retirement System (BRS), com efeito imediato para todos novos recrutas a partir de 2018, e opção de mudança para quem já estava na ativa antes disso.

Mais especificamente, até dezembro de 2017, o sistema de aposentadoria militar dos EUA era um sistema de benefício definido, onde a pessoa poderia se aposentar após 20 anos de serviço, com 50% do seu vencimento final. Caso a pessoa ficasse até 40 anos em serviço, caso raro, o benefício chegaria a 100% do salário final.

Na prática a maioria dos militares norte-americanos se aposenta após 20 anos de serviço, com idade entre 40 e 45 anos. Caso a pessoa saísse do serviço militar antes de completar 20 anos, ela perderia direito a qualquer benefício.

Devido ao corte entre zero e 50% somente aos vinte anos de serviço, bem como a preocupações sobre o custo fiscal das aposentadorias militares o governo dos EUA fez uma reforma do sistema em 2016, com apoio do então Senador e ex-veterano da Guerra do Vietnã, John McCain.

No BRS, os novos recrutas agora têm um sistema misto, isto é, de benefício definido e contribuição definida. Em linhas gerais o sistema funciona da seguinte forma;

  • Cada ano de serviço militar gera um benefício equivalente a 2% do salário final na ativa. Assim, para obter um benefício igual a 50% do seu salário final, o militar deverá completar 25 anos de serviço ativo.
  • Em complemento ao sistema acima de benefício definido, o Departamento de Defesa (DoD) dos EUA faz uma contribuição automática de 1% do salário de cada pessoa na ativa, e aumenta tal contribuição para até 5%, caso a pessoa também contribua com o mesmo percentual.

As contribuições do DoD e dos militares vão para um fundo específico, no regime de capitalização, de modo a gerar um complemento ao sistema de benefício definido proporcional ao tempo de serviço.

Quem já estava em serviço militar antes de 1º de janeiro de 2018 pode continuar no sistema antigo, ou optar pelo ingresso no novo sistema. Na prática o ingresso só vale a pena para quem está no início de sua carreira militar, pois assim a pessoa “ganha” um sistema de capitalização com contribuição 1-para-1 do governo, em troca de trabalhar mais cinco anos para atingir o mesmo benefício definido do regime antigo.

A adesão ao novo sistema ficou aberta somente durante o ano de 2018 e os percentuais de adesão foram de 10% (Exército) a 36% (Fuzileiros Navais), como apresentado na figura abaixo.

Fonte: https://www.militarytimes.com/pay-benefits/2018/10/22/not-many-troops-are-opting-into-the-new-retirement-system/

Além do sistema de aposentadoria diferenciado apresentado acima, os militares norte-americanos também têm assistência médica na ativa ou na reserva ou aposentadorias, bem como deixam benefícios para seus dependentes.

O sistema dos EUA é um bom guia para outros países, mas no Brasil ainda estamos muito longe das regras de lá. Vejamos nosso sistema atual e a proposta de reforma apresentada pelo Governo Bolsonaro.

Sistema de Proteção Social Militar do Brasil

No Brasil os militares podem se retirar do serviço ativo, permanecendo em “reserva” até uma idade limite, quando então são “reformados”.

As principais condições de remuneração na reserva, reforma e pensão são as seguintes:

  1. 30 anos de serviço militar ativo.
  2. Transferência para reserva quando atingir idade entre 44 e 66 anos, dependendo do posto.
  3. Benefício igual último soldo na ativa (integralidade)
  4. Contribuição de 7,5% sobre os vencimentos, mesmo após reserva ou reforma, para custear pensões por morte dos dependentes.
  5. Contribuição de 3,5% para o Fundo de Saúde dos Militares.
  6. Isenção da contribuição de 7,5% para pensionistas, alunos de escola de formação, cabos e soldados.
  7. Concessão de benefício vitalício para filhas solteiras, para militares que ingressaram na carreira até 2001, mediante contribuição adicional de 1,5% sobre seus vencimentos.[1]

Além das regras acima, os militares brasileiros também têm direito a:

  1. Adicional de habilitação, quando na ativa, de 12% a 30%, dependendo do curso de capacitação.
  2. Ajuda de custo de 4 salários ao passar para a reserva.

A proposta de reforma de Bolsonaro foi encaminhada como Projeto Lei, PL 1645/2019, uma vez que o sistema de proteção social militar não é matéria constitucional.

O mesmo PL também prevê reestruturação das carreiras militares, com aumento substancial do gasto previsto para os próximos anos. Apesar desta segunda parte, segundo a cartilha apresentada pelo Ministério da Defesa, a expectativa do governo é de uma “economia líquida” de R$ 10,4 bilhões em dez anos.

Com base em uma análise do advogado Augusto Leitão, publicada no site JusBrasil, as principais mudanças trazidas pelo PL 1645/2019 são as seguintes:

  1. Economia de R$ 97,3 bilhões com a reforma do sistema de proteção social militar, e aumento do gasto em R$ 86,9 bilhões com a reestruturação de carreiras.
  2. Elevação da contribuição regular para pensões de dependentes, de 7,5% par 10,5% de acordo com o seguinte cronograma:
    1. 7,5% em 2019
    2. 8,5% em 2020
    3. 9,5% em 2021
    4. 10,5% e 2022
  3. Aplicação das alíquotas acima também aos pensionistas, bem como aos alunos em escolas de formação e aos cabos e soldados, que antes eram isentos de qualquer contribuição.
  4. Manutenção da contribuição adicional e opcional de 1,5% para gerar benefício vitalício para filhas solteiras, acessível somente para quem entrou em serviço antes de 2001.
  5. Elevação do tempo mínimo de serviço para a aposentadoria, de 30 para 35 anos, somente para novos entrantes.
  6. Quem já está na ativa poderá ingressar na reserva mediante um “pedágio” de 17% sobre o tempo que falta ser cumprido pelas regras antigas.
  7. Elevação da idade de ingresso na reserva, que passaria do intervalo de 44 a 66 anos para 50 a 70 anos, de acordo com a patente do militar.
  8. Redução no número de categorias de dependentes sem rendimento (de 8 para 2) e com rendimento (de 10 para 3).
  9. Pensão por “morte ficta” (quando o militar é expulso ou excluído do serviço) passa a ser proporcional ao número de anos na ativa. Antes era integral ao último salário na ativa.
  10. Redução de 10% no efetivo permanente das forças armadas.
  11. Aumento do adicional de habilitação, por curso de qualificação, que hoje varia de 12% a 30%, para 12% a 70%. Os adicionais dependem da habilitação e patente do militar, da seguinte forma:

Cursos

Graduação

Altos Estudos Categoria I de 30% para 73%

Of. Gen, Cel e Sub-Tenente

Altos Estudos Categoria II
de 25% para 68%

Cel, Ten Cel, Maj e Sub-Tenentes e 1oSGT

Aperfeiçoamento de 20% para 45%

Cap, 1oTen, 1oSGT e 2 oSGT

Especialização de 16% para 26%

1 oTen, 2oSGT, 3oSGT

Formação mantido em 12%

2 oTen, 3oSGT, CB e SD

Fonte: Ministério da Defesa

  1. Criação do “adicional de disponibilidade”, que passará a integrar a remuneração militar, para compensar o dever que todos militares têm de estar em prontidão para atuar quando for preciso, de acordo com a seguinte tabela:
    1. 32% para Cel, Subtenente e Suboficial
    2. 36% para Tem Cel, Cap de Fragata
    3. 20% para Major, Cap de Corveta e 1º Sgt
    4. 12% para Capitão, Capitão-Tem e 2º Sgt
    5. 6% para 1º Tem e 3º Sgt
    6. 5% para Demais Militares
  2. O adicional de disponibilidade não poderá ser acumulado com o adicional por tempo de serviço, para os militares que ingressaram no serviço até 2001.
  3. Aumento da indenização quando da transferência para a reserva, de 4 para 8 vezes o soldo do militar.
  4. Manutenção do adicional de gratificação, de 30%, para militares inativos, contratados para atividades civis em órgãos públicos.

Passando à análise, no quesito de aposentadoria, a proposta do governo é boa, pois aumenta o tempo de serviço necessário para aposentadoria, bem como o percentual de contribuição dos militares para financiar pensões aos seus dependentes. Também deve ser destacada a ampliação da contribuição para pensionistas e outras categorias antes isentas.

Apesar das mudanças acima, o regime de proteção social-militar continua no formato de benefício definido, o que também deveria ser motivo de reavaliação. Tomando os EUA como referência, bem como as novas regras criadas para o RGPS e RPPS, o sistema militar poderia combinar os sistemas de benefício definido, até um valor máximo, e contribuição definida, acima de tal valor.

Passando à reestruturação de carreiras, o PL 1645/2019 representa um grande aumento salarial, sobretudo para militares de patente mais elevada. Todos os adicionais existentes foram simplesmente mantidos ou elevados, isso em um contexto de forte restrição fiscal, no qual o governo está trabalhando em uma grande reforma administrativa de suas carreiras civis, exatamente na direção contrária da adotada para os militares.

Não é razoável aplicar as mudanças necessárias somente aos servidores civis enquanto se aumenta o tratamento especial dado aos militares. Nesse sentido, a melhor ação nesse momento seria aprovar as mudanças nas contribuições e regras de reserva, inatividade e pensões dos militares, deixando a questão de reestruturação de adicionais e gratificações para um segundo momento, após a reforma administrativa das carreiras de servidores civis.
 

Conclusão

A proposta de reforma do sistema de proteção social militar tem pontos positivos e reduz o gasto do governo com esse tipo de programa. Mais importante, como várias carreiras no nível estadual seguem as regras dos militares, as propostas de reforma previdenciária contidas no PL 1645/2019 são altamente positivas e merecem aprovação pelo Congresso.

O problema está reestruturação das carreiras, pois o PL 1645/19 concede aumentos e benefícios aos militares que são incompatíveis com a realidade fiscal e econômica do país, além de andarem na direção oposta da reforma administrativa em construção para os servidores civis.

Cabe destacar que a economia líquida apresentada no PL precisa ser mais bem detalhada pelo governo, de modo que a sociedade possa saber quanto custa cada item proposto. Por exemplo, um cálculo importante é saber o custo da reestruturação de carreiras caso o efetivo não seja reduzido em 10% como anunciado. No mesmo sentido, a sociedade precisa saber quanto custariam os novos adicionais de habilitação e disponibilidade, bem como quanto custa a gratificação pelo exercício de atividades civis.

Com base nas considerações acima, minhas sugestões são as seguintes:

  1. Apresentar mais detalhes do gasto militar com pessoal, na ativa e na reserva, bem como com pensionistas. O Ministério da Defesa deve apresentar levantamento trimestral de seu gasto com pessoal, incluindo abertura por gratificações, patentes, tipos de pensões, assistência médica e outros tipos de remunerações, com dados agregados, como já acontece com o serviço civil.
  2. Aprovar todas as mudanças das “regras previdenciárias” dos militares propostas no PL 1645/2019.
  3. E, enquanto não se aprovar a reforma administrativa para servidores civis, rejeitar os seguintes pontos do PL 1645/2019:
    1. aumento da gratificação por habilitação;
    2. criação do adicional por disponibilidade, uma vez que o ingresso na carreira militar pressupõe a concordância com os requisitos especiais de tal função; e
    3. aumento da indenização quando da transferência para a reserva, de 4 para 8 vezes o soldo do militar.

Por fim cabe destacar que, além da proteção do território e do povo, nossos militares já contribuíram e podem continuar a contribuir muito para o desenvolvimento do Brasil. Para que isso aconteça é importante que os militares continuem a ser exemplo de dedicação e profissionalismo para toda a sociedade, com tratamento especial sim, mas sem exageros em face da realidade econômica e social dos demais brasileiros.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 


[1] Segundo matéria da BBC de 2019: “Só o Exército tinha, no início do ano, mais de 67.600 filhas de militares recebendo um total de R$ 407 milhões por mês - o que dá um valor de mais de R$ 5 bilhões por ano. A Aeronáutica e a Marinha não divulgam os valores, apesar de se tratarem de dados públicos. No total, são mais de 110 mil filhas de militares recebendo pensões.”

Comentários

Helena Lopes
Jose da Silva
Carlos silva
Carlos Roberto Silva

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