Macroeconomia

Analisando a reforma da Previdência: o novo abono salarial

23 abr 2019

Retorno à reforma da Previdência, para analisar um dos pontos da PEC (proposta de emenda constitucional do governo). Como apontei em texto anterior, dividir a discussão em 12 grandes temas pode tornar o debate menos difícil. Meu primeiro tema é a mudança proposta para o abono salarial, porque tenho opinião diferente tanto do governo quanto da oposição neste assunto. Em outras palavras, apanharei dos dois lados, mas vamos em frente.

Começando com um pouco de história, o abono salarial foi criado pela ditadura militar (sim, foi ditadura) nos anos 1970. Trata-se de um benefício financiado pelas contribuições ao Programa de Integração Social (PIS) e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP), que hoje também inclui o seguro desemprego.

A ideia original do abono salarial era conceder benefício social a trabalhadores de baixa renda, na forma de um salário mínimo. Naquela época o salário mínimo era bem menor do que hoje, cerca de R$ 700/mês a preços de 2019 (Figura 1), e ainda não havia outros programas sociais como o Bolsa Família e o seguro desemprego para auxiliar trabalhadores em dificuldade.

Figura 1

No formato atual, dado pela constituição de 1988, o abono salarial é um direito dos trabalhadores com salário menor ou igual a dois salários mínimos. Mais especificamente, se a trabalhadora estiver inscrita no PIS/PASEP por pelo menos cinco anos e tiver emprego formal com remuneração de até dois salários mínimos neste ano, ela tem direito a receber abono de um salário mínimo no próximo ano. O abono salarial funciona, portanto, como um “décimo quarto salário” para trabalhadores de baixa renda.

Em 2015, o então governo Dilma fez uma modificação no programa, esclarecendo que o pagamento do abono salarial deveria ser proporcional ao tempo de trabalho. Essa mudança foi necessária porque, até então, quem trabalhava um mês recebia o mesmo benefício de quem trabalhava doze meses. Essa “pequena mudança” gerou grande debate no Congresso Nacional, mas acabou aprovada, pois se tratava de bom senso e justiça trabalhista.

Os efeitos da “minirreforma” de 2015 já se fazem sentir hoje, isto é, tornar o abono salarial proporcional ao tempo de serviço contribuiu para reduzir a despesa anual do programa de R$ 22,8 bilhões, em outubro de 2014, para R$ 17,8 bilhões, atualmente (figura 2).[1] A “economia” foi, portanto, de R$ 5 bilhões por ano, que por sua vez pôde ser alocada para reduzir a dívida pública (resultado primário) ou financiar outros programas do governo.

Figura 2

Passando ao momento atual, a PEC do governo inclui nova reforma do abono salarial: restringir o benefício para quem ganha até um salário mínimo e colocar na Constituição que o pagamento deve ser proporcional ao tempo de serviço. A tabela 1 apresenta a mudança no texto.

Tabela 1: mudança no parágrafo 3º do Artigo 239 da Constituição federal (grifos adicionados)

Redação atual (Constituição)

Redação proposta (PEC 06-19)

§ 3º Aos empregados que percebam de empregadores que contribuem para o Programa de Integração Social ou para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, até dois salários mínimos de remuneração mensal, é assegurado o pagamento de um salário mínimo anual, computado neste valor o rendimento das contas individuais, no caso daqueles que já participavam dos referidos programas, até a data da promulgação desta Constituição.

§ 3º Aos empregados que percebam de empregadores que contribuem para o Programa de Integração Social - PIS ou para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público - Pasep até um salário-mínimo de remuneração mensal é assegurado o pagamento de um abono salarial anual calculado na proporção de um doze avos do valor do salário-mínimo vigente na data do pagamento, multiplicado pelo número de meses trabalhados no ano correspondente, considerado como mês integral a fração igual ou superior a quinze dias de trabalho, observado o disposto no § 3º-A.

 

A mudança proposta do governo está na direção certa, mas ela é insuficiente, pois além de limitar o abono salarial a trabalhadores que ganham um salário mínimo, chegou o momento de transformar este programa em despesa discricionária do governo. Explico por partes.

Em primeiro lugar, o governo está correto em esclarecer, na Constituição, que o pagamento do abono deve ser proporcional ao tempo de serviço do trabalhador. Como o próprio Congresso já decidiu em 2015, quem trabalhou 12 meses tem direito a receber abono integral, quem trabalhou seis meses tem direito a receber 50% do abono e assim em diante, com fixação de um mínimo de um mês de trabalho para acessar o benefício. Como a decisão de 2015 foi por projeto de lei, constitucionalizar o tema consolida a interpretação vigente.

Em segundo lugar, também concordo com o governo que o abono deve ser restrito a quem ganha um salário mínimo. Muito mudou desde que esse programa foi criado nos anos 1970. Hoje há outros programas sociais para trabalhadores de baixa renda, há mais formalização do mercado de trabalho e, mais importante, o salário mínimo subiu consideravelmente e temos muitos trabalhadores desempregados ou na informalidade. Nesse contexto, não faz sentido pagar 14º salário para quem está empregado quando o mesmo recurso poderia ser empregado para gerar empregos formais, sobretudo via investimento público (direto) na construção civil.

Mais especificamente, segundo estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI), atualmente 48% dos trabalhadores privados com carteira assinada ganham até dois salários mínimos no Brasil (Tabela 2). Assim, um programa que foi pensado como auxílio para baixa renda virou complemento salarial para metade dos trabalhadores formais do setor privado, isto em um momento de alta taxa de desemprego.

Tabela 2: Trabalhadores com carteira assinada por faixa salarial em 2018

Faixa Salarial

Número de trabalhadores em milhões

% do total

Até 1SM

2,4

5,2

De 1 a 2 SM

21,5

46,6

Acima de 2 SM

22,3

48,3

Total

46,2

100,0

Fonte: IFI

 

Caso a proposta do governo passe, segundo a IFI, o número de beneficiários do abono salarial cairia 90%, liberando recursos para outros programas sociais ou para redução da dívida pública. Até as esquinas de Brasília sabem que prefiro direcionar os recursos para a geração de emprego neste momento, mas voltarei a este ponto logo à frente. Antes apresento minha proposta mais polêmica, que nem o governo apresentou, e pela qual apanharei de meus colegas de esquerda.

O abono salarial deve se tornar gasto discricionário da União! Isto já acontece com outras ações sociais importantes como o Bolsa Família, o Farmácia Popular e a política de valorização do salário mínimo. Não há que ser diferente para o abono salarial. Do ponto de vista legal, essa mudança significa dizer que o governo poderá (em vez de deverá) pagar abono salarial de até um salário mínimo, para trabalhadores de baixa renda, com valor do benefício proporcional ao tempo de serviço, na forma da lei.

Do ponto de vista econômico e político, transformar o abono salarial em despesa discricionária significa dar mais flexibilidade ao Congresso Nacional para decidir se e quanto alocar para tal programa, como já acontece com várias outras ações sociais. Tornar o programa discricionário não significa acabar com ele, mas sim chamar o Congresso a decidir, ano a ano, quanto alocar de recursos para o abono salarial em comparação com o uso dos mesmos recursos em outros programas sociais.

O abono salarial é um programa criado há quase 50 anos, que precisa ser repensado. Devemos manter o programa, mas o adaptar às necessidades e à realidade do Brasil de hoje. Do ponto de vista estrutural, o ideal é que tal programa se torne discricionário e restrito a trabalhadores que ganham até um salário mínimo. Do ponto de vista conjuntural, dada a alta taxa de desemprego, é necessário direcionar os recursos obtidos com a reforma do abono salarial imediatamente para o investimento público, sobretudo em construção civil de infraestrutura urbana, que tem alta capacidade de gerar emprego.

Resumindo todos os pontos acima, na questão do abono salarial, considero que:

  1. O governo está certo em definir que o valor do benefício deve ser proporcional ao tempo de serviço na Constituição Federal, de modo a consolidar a interpretação legal do tema vigente.
  2. O governo também está certo em revisar o programa, concedendo abono somente a trabalhadores que ganham um salário mínimo.
  3. O governo deveria ir além, tornando o abono salarial programa discricionário, mas temporariamente garantindo que ele será pago para trabalhadores que ganham até um salário mínimo até 2022, de modo a suavizar a transição.
  4. E o governo também deveria garantir que, até 2022, os recursos obtidos com a reforma do abono salarial fossem alocados em investimento público com alta capacidade de geração de emprego, e que estes programas fossem monitorados de modo transparente pelo Congresso e pela sociedade, com relatórios periódicos de execução orçamentária.

A prioridade hoje é recuperar a renda e o emprego mais rapidamente. É possível combinar iniciativas nesse sentido com reformas estruturais que reduzam o crescimento do gasto primário a longo prazo. Mas para que as mudanças sejam viáveis politicamente e adequadas economicamente, será preciso compromisso fiscal e social. No caso do abono, isto significa reformar o programa e utilizar os recursos obtidos com a reforma para gerar emprego para quem está desempregado. Depois, quando a economia voltar a crescer de modo sustentado, os recursos poderão abater a dívida.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

[1] Também houve flutuação abrupta nos pagamentos de 2015 e 2016, porque o governo postergou os pagamentos devidos no 2º semestre de 2015 para o início de 2016.

Comentários

Lih Fiernandes
Tomas Guanziroli
Sandra Terezinh...
Thiago
jesiniel limareis
Tenho dereito ao Pis Pasep abono salarial

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