Cenários

As bobagens econômicas deste início de ano

22 fev 2024

Retomada de Abreu e Lima, nova política industrial e tentativa de recriar indústria naval são erros. No caso da política industrial, haverá gasto de R$ 9,88 bilhões por ano sem nenhuma análise custo/benefício que justifique isto.

O ano começou com um número de medidas econômicas ruins.  A mais gritante foi o anúncio de que o governo vai investir mais em Abreu e Lima, uma refinaria que já foi caríssima e é o símbolo do desperdício de recursos federais.  Pelo que foi divulgado, estima-se colocar 8 bilhões de reais neste projeto.  A retomada de obra mal feita, que é tão emblemática, demanda uma justificativa detalhada para a população brasileira.  Nenhuma foi oferecida.  Quase que simultaneamente a este anúncio, descobriu-se que os yanomamis continuam desassistidos, com mantimentos não distribuídos, e o garimpo voltando a adentrar suas terras.  A única explicação dada para tal descalabro organizacional do governo federal foi que havia despesas elevadas pelas forças armadas, que não tinham orçamento para isso.  Os valores mencionados são da ordem de 1 milhão de reais por dia (“Yanomami: Forças Armadas pediram 1 milhão de reais por dia”, Folha de São Paulo (On Line), de 24/1/2024).  Em época de recursos escassos, é fácil ver qual projeto (entre investir em Abreu e Lima e dar recursos para ajudar aos yanomamis) dá maior retorno para a sociedade brasileira.

Logo a seguir, fomos brindados com a nova política industrial, lançada com o nome oficial de Nova Indústria Brasil (NIB).  É difícil entender por que há esta fascinação tão grande com a indústria de transformação.  A partir de dados calculados por Considera e Trece, a participação da indústria de transformação no PIB ficou acima de 30% na maior parte das décadas de 70 e 80 do século passado, tendo atingido um pico de 35,9% em 1985.  A partir daí a participação caiu para 11,3% do PIB em 2021 (Considera e Trece, ‘À Beira da Extinção, Textos para discussão #6 FGV IBRE, 7/10/2022). Quanto à geração de empregos em 2021 também vê-se que gera 10,8% dos empregos, de acordo com o IBGE.  Para acessar este dado contei com a ajuda de Claudio Considera:  Portal do IBGE, Estatísticas -> Econômicas -> Contas Nacionais -> SCN – Contas Nacionais -> Tabelas -> Tabelas – 2021 Sistema de Contas Nacionais -> Tabelas de recursos e usos -> TRU Resumo – 2000-2021, última linha da tabela do ano 2021 - ocupações.  Ou seja, a indústria de transformação tem participação no PIB bem reduzida e tem geração de empregos ainda mais reduzida.  Ainda de Considera e Trece, em 2021 o setor de serviços representou 69,8% do PIB.  Por que esta vontade enorme de subsidiar a indústria de transformação, que está minguante?  Há alguns saudosistas que afirmam que a inovação é toda gerada na indústria de transformação.  Infelizmente, este fato não mais corresponde à realidade.  Basta ver a enorme revolução que o Uber e as plataformas de distribuição criaram.  Mais especificamente basta ver as big techs que são essencialmente provedoras de serviços: Amazon, Google, Facebook, TikTok – o aplicativo da ByteDance, WeChat – pertencente à Tencent, os grandes conglomerados digitais chineses, como o Ali Baba, a incrível Starlink de Elon Musk (que hoje já permite cobertura de internet no mar e em aldeias indígenas isoladas), a OpenAI criadora do revolucionário Chat GPT.  No caso brasileiro, basta ver as grandes fintechs (Nubank, PagBank/PagSeguro, Stone).  E o Mercado Livre (empresa argentina negociada na B3), segunda maior empresa em valor de mercado que é negociada na bolsa brasileira.  Hoje o setor de serviços é o motor da inovação no mundo. 

Então, voltemos ao argumento de que não há dinheiro público envolvido na NIB.  Para isso, olhemos os valores citados na entrevista de José Luis Gordon, diretor do BNDES, no jornal Valor de 24/1/2024.  O custo para o Tesouro de recursos financeiros pode ser aproximado pelo custo pago pelo Tesouro Direto: a taxa prefixada para 2027 (1/1/2027), de 10,10% ao ano (dados de 16/2).  Por outro lado, a TR, que é a taxa subsidiada que os programas do BNDES e FINEP têm, é de 1,76% (que foi a rentabilidade desta nos últimos 12 meses).  Desta maneira, pelos valores divulgados na tabela do programa NIB nesta entrevista, podem ser calculados os custos para o Tesouro Nacional dos empréstimos subsidiados: 58x(10,10% -1,76%) + 20x(10,10% - 1,76%) = 6,505 bilhões de reais  por ano (para piorar estes custos são parafiscais, isto é, não aparecem nas estatísticas oficiais de gastos).  Além disso, teremos um custo não reembolsável de 21 bilhões de reais.  Para transformar isto em fluxo anual de despesas, utiliza-se a taxa pré de 10,10%, o que é um custo permanente de 21x10,10% = 2,121 bilhões de reais.  Ou seja, só nestes programas, que de acordo com o governo não representam nada em termos de gasto, temos um custo de 8,63 bilhões por ano!  Isto sem considerar os custos das LCD’s, objeto de projeto de lei que mencionei no meu artigo do Broadcast de janeiro, que chegarão em 2026 a 1,25 bilhão de reais por ano.  Enfim, um início de ano em que há despesas de 9,88 bilhões de reais por ano anunciadas em políticas industriais.  Sem nenhuma análise custo/benefício que justifique isto.

Será que a intervenção será eficaz?  Ora, a resposta é um sonoro não. Os instrumentos são os mesmos do passado não muito distante: proteção à indústria nacional (com tarifas de importação e obrigatoriedade de conteúdo nacional), subsídios sendo despejados em empresas que não necessariamente são ou serão competitivas (vimos isto com os militares e na nova matriz econômica da ex-presidente Dilma).

Qual seria uma política eficaz?  Temos uma excelente análise num texto do Banco Mundial de 2018: “Emprego e Crescimento: A Agenda da Produtividade. Mais especificamente, uma das recomendações é abertura à importação, eliminando-se entraves burocráticos/não tarifários e diminuindo ainda mais a alíquota de importação de máquinas e equipamentos.  A forte evidência empírica de que o aumento expressivo de produtividade observado no Brasil entre 1988 e 1994 foi devido à liberalização de importação de bens de capital pode ser vista em Lisboa, Menezes Filho e Schor (“The Effects of Trade Liberalization on Productivity Growth in Brazil: Competition or Technology?”, Revista Brasileira de Economia 2010), texto este citado explicitamente no trabalho do Banco Mundial.  O que é mais surpreendente é que este ótimo diagnóstico que resume sugestões para políticas de aumento de produtividade está pronto e disponível publicamente desde 2018 e não foi sequer mencionado pelo governo em seu lançamento da NIB.  Uma pista para este “esquecimento” pode ser vista na página 10 do texto do Banco Mundial, um destaque de uma afirmação que contradiz a própria base conceitual da NIB: “este fenômeno [de queda da produtividade no Brasil] não é recente; ele remonta, de modo geral, à adoção de políticas de industrialização da década de 1930, baseadas na substituição de importações”.

Para finalizar a lista, ainda no mês de janeiro, fomos brindados com mais uma tentativa de criar uma indústria naval no Brasil.  Naturalmente, com subsídios e requerimento de conteúdo nacional na produção doméstica.  O que já sabemos não deu certo!!

Importante salientar que, no meio de tanto disparate econômico, surgiu uma luz.  Depois do governo cogitar fazer um fundo de 6 bilhões de reais para ajudar as empresas aéreas, o ministro Fernando Haddad afirmou que não haverá dinheiro público para este fim.  Oxalá sua voz seja ouvida.

Realmente, tivemos um início de ano tenebroso do ponto de vista da eficiência de gastos públicos.  Temos que acabar com esta visão ultrapassada de política de incentivo, que só levou a indústria de transformação a se tornar hoje uma sombra do que já foi.  E devemos também lembrar que o grande setor gerador de PIB e de empregos é o de serviços, não o da indústria de transformação.  E é no setor de serviços que estão ocorrendo as maiores inovações.  A visão que permeia o governo é de meados do século passado.  É hora de virar esta página e enfrentar com realismo o problema da baixa produtividade brasileira.  As bobagens econômicas implantadas neste início de ano, movem-nos na direção contrária ao desejado.

Agradeço a Claudio Considera, do FGV IBRE, pela referência e conversas sobre a indústria, a indústria de transformação e o setor de serviços no Brasil, e a Lia Valls Pereira, também do FGV IBRE, por esclarecimentos em relação às barreiras tarifárias e não tarifárias na importação de máquinas e equipamentos.  Obviamente, nenhum dos dois é responsável pelas minhas conclusões.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 20/02/2024, terça-feira.

Comentários

Oliver Moesgen
Parabéns pela análise e as considerações. Concordo 100% - o governo brasileiro ficou parado no passado -> precisamos coragem para enfrentar essas politicas industriais ultrapassadas e construir uma agenda positiva, moderna e inspiradora.

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