Macroeconomia

Analisando a reforma da Previdência: Tempo de contribuição e valor do benefício

10 mai 2019

Meu quinto texto sobre a reforma da previdência é sobre a relação entre tempo de contribuição e valor da aposentadoria. Trata-se de tema central da proposta do governo, mas que pode ser resumido mais facilmente do que os assuntos que abordei anteriormente. Como os leitores verão, acho que o governo foi na direção certa neste quesito, mas ainda assim é preciso fazer grandes ajustes no texto da PEC 06-19 para aperfeiçoar tanto o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), quanto o Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS)

Antes de começar, cabe ressaltar que a relação entre tempo de contribuição e valor da aposentadoria aparece em várias partes da PEC 06-19, logo sua alteração requer mudanças em grande parte do texto proposto pelo governo. Como existem vários especialistas em “técnica legislativa” no Congresso, me concentrarei em questões de economia neste texto.

Tempo Mínimo de Contribuição

Hoje as pessoas podem se aposentar por idade no RGPS desde que tenham contribuído por, pelo menos, 15 anos. A proposta do governo é elevar este tempo mínimo para 20 anos, ao ritmo de 6 meses por ano, começando em 2020. Em outras palavras, o tempo mínimo de contribuição aumentará para 20 anos em 2029.

O aumento do tempo mínimo de contribuição é um erro, pois isso prejudicará principalmente os trabalhadores de menor renda, que passam grande parte de sua vida ativa na informalidade e, portanto, têm dificuldade de comprovar tempo de contribuição ao INSS. Como teoricamente um dos objetivos da reforma é preservar os mais pobres, o correto seria manter o tempo mínimo de contribuição em 15 anos, fazendo o ajuste para quem contribuiu por mais tempo no valor do benefício.

Novo cálculo do valor do benefício segundo o governo

Em várias partes da PEC 06-19 o governo propõe a seguinte regra de cálculo do valor da aposentadoria:

  1. Benefício calculado pela média aritmética de todas as contribuições, em vez da média aritmética das 80% maiores contribuições como ocorre hoje no RGPS. Como a maioria das pessoas não contribui pelo teto do INSS ao longo de toda sua vida trabalhista, na prática a mudança sugerida pelo governo significa que quase ninguém se aposentará pelo valor máximo pago pelo RGPS.
  2. Benefício inicial de 60% do valor da média aritmética de todas contribuições, aumentando dois pontos percentuais por ano, para cada ano que exceder 20 anos de contribuição. Por exemplo, quem contribuir por 35 anos se aposentará por 60%+15x2%=90% da média de suas contribuições. Para receber aposentadoria igual a 100% da média das contribuições, a pessoa terá que contribuir por 40 anos ao INSS.

A proposta do governo vai na direção certa, mas têm exageros. Por exemplo, como defendo que o tempo mínimo de contribuição permaneça em 15 anos, acho correto que o percentual inicial de reposição de renda seja de 60%, mantido o piso do benefício em um salário mínimo.

Porém, em economia tudo é mais complicado. Dado que o piso do benefício é de um salário mínimo, do ponto de vista microeconômico a regra do governo faz com que seja vantajoso contribuir para o INSS por apenas 15 anos somente se a pessoa ganhar mais do que R$ 1.633,34 por mês.

Mais formalmente, com salário de contribuição de R$ 1.633.34 temos 0,6x1633.34=998,00 que é o piso do benefício previdenciário independentemente do valor da contribuição. Assim, o piso de um salário mínimo desestimula contribuições acima de um salário mínimo por quem ganha entre 1 e 1,667 salários mínimos. Vale ressaltar que este “problema de design” é consequências de o piso do INSS ser um salário mínimo, não da proposta do governo em si.

No debate brasileiro sobre o “desincentivo à poupança” causado pelo piso previdenciário e assistencial de um salário mínimo, as soluções polares são:

  1. Acabar com o piso do INSS (que alguns defendem, mas eu sou contra) ou
  2. Criar renda mínima de um salário mínimo para todos os idosos (que sou favorável, mas custa muito para ser adotado no curto prazo).

Voltarei ao “desincentivo” do piso previdenciário e assistencial quando escrever sobre o benefício de prestação continuada (BPC), em outro texto desta série. Por enquanto, continuemos analisando “somente” a relação entre tempo de contribuição e valor do benefício.

Correção da regra de cálculo proposta pelo governo

Minha segunda sugestão é mais uma correção, já detectada por outras pessoas: o cálculo do valor da aposentadoria deve levar em conta todas as contribuições realizadas, mas aplicar a piso de 60% e o prêmio por anos adicionais de contribuição em ordem inversa ao valor do salário de contribuição. Parece complicado, mas é uma questão simples, quando utilizamos um caso concreto como exemplo.

Imagine dois homens, Michel e Luiz, que contribuíram pelo mesmo salário de 5 mil reais por 20 anos. A diferença entre os dois é que Luiz começou a trabalhar mais cedo do que Michel, fazendo outras contribuições durante 5 anos sobre um salário de mil reais. Qual será a aposentadoria de Michel e Luiz pela regra proposta pelo governo?

  • No caso de Michel, como ele contribuiu somente por 20 anos sobre 5 mil reais, o benefício será de 60%x5000=3000.
  • Já no caso de Luiz, como há contribuições sobre 5 mil reais por vinte anos e sobre mil reais por cinco anos, o benefício será de [60%+5x2%]x[(20/25)x5000+(5/25)x1000]=70%x4200=2940.

Em outras palavras, apesar de Luiz e Michel terem feito exatamente as mesmas contribuições durante vinte anos, e Luiz ainda ter feito contribuições adicionais por 5 anos, Michel receberá 60 reais a mais do que Luiz! Esta diferença é simplesmente um erro, uma desatenção de quem fez a proposta do governo, pois o princípio básico da reforma da previdência é premiar quem contribuir por mais tempo.

Felizmente há um modo de resolver o problema acima: o benefício deve ser calculado pela soma de dois fatores:

  • 60% da média das 240 maiores contribuições (20 anos)
  • Média ponderada das contribuições restantes, se elas existirem, com cada ano de contribuição adicional tendo peso de 2%, por ordem inversa de valor.

Traduzindo a sugestão acima em termos do exemplo que utilizamos, isto significa que o benefício de Luiz seria de 3100 reais por mês, calculado da seguinte forma:

  • O valor gerado pelas contribuições mais altas durante vinte anos (240 meses), isto é, 60%x5000=3000 por mês (igual ao Michel).
  • O valor gerado pelas contribuições mais baixas durante cinco anos (60 meses) 5x2%x1000=100 por mês.

A metodologia acima evitará os problemas da fórmula do governo, mas obviamente existem outras formas de corrigir o critério proposto na PEC 06-19.

Três propostas adicionais de ajuste no cálculo do benefício

Além de manter o tempo mínimo de contribuição para a aposentadoria em 15 anos e corrigir o erro de cálculo do benefício feito na PEC 06-19, tenho mais três sugestões de mudança no texto do governo, desta vez bem mais radicais:

  1. Considerando que o benefício será calculado pela média aritmética de todas contribuições do trabalhador, devemos garantir que isso será feito sobre o valor das contribuições ajustadas a preços de hoje (corrigidos pela inflação). Esta sugestão tem por objetivo utilizar o valor real das contribuições que os trabalhadores fizeram ao longo da vida, evitando que a inflação corroa o valor da aposentadoria.
  2. Considerando que o benefício será calculado pela média de todas contribuições do trabalhador, e que quase ninguém contribui pelo teto do INSS durante toda sua vida ativa, também devemos elevar o teto do INSS para seis salários mínimos. Hoje o teto está em R$ 5.839,45 por mês, ou seja, 5,88 salários mínimos. Minha proposta aumenta um pouco este valor e, a partir de então, indexa todas as aposentadorias ao salário mínimo. Obviamente esta proposta pressupõe que teremos política sustentável de reajuste do salário mínimo, que também defendo, mas não abordarei aqui para não alongar o texto.[1]
  3. Permitir que quem contribuiu por 35 anos tenha benefício igual a 100% da média todas suas contribuições (corrigidas pela inflação). Esta sugestão significa que, como propõe o governo, quem contribuiu por apenas 15 anos terá benefício igual a 60% da média de suas contribuições. Porém, diferentemente da proposta do governo, cada ano adicional de contribuição acima de 15 anos, não de 20 anos, deve elevar o percentual de reposição em 2 pontos percentuais. Assim, quem contribuiu por 30 anos terá benefício igual a 60%+15*2%=90% da média de suas contribuições, com a metodologia de cálculo baseado nos maiores salários que apresentei na seção anterior.

E que tal seguir o exemplo dos EUA?

Por fim apresento minha proposta “jacobina”, baseada no exemplo da República “bolivariano” dos Estados Unidos da América (EUA): quem contribuir por mais de 35 anos para a previdência deve receber um bônus. Os EUA e outros países avançados já fazem algo similar e o mesmo deve ser aplicado no Brasil.

O princípio lógico de minha proposta é claro: se devemos penalizar quem contribuiu por menos tempo do que achamos necessário (40 anos no caso do governo, 35 anos na minha opinião), também devemos premiar quem contribuir além do tempo que achamos necessário.

Antes de detalhar minha proposta, vale descrever como isso acontece nos EUA, pois o Presidente Bolsonaro gosta de prestar continência a coisas de lá.

Segundo a “National Academy of Social Insurance”, hoje os norte-americanos têm a seguinte situação:

  1. Aposentadoria por idade aos 66 anos dois meses com benefício integral.
  2. Aposentadoria antecipada disponível a partir dos 62 anos, mas com desconto elevado no valor do benefício. Mais especificamente, segundo o site da previdência social dos EUA, no caso de aposentadoria antecipada o benefício é reduzido em 5/9 de um por cento para cada mês anterior a “idade normal de aposentadoria”, até um máximo 36 meses. Se o número de meses de antecipação exceder 36, o benefício sofre redução adicional de 5/12 de um por cento, por mês.[2]
  3. Bônus para quem se aposentar mais tarde, dependendo da data de nascimento da pessoa e do tempo excedente de contribuição, calculado com base na “idade normal de aposentadoria”. Por exemplo, uma pessoa que chegasse a idade normal de aposentadoria em 2017 (66 anos e dois meses), poderia receber um bônus de 8% sobre o valor do seu benefício para cada ano adicional de contribuição.[3]

Agora minha proposta. Dado que não somos tão bolivarianos como os EUA, devemos dar um bônus para o adiamento da aposentadoria, mas menor do que fazem os “esquerdistas” do hemisfério norte. Quanto menor? Minha proposta é que, para cada ano de contribuição que exceder 35 anos, a pessoa tenha seu benefício de aposentadoria elevado em 4%. Assim, uma pessoa que contribuiu por 36 anos receberia 104% da média de suas contribuições ajustadas pela inflação, quem contribuiu por 37 anos receberia 108% e assim em diante, até atingir um teto de 120% para quem contribuiu por 40 anos.

Obviamente o cálculo do bônus deve obedecer a mesma sistemática que já detalhei anteriormente, com o adicional sendo aplicado primeiro aos maiores salários para evitar distorções.

E antes de concluir, cabe ressaltar que hoje já há pequeno incentivo para você adiar sua aposentadoria no Brasil. No serviço público isso se chama “abono de permanência” e consiste de 11% do salário para quem continuar trabalhando, enquanto a pessoa estiver trabalhando (não aumenta a aposentadoria). Já no setor privado o benefício aparece via fator previdenciário maior do que um para quem se aposentar com idade bem elevada (aumenta a aposentadoria), o que é possível, mas quase nunca acontece por que o adicional é muito pequeno.

Conclusão

Resumindo todas minhas propostas sobre tempo de contribuição e valor do benefício, considero que devemos:

  1. Manter o tempo mínimo de contribuição para aposentadoria por idade em 15 anos.
  2. Calcular o benefício com base em todas as contribuições do trabalhador, como propõe o governo, mas com garantia de correção pela inflação.
  3. Definir o valor do benefício como a soma de 60% da média aritmética dos 180 maiores salários do trabalhador (pois o tempo mínimo continua em 15 anos na minha proposta) com 2% por ano adicional de contribuição, sendo que cada percentual adicional deve ser aplicado primeiro sobre os maiores salários de contribuição restantes.
  4. Conceder bônus no valor da aposentadoria, de 4% para cada ano adicional de contribuição acima de 35 anos, sendo o valor da aposentadoria calculado de acordo com o descrito no item 3 acima.
  5. Dado que dificilmente alguém se aposentará pelo teto do INSS, elevar este valor de 5,88 para 6,0 salários mínimos, vinculando sua correção posterior à evolução do salário mínimo.

As mudanças acima alteram substancialmente o texto da PEC 06-19, necessitando a completa revisão de vários artigos propostos pelo governo. Não é tarefa difícil, mas exige atenção ao detalhe por parte dos especialistas em direito constitucional e previdenciário. Por isso não me aventurei a escrever emendas neste texto. Deixo isso para os especialistas em técnica legislativa.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Defendo aumento real do salário mínimo pela média do crescimento anual do PIB per capita verificado em quatro anos, como escrevi no jornal Folha de São Paulo.

[2] Por exemplo, também de acordo com a Social Security dos EUA: se a antecipação da aposentadoria for igual ao máximo permitido de 60 meses (cinco anos), o benefício será reduzido em 30%. Este percentual é calculado da seguinte forma: 36x(5/9)x1%+24x(5/12)x1%=20%+10%=30%.

[3] Para quem se interessar pelo sistema dos EUA, a tabela de bônus por aposentadoria adiada, de acordo com o ano de nascimento está disponível em: https://www.ssa.gov/oact/quickcalc/early_late.html. E aqui faço uma revelação: era este tipo de sistema que o Ministério da Fazenda pretendia propor na reforma da previdência do Governo Dilma Rousseff, se o governo não tivesse sido derrubado e os colegas do PT permitissem.

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