Macroeconomia

Autocontenção democrática: novos argumentos no debate com Celso

6 jun 2018

Nosso amigo Celso Barros reagiu neste blog a nossos comentários críticos ao seu texto na revista Piauí de março. Recuperando o debate, Celso, baseando-se no livro recentemente publicado “How democracies die”, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, argumentara que desde 2015 a direita brasileira vem quebrando a regra básica de convivência necessária para que as democracias perdurem: os políticos não devem atuar, sistematicamente, nas zonas cinzentas das regras. A democracia requer a autocontenção, “a disposição de se abster de utilizar todos os recursos institucionais de que se dispõe para atacar o adversário”.

Segundo Celso, se é verdade que a esquerda, com os seguidos erros de política econômica, foi responsável por nossa depressão econômica, a direita é responsável pela crise política.

Aqui começou a nossa discordância. Não nos parece que, no jogo democrático brasileiro, a “dita esquerda” – o grupo formado por PT e seus aliados – tenha praticado a regra de autocontenção. Muito pelo contrário. O PT joga nos limites da legalidade desde sempre, sem autocontenção. Pode se debater se o impedimento da presidente representou uma quebra dessa regra, e não estamos certos que tenha sido. Mas certamente as seguidas quebras da regra de autocontenção praticadas pelo PT nas últimas décadas contribuíram para a radicalização da disputa política.

Celso utilizou bons argumentos – como, aliás, apontou o leitor Rafael em comentário (postado em 21 de maio) ao nosso primeiro texto. Concordamos em parte, mas persistem pontos de divergência. Por isso, continuamos o debate. O diálogo talvez possa ajudar a entender onde estão as diferenças e, talvez, permita chegar a alguns novos consensos.

Vale iniciar esta conversa com os pontos de concordância.

Primeiro, a crise econômica é fruto dos erros de política econômica praticados provavelmente desde 2009, e com mais intensidade depois de 2011. Talvez o prólogo que iniciou a construção de nosso calvário tenha sido a desistência por Lula em 2005 de iniciar o ajuste fiscal estrutural, fato que ficou público com a entrevista da então chefe da casa civil Dilma Rousseff ao jornal o Estado de SP em novembro de 2005, acusando de rudimentar a proposta de ajuste.

Deve-se ressaltar que muitos dos setores que apresentaram severas dificuldades econômicas nos últimos cinco anos foram precisamente aqueles apoiados pelo governo a partir de 2008. Surpreendentemente, alguns economistas parecem ter dificuldade em compreender o custo de oportunidade dos investimentos realizados, ignorando a pesquisa recente sobre má alocação de capital e o seu impacto negativo sobre o crescimento econômico.

Segundo, a destruição da estabilidade fiscal ao longo do primeiro mandato de Dilma Rousseff, com mais intensidade no último biênio do seu primeiro mandato, com objetivos evidentemente eleitoreiros, representou clara quebra da regra de autocontenção de Levitsky e Ziblatt.

Terceiro, a votação da emenda de reeleição em 1997, válida para os titulares do cargo no mandato simultâneo à votação, também representou quebra de autocontenção.

Quarto, “não há evidência de viés sistemático da força-tarefa da Lava-Jato contra a esquerda. Procuradores, juízes, a PF, a PGR, todos parecem ter se esforçado para ir atrás de corruptos dos dois lados”. De fato, a recente prisão de Eduardo Azeredo pela justiça de Minas Gerais reforça a visão de que a Justiça brasileira, na qual está inserida a operação Lava-jato, não tem um viés partidário antiesquerda. (foi feita uma mudança neste parágrafo pós-publicação, porque a redação anterior dava a impressão errada de que a prisão de Azeredo fez parte da Lava-Jato, o que foi notado por alguns leitores)

Quinto, não há evidência robusta de que o PT seja um grupo bolivariano intolerante, e que isto tenha contribuído para o centrão decidir pelo impedimento da presidente Dilma. Tema para pesquisa futura. Nossa evidência casual sugere que sim, mas não há evidência sistemática desse fato. Celso está correto.

Sexto, parece ser verdade que a possibilidade de interromper a operação Lava-Jato pesou no cálculo do impedimento da presidente Dilma.

Nosso leitor Rafael considera que a emenda constitucional da bengala, que elevou de 70 anos para 75 anos o limite de idade para que os juízes do STF se aposentem compulsoriamente do tribunal, representou clara quebra de autocontenção da direita. Entendemos o argumento de Rafael, mas consideramos que, nesse caso, o Congresso Nacional atuou de acordo com sua atribuição, sem jogar na zona cinzenta.

A proposta já vinha ganhando força há alguns anos, até pelo aumento da expectativa de vida e a percepção de que a aposentadoria compulsória aos 70 anos se tornara precoce. Do ponto de vista do equilíbrio atuarial do sistema previdenciário do setor público, inclusive, seria importante que a idade para aposentadoria fosse aumentada para os demais servidores públicos. É possível que a quebra de confiança entre o Executivo e o Legislativo após a eleição de 2014 tenha contribuído para a decisão, mas não nos parece que tenha havido quebra de contenção. Reconhecemos, porém, que não temos argumentos decisivos para mudar a opinião de quem pensa diferente.

A primeira discordância que temos com Celso – e não está claro que seja discordância ou nossa incompreensão do seu argumento– decorre da sua afirmação de que a direita consegue “ligar e desligar” as instituições do sistema político ao seu bel prazer e em função de suas necessidades. Nas palavras de Celso em sua resposta:

“Mas é evidente que a direita conseguiu resistir muito melhor à ofensiva. A Lava-Jato colecionou fracassos desde o impeachment. Entre as mudanças evidentes de regra ocorridas após a queda da esquerda, o [primeiro] artigo [de Celso] destaca as seguintes:”

“Na verdade, o Brasil teve outra Constituição em 2015-2016, e ela foi revogada após o impeachment. Em 2015, delações eram provas suficientes para derrubar políticos e encerrar carreiras. Em 2017, deixaram de ser. Em 2016, era proibido nomear ministros para lhes dar foro privilegiado; em 2017 deixou de ser. Em 2016, os juízes eram vistos como salvadores da pátria, em 2017 viraram “os caras que ganham auxílio-moradia picareta”. Em 2015, o sujeito que sugerisse interromper a guerra do impeachment em nome da estabilidade era visto como defensor dos corruptos petralhas; em 2017 tornou-se o adulto no recinto, vamos fazer um editorial para elogiá-lo. Em 2015, presidentes caíam por pedaladas fiscais; em 2017 não caíam nem se fossem gravados na madrugada conspirando com criminosos para comprar o silêncio de Eduardo Cunha e do doleiro Lúcio Funaro. Em 2015, a acusação de que Dilma teria tentado influenciar uma decisão do ministro Lewandowski deu capa de revista e inspirou passeatas. Em 2017, Temer jantou tantas vezes quanto quis com o ministro do Supremo Tribunal Federal que o julgaria no TSE e votaria na decisão sobre o envio das acusações da Procuradoria-Geral da República contra ele, Temer, ao Congresso. Em 2015, Gilmar teria cassado a chapa Dilma-Temer. Em 2017, não cassou”.

Os fatos descritos por Celso ocorreram. Nossa discordância é que sejam sintomas de uma conspiração, como se de alguma forma “a turma que perde dinheiro quando a bolsa cai” fosse capaz de controlar as instituições do Estado brasileiro. Não nos parece ser o caso.

Como argumentamos anteriormente, a maioria das assimetrias apontadas por Celso são fruto do foro privilegiado. O fato de haver alguns casos em que o foro privilegiado não foi o motivo não nos parece suficiente para invalidar a nossa tese.

Achamos útil analisar os diversos casos mencionados por Celso. Cada caso parece ter suas especificidades, não justificando a tese de conspiração.

Certamente o juiz Sergio Moro excedeu seu papel ao liberar as gravações que inviabilizaram a ida de Lula ao ministério em 2015. O juiz tomou a decisão por sua conta e risco. Lula movimentou-se para sair de sua jurisdição e ele reagiu. Parece-nos que ao arrepio da lei. O importante é que a sua decisão foi de foro íntimo e baseado em suas convicções. O pessoal “da Faria Lima” não pressionou o juiz a tomar essa decisão.

O ministro do STF Teori Zavascki não ficou esperando ansiosamente Eduardo Cunha dar início ao processo de impedimento da presidente Dilma para em seguida cassar seu mandato. Não foi assim que ocorreu. Houve um longo processo em que as evidências de obstrução de justiça por parte do presidente da Câmara se avolumaram e o ministro parece ter avaliado que não era possível o segundo homem mais poderoso da República empregar todos os expedientes possíveis para impedir que a justiça agisse. Tomou decisão excepcionalíssima, como a qualificou em seu despacho, e, para muitos, desrespeitou a norma legal. Não houve pressão “do pessoal que perde dinheiro quando a bolsa cai” para que Teori deixasse Cunha atuar até iniciar o processo de impedimento.

Da mesma forma, é difícil saber as motivações de Gilmar Mendes. Por que ele mudou de ideia com relação à prisão de segunda instância? É possível que ele tenha genuinamente se arrependido de apoiar a prisão após a segunda instância e tenha revisto a sua posição inicial. É também possível que a sua mudança de opinião seja resultado de uma decisão política, o que deveria ser criticado. Mas não parece que o “pessoal da Faria Lima” forçou ou pressionou Gilmar Mendes a mudar de ideia.

O ônus da prova cabe a quem propõe a tese de conspiração e requer mais do que uma narrativa.

Além disso, como escrevemos no nosso primeiro artigo, a “turma da Faria Lima” não ganha dinheiro necessariamente com a subida da bolsa de valores. Essa “turma” ganha dinheiro quando antecipa os movimentos dos preços dos ativos, tanto faz se para cima ou se para baixo.

Quando a bolsa de valores sobe continuamente, quem se beneficia é o país. Afinal, as ações das empresas brasileiras se valorizam quando melhoram as perspectivas de crescimento da nossa economia, o que significa maior geração de renda e de emprego.

A nossa segunda divergência com Celso decorre das causas da assimetria no tratamento da “esquerda” e da “direita”. Parte dessa assimetria resulta dos diferentes modelos de ação política. O PT baseou sua construção e sua ação política na figura de uma liderança carismática extremamente popular. Se o Judiciário impede a candidatura desse líder, o dano ao projeto político petista será muito maior do que a prisão de qualquer liderança do outro lado.

Adicionalmente, a assimetria de poder não representa necessariamente quebra da autocontenção, como definida por Levitsky e Ziblatt. Essa é uma diferença sutil que, parece-nos, não está clara para Celso. Ele inicia seu argumento enfatizando a quebra da autocontenção e em seguida começa a falar de assimetria. Boa parte da assimetria decorre do fato de um grupo político, a “direita” na sua classificação, ter 70% do Congresso Nacional e a “esquerda” ter 30%. A assimetria, nesse caso, apenas reflete uma imensa maioria de um grupo político no Congresso, resultado de eleições democráticas.

Parece-nos que Celso e parte do PT têm dificuldade em aceitar a natureza das instituições políticas do presidencialismo brasileiro. A democracia não se resume a eleição para presidente, que representa a maioria do eleitorado. No nosso sistema de contrapesos institucionais, o Congresso representa os diversos grupos da sociedade, majoritários ou não. Um presidente na contramão da maioria do Congresso implica conflitos inevitáveis nas regras atuais. E um presidente consciencioso e cauteloso deveria saber desse fato.

Um Congresso que exerce as suas prerrogativas respeitando as normas legais, e elas são muitas na nossa democracia, não necessariamente representa a violação da autocontenção.

Para mudar esse estado de coisas, é necessário alterar as regras. E, para nós, não está claro que as prerrogativas do Congresso Nacional, incluindo a capacidade de bloquear decisões da presidência, seja ruim. O caso da Venezuela sugere que a supremacia do Executivo sobre o Congresso não contribui para uma democracia saudável.

A nossa terceira divergência com Celso ocorre sobre em que medida o PT praticou fair play – outra forma de nomearmos a autocontenção de Levitsky e Zilbatt.

Por mais interessante que seja o critério do Levitsky e Zilbatt, a sua avaliação nos casos concretos é difícil por dois motivos.

Primeiro, o conceito de autocontenção é quantitativo e não qualitativo. A disputa é natural da democracia, e inclui o recurso a eventuais mecanismos legais que possam parecer motivados por razões oportunistas. A ação política inclui confrontos e decisões performáticas, muitas vezes por divergências efetivas, outras para delimitar posições ou para impor derrotas ao outro lado. Nem sempre se trata de um jogo agradável de se assistir e excessos são eventualmente cometidos. Mas a assimetria de informação sobre os detalhes dos conflitos e a agenda política de longo prazo tornam difícil uma delimitação precisa dos limites das ações aceitáveis. Existe, assim, uma certa subjetividade na determinação de quando a autocontenção é ou não violada.

O segundo motivo que dificulta a operacionalização desse conceito, com base no trabalho de Levitsky e Ziblatt, é que as nossas instituições políticas são muito diferentes das norte-americanas. Medidas que violam a autocontenção no sistema político brasileiro não necessariamente a violam nos Estados Unidos e vice-versa.

Nossas instituições políticas são extremamente consensuais, como o voto proporcional, a enorme fragmentação partidária e os muitos instrumentos à disposição do presidente. Situações de impasse entre os Poderes são muito mais graves por aqui do que na política americana. Nas situações de impasse nos Estados Unidos, o Congresso, na prática, governa a política interna e os temas econômicos enquanto o presidente tem maior autonomia na política externa. No Brasil, por outro lado, esses conflitos podem levar ao impasse e à paralisia decisória e, consequentemente, a uma crise política.

Além disso, o sistema político no Brasil torna bem mais frequente um presidente com minoria nas duas Casas. A nossa Constituição, muito detalhada, gera duas consequências adicionais: primeiro, a maioria das reformas requer aprovação de emendas constitucionais (por 60% das Casas) ao ritmo de mais de três por ano (tem sido assim desde 1990); segundo, delega ao STF ampla liberdade para rever quase tudo que é decidido no Congresso.

Dessa forma, subir demasiadamente o tom da campanha eleitoral em um sistema tão consensual tem severas consequências. Afinal, o presidente eleito vai ser obrigado a negociar com pelo menos 60% do Congresso para aprovar emendas constitucionais, ou assistirá à paralisia do seu governo.

No livro “João Santana, um marqueteiro no poder”, de Luiz Maklouf Carvalho, Nizan Guanaes afirmou: “Se as pessoas acham que a campanha foi pesada (e ela foi) e que ela foi bruta (e ela foi), tem que ver os filmes negativos das campanhas americanas. Marketing político é UFC. O marqueteiro tem que ter estômago e os candidatos também. Eu não tenho. João Santana tem, e gosta. Por isso ele é o Anderson Silva”.

Nizan está certo nos fatos. No entanto, dado o nosso desenho institucional, não é possível ganhar uma eleição com o jogo bruto de João Santana. Não por moralismo. Simplesmente porque em seguida o presidente eleito terá que sentar com os seus adversários inúmeras vezes para aprovar emendas constitucionais. Nizan entende de marketing, mas não é político. Marina Silva, há tempos na política, cunhou a expressão “ganhar perdendo”. Sabemos hoje exatamente o seu significado.

A necessidade de o presidente brasileiro negociar com uma maioria qualificada do Congresso Nacional para aprovar reformas requer que a disputa eleitoral não resulte em rupturas insuperáveis. A autocontenção por aqui requer a preservação do diálogo entre o presidente e a maioria do Congresso, o que se tornou inviável depois da campanha de 2014.

O mesmo aplica-se ao estelionato eleitoral, talvez mais fácil de lidar nos sistemas políticos de outros países. Aqui é comum haver estelionato, mas há o risco de inviabilizar as alianças necessárias para construir a maioria necessária para governar. O estelionato de 2014 ultrapassou os limites da autocontenção, ao contrário do de 1998, que permitiu reformas importantes, como a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Temos, portanto, quatro exemplos de quebra da autocontenção do PT em 2014: estourar a saúde fiscal do Estado para reeleger Dilma; demonizar seus adversários de forma a tornar difícil qualquer conversa posterior com a maioria do Congresso; manipular a regras contábeis para ocultar a real situação das contas públicas nos últimos anos de seu governo; e, finalmente, praticar política econômica oposta a tudo que pregou na campanha eleitoral.

Deve-se destacar que as quatro quebras de autocontenção são quantitativas. Há elevado grau de subjetividade na caracterização desses fatos como quebra ou não de autocontenção. Em qualquer campanha eleitoral há, até certo ponto, ciclo político na despesa pública, algum uso oportunista dos números oficiais, certo grau de agressividade e demonização dos adversários e, finalmente, em geral os candidatos não são 100% explícitos com relação ao que farão. A nosso ver, com a “competência” usual, Dilma inviabilizou o diálogo político com a sua campanha eleitoral, que foi além do razoável em todas essas quatro dimensões.

Por mais difícil que seja essa caracterização, e Celso possa discordar da nossa avaliação, o debate pode ser construtivo. Quais os limites no uso da máquina pública para viabilizar uma reeleição? Defender uma política que se revela insustentável pode ser aceitável até certo ponto, mas e o uso de mecanismos para obscurecer a real situação das contas públicas? A nosso ver, a segunda estratégia ultrapassa o aceitável.

Por outro lado, devido ao excesso de consenso requerido pelas nossas instituições políticas, ser oposição irresponsável, isto é, apostar o tempo todo no quanto pior melhor – votar contra o plano Real, o Fundef, a LRF e a renegociação das dívidas estaduais (como fez o PT no governo FHC), ou votar contra o fator previdenciário (como fez o PSDB em 2015) – constituem quebras da autocontenção.

No sistema político americano, onde a Constituição delimita apenas princípios gerais, a quase totalidade das matérias é aprovada por maioria simples no Congresso. Insistimos no ponto: no sistema político brasileiro, fazer oposição sistemática e destrutiva, inclusive votando contra matérias em que há amplo entendimento de que são necessárias, representa quebra de autocontenção, pois a implementação de reformas usualmente requer maioria qualificada no Congresso.

Finalmente, o presidente no Brasil tem prerrogativas impensáveis no sistema americano e o sistema político se torna disfuncional quando há quebra de confiança entre o Executivo e o Legislativo. A lei de impedimento brasileiro de 1950 caracteriza crime de responsabilidade de forma muito ampla. Essa lei, na prática, é parlamentarista no mérito e presidencialista no rito.

O STF referendou esse entendimento quando decidiu não reformar a decisão do Senado no mérito. É possível propor outro mecanismo para resolver conflitos entre o Poder Legislativo e o Executivo. Porém, por enquanto, o instrumento que temos é o impedimento como descrito pela lei de 1950.

Assim, não está claro que o impedimento representa necessariamente quebra de autocontenção. E não há nada de errado em nosso presidencialismo ter um instrumento com sabor parlamentarista. Deus não criou os sistemas políticos antes de descansar no domingo. As diversas sociedades apresentam sistemas políticos peculiares e é perfeitamente possível haver características parlamentaristas em um sistema presidencialista e vice-versa.

Deve-se mencionar que o PT é o partido campeão de pedidos de impedimentos – 50 em cerca de 135 no total. Se a lei do impedimento permite atuar na zona cinzenta, nenhum partido utilizou-a de forma tão generalizada quanto o PT.

Celso argumenta que “O problema dos governos petistas com o Congresso era bastante objetivo: os governos petistas eram bem mais diferentes ideologicamente dos congressistas do que os governos tucanos. Não havia nenhum cenário em que a articulação da maioria parlamentar pelo PT não fosse mais difícil do que pelo PSDB. E, note-se, a predominância conservadora no Congresso tem uma de suas origens na circunstância de termos uma classe política herdada do regime militar. Supondo, como é razoável, que ser politicamente forte ajuda a continuar politicamente forte, a direita largou no período democrático com uma dianteira bastante razoável”.

A afirmação encerra uma meia verdade, afinal, o governo FHC não foi um governo de direita. Difícil entender que Celso não reconheça que em nenhum país do mundo um governo que eleve a carga tributária e aumente o gasto social seria considerado de direita.

Os tucanos lutaram contra o governo militar da mesma forma que o petismo. Talvez até mais. As instituições herdadas do governo militar dificultaram o governo FHC da mesma forma que dificultaram a vida dos governos petistas.

O que distinguiu os governos FHC e os de Lula e Dilma foi a maneira de lidar com necessidade de construir a maioria no Congresso nacional para aprovar reformas.

Como mostram os trabalhos de Carlos Pereira e seus coautores, os tucanos decidiram construir coalizões ideologicamente menos heterogêneas e mais próximas da ideologia mediana do Congresso; além de respeitar a proporcionalidade dos partidos da coalizão na composição dos ministérios. E, exatamente por praticar a autocontenção na relação com o Congresso, a gestão no dia a dia do relacionamento do Executivo com o Legislativo foi menos custosa na concessão de benefícios do que ocorreu com os governos do PT. Há evidência empírica desse fato.

Nós também discordamos do argumento de Celso de que o maior crescimento do gasto social sob o petismo é suficiente para caracterizá-lo como de esquerda e diferenciá-lo dos governos tucanos.

O gasto social cresceu muito no período tucano, como também a carga tributária. A diferença de crescimento entre os governos FHC e Lula é pequena, 1,4 ponto percentual (pp) do PIB com FHC e 1,8 pp do PIB com Lula. E esses gastos ocorreram em diferentes circunstâncias. Celso, bem como todos os petistas que conhecemos, se recusa a fazer o contrafactual: qual teria sido o crescimento do gasto social de um governo Lula eleito em 1994? FHC administrou o rescaldo de uma redemocratização complicada que desaguou em uma hiperinflação, e teve contra si uma oposição muito violenta e disfuncional, que votou contra várias reformas hoje reconhecidas como benéficas para o país, como o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Lula recebeu uma economia com problemas, mas bem mais arrumada do que FHC, além de ter sido beneficiado por condições internacionais favoráveis e teve o apoio da oposição para a aprovação de muitas reformas. Controlando-se pelas condições de contorno, o crescimento do gasto social sob FHC não destoa em comparação com o sob Lula.

Os economistas comparam a evolução dos indicadores do Brasil com os dos demais países emergentes para avaliar em que medida os resultados foram mais significativos no governo Lula do que no governo FHC. A resposta é “não foram”.

A economia cresceu mais no governo Lula, mas o mesmo ocorreu nos demais países emergentes. Os gastos sociais cresceram menos no governo FHC, mas as circunstâncias externas eram bem menos favoráveis.

Quando comparado com o crescimento econômico dos demais países emergentes, a gestão FHC foi mais bem-sucedida do que a gestão Lula, como apontam os trabalhos de Vinicius Carrasco, João Manoel Pinho de Mello e Isabela Duarte. Além disso, o salário mínimo cresceu perto de 20% acima da inflação em cada um dos mandatos de quatro anos de FHC e Lula, a diferença sendo de poucos pontos percentuais. A pobreza extrema caiu na imensa maioria dos países emergentes na década de 2000, não apenas no Brasil. Muito do que atribuímos ao governo Lula foi apenas a marola de um mundo bem melhor na sua época do que nos anos FHC.

Como afirmamos no início deste texto, difícil discordar que a emenda da reeleição feriu a autocontenção e queimou a imagem de FHC irremediavelmente. Mas não afetou a sua governabilidade. FHC reeleito conseguiu promover um forte ajuste fiscal, retomou o crescimento da economia, mesmo que pouco (mas em linha com os demais latino-americanos) e entregou o governo de forma civilizada para a oposição. O conjunto da obra não foi bolivariano.

A maioria dos políticos em 2015, após as quatro quebras de autocontenção pelo PT em 2014 (estelionato, violência da campanha, expansão fiscal e mascaramento da contabilidade pública), e após o seu histórico de, por anos, apostar no quanto pior melhor, podem ter achado que o partido era bolivariano. Vale lembrar que o PT quebra regularmente acordos no Congresso, tem muita inabilidade política, não apoiou o ajuste fiscal de Levy e defendeu (e defende) os governos de Chávez e de Maduro.

Segue, portanto, o tema mais importante do artigo original de Celso. Para ele, o impedimento da presidente Dilma foi clara quebra de autocontenção. Temos dificuldade de concordar. Um exercício interessante seria inverter os termos da equação.

É útil imaginar o que o grupo político petista faria caso estivesse do outro lado em 2015. Suponha um governo FHC absolutamente inábil politicamente – recém-reeleito, perde a presidência da Câmara para um deputado que o combate –, enfrenta oposição de 70% do Congresso, além de ter um vice-presidente de um partido ligado a estes 70%. FHC, nesse exercício, teria sido reeleito mentindo deslavadamente sobre a política econômica, demonizando os adversários, além de destruir a estabilidade fiscal em diversos pontos percentuais do PIB. Adicionalmente, o país atravessaria a segunda maior perda de PIB per capita dos últimos 120 anos e a maior taxa de desemprego de sua história, com forte mobilização popular contra a presidência da República. Será que o PT não iria reunir 70% da esquerda e impedir o governo FHC?

Não se deve esquecer que o governo Dilma adotou critérios e práticas contábeis que mascaravam a real situação das contas do governo. Foi necessário mais de um ano para que a contabilidade pública fosse refeita segundo os parâmetros internacionais de modo que a sociedade tivesse ciência da real degradação do país. Fosse uma empresa privada, seria considerado crime.

Sempre defendemos que teria sido melhor para o futuro do país que os políticos tivessem feito um acordo de salvação nacional, com a maioria votando a favor do ajuste fiscal, independente de coloração ideológica, e que deixassem a disputa política para a próxima campanha eleitoral.

Era mais ou menos isso que o petismo parecia esperar da oposição em 2015, mas sem nem mesmo defender o ajuste fiscal, muito menos votar a seu favor. Celso pede da oposição uma autocontenção que o PT jamais praticou. Pelo contrário, o PT, no governo, pareceu sempre esperar a responsabilidade da oposição enquanto muitas vezes defendia o populismo na tribuna.

Celso afirma que, diferentemente do caso Collor, o impedimento de Dilma resultou em troca de governo. Entendemos seu argumento, mas ressaltamos que não houve troca de política econômica, que foi alterada já logo depois da eleição de 2014. Adicionalmente, quem assumiu depois do impedimento foi o vice-presidente eleito na chapa presidencial. Além disso, Dilma ganhou por pequena margem, com ajuda da máquina do PMDB, sendo muito bem votada no triângulo mineiro, por exemplo, região tipicamente não petista.

A máquina do PMDB não foi essencial para construir a pequena maioria que elegeu Dilma? Quando Celso afirma que a “turma mudou”, ele deveria lembrar que a mudança foi decorrência do grupo petista ter escolhido um vice-presidente que era, segundo os próprios termos de Celso, do outro grupo político, da “outra turma”. E que se não tivesse um vice “da outra turma”, talvez Dilma não tivesse sido eleita presidente.

Se as regras do jogo permitem condições tão amplas para o impedimento de um presidente, é necessário levar este fato em consideração no momento de escolher um vice. O petismo deve ter avaliado que os ganhos eleitorais que obteria ao escolher Temer como vice-presidente na chapa eleitoral compensavam os riscos de compor com a “outra turma”. O PT parece justificar o oportunismo político apenas quando a seu favor.

Finalmente, os petistas e seus aliados minimizam o impacto do seu apoio ao regime da Venezuela. Há sinais cada vez mais claros de que parcela da “dita” esquerda não abraça os valores democráticos. Boulos apoia abertamente o regime venezuelano. Vanessa Grazziotin também. A maneira como eles tratam os crimes de sangue de Chávez e Maduro é totalmente diferente da forma como eles tratam os crimes de sangue da ditadura militar brasileira. “Há dois lados na Venezuela”.

Ora, o mesmo argumento foi utilizado pelos militares brasileiros no fim da ditadura: havia dois lados. Há por parte de intelectuais e apoiadores do petismo e da “dita” esquerda uma surpreendente tolerância com as experiências autoritárias da Venezuela, de Cuba, da Nicarágua, de Angola, etc. Como Marcos já disse, a esquerda brasileira lembra a direita americana durante a guerra fria. Bastava um ditador falar poucas frases contra a ameaça comunista para ter o apoio norte-americano. Por aqui, parece que é suficiente criticar ocasionalmente o imperialismo ianque para ter o apoio da esquerda, não importa quão autoritário e violento seja o regime.

Há certa autoindulgência. A fonte dessa autoindulgência parece ser uma certeza de que a esquerda luta pelas boas causas, decorrente de uma superioridade moral autoconcedida.

Essa mesma autoindulgência ocorre quando a esquerda minimiza os impactos nocivos sobre o país da estratégia do PT de não colaborar, quando na oposição, com a construção de um país melhor. “Ah, mas FHC mobilizava a base e aprovava”. Não aprovou a idade mínima para a previdência por um voto. Muito da pauta reformista tucana foi diluída ou descaracterizada com o apoio relevante da oposição feroz e generalizada do PT, que emprestava um glamour ideológico a interesses de grupos de pressão claramente corporativos.

Se o PT fosse uma oposição menos destrutiva, consensos poderiam ter sido construídos entre o plano Real e 2002, e o país provavelmente estaria hoje bem melhor. Muitas reformas aprovadas pelo PT durante o governo Lula, como a da previdência dos servidores públicos, contaram com o apoio da oposição. No entanto, essas mesmas reformas teriam sido ferozmente combatidas pelo PT caso tivessem sido encaminhadas durante o governo de FHC (em alguns casos isto aconteceu de fato). Esse mesmo PT, que sempre fez oposição destrutiva, reclama das pautas-bomba. Reclama com toda a razão. Mas se reclama, por coerência precisa rever seu comportamento; afinal, inúmeras vezes apoiou pautas-bomba.

O célebre voto contra o fator previdenciário do PSDB em 2015 foi muito criticado por simpatizantes dos tucanos. Já todo o histórico de oposição ferrenha do PT às reformas de FHC – incluindo as muitas preservadas pelo PT quando se tornou governo – parece perfeitamente legítimo para os apoiadores do partido, como se fosse “parte do jogo”.

O livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt estabelece duas condições para as democracias perdurarem: a prática da autocontenção e o reconhecimento da legitimidade do adversário. A nossa “dita” esquerda também não pratica o segundo princípio da boa convivência democrática de Levitsky e Ziblatt. A superioridade moral autoconcedida do PT, o seu oportunismo político exacerbado e o seu namoro, cada vez mais intenso, com o autoritarismo na América Latina explicam a sua perda de credibilidade no debate democrático.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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“não há evidência de viés sistemático da força-tarefa da Lava-Jato contra a esquerda. Procuradores, juízes, a PF, a PGR, todos parecem ter se esforçado para ir atrás de corruptos dos dois lados” 5 anos depois, será mesmo que não havia evidências?

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