Ano novo, velhos desafios
Na análise de conjuntura, a virada de ano é sempre uma oportunidade de fazer um balanço do que ocorreu no ano que se encerra e alinhar as expectativas para aquele que começa. Isso é ainda mais verdade para um ano tão atípico como foi este.
Talvez nada retrate tão bem essa atipicidade como tentar recordar o que esperávamos para 2020 no seu começo. Difícil até de lembrar, como é difícil também acreditar que tenhamos custado tanto a perceber a dramaticidade do ônus humano e econômico que a pandemia traria. O choque e o tamanho da retração econômica que tiveram lugar quando isso finalmente ocorreu serão, todavia, difíceis de esquecer.
Após um primeiro semestre devastador, quando a pandemia levou ao fechamento dos negócios, à brutal redução da mobilidade e a uma grande saída de capitais, que já começara no final de 2019, o cenário mudou ao longo do segundo semestre, com destaque para a forte alta do PIB no terceiro trimestre. O ano promete terminar ainda sem recuperarmos o patamar de atividade do final de 2019, mas menos abaixo dele do que se temia em meados de 2020.
Do ponto de vista das perspectivas, o ano termina bem melhor. Dois fatos importantes ocorridos em novembro – as eleições nos EUA e o descobrimento de vacinas contra a Covid-19 – impactaram positivamente o humor dos investidores nos últimos meses de 2020. Assim, terminamos o ano com um forte aumento do apetite pelo risco, com a valorização dos ativos de países emergentes, como bem retratado pelo enfraquecimento do dólar em relação às suas moedas.
A eleição americana, dada a forte polarização política nos EUA, foi uma fonte de incerteza ao longo deste ano. Ainda que essa não vá desaparecer integralmente até terminarem as eleições para o Senado no estado da Geórgia, hoje o cenário político para o país já é mais claro. Se confirmado o cenário de um governo dividido, com os republicanos controlando o Senado, isso deve resultar em estímulos monetários maiores e por mais tempo.
Em relação à Covid-19, apesar da elevada incerteza no curto prazo, devido à intensificação da pandemia e à necessidade de medidas mais restritivas em vários países, o início das campanhas de vacinação emergenciais traz uma perspectiva favorável para a economia mundial nos próximos trimestres.
A vacinação já se iniciou no Reino Unido e nos EUA e é provável que comece na Europa nas próximas semanas. Também há perspectiva de anúncios de outras vacinas, com distribuição mais ampla nos mercados emergentes e no mundo em geral. Tudo indica que 2021 verá uma forte redução da pandemia e, consequentemente, dos seus impactos negativos sobre a vida e a atividade.
À medida que a população se vacine, deve ocorrer a normalização da economia, com destaque para o setor serviços, cuja perspectiva volta a ser positiva no médio prazo, consolidando a plena recuperação da atividade global e trazendo claros benefícios para o mercado de trabalho.
No entanto, apesar de a perspectiva de retomada ser evidente, há ainda uma enorme incerteza sobre sua velocidade ao longo do primeiro semestre. Assim, a primeira e a segunda metades do ano podem ter características bem distintas no que concerne à atividade econômica, em que pese os mercados financeiros já estarem focando quase que exclusivamente no quadro mais favorável do segundo semestre.
As vacinas, com as perspectivas positivas que abrem para a retomada da economia mundial, e a redução de riscos quanto à política econômica dos EUA e à manutenção da política monetária expansionista do Fed contribuíram para o aumento do apetite pelo risco e uma significativa rotação de portfolios. Dessa forma, o dólar foi enfraquecido e provocou-se grande fluxo de investimentos para os países emergentes, que se intensificou em novembro e promete continuar ao longo do próximo ano.
O grande destaque até aqui é a expressiva aceleração da economia chinesa, que é vista como um exemplo do que pode vir à frente para os demais países. De fato, a atividade econômica chinesa acelerou no quarto trimestre, como mostraram os indicadores de novembro. O comportamento da economia chinesa tem contribuído para um decoupling da Ásia no curto prazo, especialmente enquanto os EUA e a Europa ainda sofrem as consequências da intensificação da pandemia.
Esse cenário tem beneficiado os países da América Latina, o Brasil incluído, pois a valorização de ativos de risco trouxe um aumento dos preços de commodities, devido à expectativa de retomada do crescimento mundial e ao enfraquecimento do dólar. Um bom exemplo é a alta significativa do preço do minério de ferro, que acumula ganho de mais de 70% em 2020
Segundo o Instituto Internacional de Finanças (IIF), em novembro foi registrado um fluxo estrangeiro para os países emergentes de US$ 76 bilhões. A Ásia emergente tem sido o principal destino desses recursos, mas a América Latina também tem se beneficiado e até o Brasil foi um destaque positivo em novembro, com US$ 6 bilhões de fluxo no mercado de ações.
Esse quadro de redução de risco, enfraquecimento do dólar, aumento dos preços de commodities e retornos dos fluxos estrangeiros resultou em uma forte apreciação do real. Este saiu de RS/US$ 5,75 no começo de novembro para R$/US$ 5,06, na segunda semana de dezembro. A bolsa também subiu com força e os juros longos caíram. Porém, mesmo com essa expressiva valorização de ativos, ainda temos um longo caminho a percorrer para recuperar as perdas de 2020, pois a nossa moeda se desvalorizou muito mais que a de outros países latino americanos, como Chile, México e Colômbia, e segue bem abaixo do patamar do final de 2019.
Isso mostra, porém, que, sem dúvida, a melhora nas condições financeiras externas foram mais que suficientes para se sobrepor aos riscos domésticos. Mesmo tendo bons fundamentos externos, quando comparados aos nossos pares, a nossa principal fragilidade, que é de natureza fiscal, foi acentuada durante a pandemia e não dá sinais de alívio nesta virada de ano. O risco é que os ventos externos favoráveis reduzam o senso de urgência das reformas que são fundamentais para a manutenção da solvência fiscal.
As nossas contas públicas, que já estavam em uma situação preocupante antes da pandemia, pioraram ainda mais, diante do custo fiscal elevado para combater os efeitos da Covid-19. Nossa dívida pública bruta, que já era bem superior à da média dos emergentes, deve terminar o ano ainda mais distante da de nossos pares, já tendo chegado a 91% do PIB em outubro deste ano, 15 p.p. acima do valor do final de 2019. Ou seja, 2020 deixa uma herança de ainda maior fragilidade fiscal, tornando a trajetória para a dívida nos próximos anos ainda mais incerta e reforçando a urgência das reformas fiscais.
Entretanto, no curto prazo, governo e Congresso adiaram a discussão dessas reformas, a começar pela própria definição do orçamento de 2021, postergada para o ano que vem, para depois da eleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Nesse contexto, a questão que se coloca é se, na prática, o teto de gastos será mantido no próximo ano.
Nós acreditamos que sim, apesar de todas as pressões, e que a melhora do cenário externo pode ajudar essa decisão, na medida em que torna menos necessária a manutenção dos estímulos fiscais. Porém, para que o Brasil continue se beneficiando do ambiente externo favorável a médio prazo, é fundamental que o equilibro fiscal seja mantido. Para que isso seja possível, será necessária a aprovação de uma agenda de reformas que torne o cumprimento do teto crível ao longo dos próximos anos. O risco de complacência é elevado e pode aumentar com a melhora das condições financeiras domésticas, criando um risco não trivial de uma crise à frente, caso o quadro externo mude e os investidores estrangeiros resolvam outra vez tirar seus recursos do país.
Esse é o sumário do Boletim Macro Ibre de dezembro de 2020.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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