Brasil enfrenta risco de apagão estatístico
Pode não ser evidente para boa parte da população, mas o Brasil está, infelizmente, na iminência de um apagão estatístico.
Basta dar uma olhada no noticiário recente: o IBGE perdeu 40% de seus funcionários nos últimos 8 anos (7,7% somente neste ano de 2018, até outubro); uma parcela relevante daqueles que ainda estão trabalhando lá deverá se aposentar nos próximos anos; algumas agências locais de coleta de informações estão sendo fechadas; várias pesquisas importantes estão sendo realizadas com atrasos expressivos (e, em alguns casos, há questionamentos sobre a qualidade dos resultados); e, pasmem, não se sabe ainda se o instituto terá recursos para realizar o Censo Demográfico de 2020. Foi nesse contexto que o atual presidente do IBGE, Roberto Olinto, apontou, em entrevista recente ao jornal O Globo, que “(...) passamos do osso, estamos trabalhando na medula”. Ele ainda lembrou que “(...) se o Brasil entrar na OCDE, vai haver demanda por mais estatística”.
Antes de prosseguir, é importante destacar que não estou aqui para escrever sobre as (várias) divergências técnicas/metodológicas que tenho em relação a algumas estatísticas elaboradas pelo IBGE. A discussão aqui é anterior a essa: do jeito que estão caminhando as coisas, logo mais não haverá nem mesmo estatísticas do IBGE para serem questionadas (vale notar que há alguma interação entre essas duas questões).
Esse processo de sucateamento do IBGE fica evidente pela evolução do indicador de capacidade estatística elaborado pelo Banco Mundial, que busca avaliar os sistemas estatísticos dos países observando três grandes quesitos: frequência de atualização, metodologias empregadas (mais ou menos alinhadas às melhores práticas) e abrangência dos indicadores. O Brasil apresentou uma posição bastante favorável nesse indicador do Banco Mundial entre 2004 e 2009. Daí em diante, além de termos retrocedido em relação a nós mesmos, nossa posição relativa também piorou (ver figura).
São várias as deficiências/lacunas de nosso sistema estatístico, com impactos cumulativos sobre a qualidade e a disponibilidade dos indicadores – e não somente naqueles preparados pelo IBGE, mas também naqueles construídos por outras entidades, que muitas vezes dependem de alguns dados primários do instituto para elaborar suas estatísticas.
Vou dar alguns exemplos, sem ser exaustivo: i) as Pesquisas de Orçamento Familiar (POFs), que deveriam ser feitas pelo menos a cada 5 anos, estão sendo realizadas a cada 7/8 anos (e o ideal seria ter, também, uma POF Contínua trimestral mais simplificada, para ajudar a estimar o consumo familiar no PIB, dentre vários outros usos); ii) ainda não temos um índice de preços para os serviços empresariais (que vêm respondendo por uma parcela cada vez maior do PIB); iii) a Pesquisa Industrial Mensal (PIM-PF), além de defasada (lista de produtos de 2010), somente pesquisa quantidades físicas, quando também deveria coletar valores nominais (de modo a permitir uma melhor estimação em tempo real da evolução do valor agregado pelo setor); iv) os índices de preços do IBGE ainda não dispõem de ajustes hedônicos (controle por qualidade), que são cada vez mais utilizados em outros países; v) as pesquisas que buscam mensurar a atividade econômica informal (ECINF) foram abandonadas (e a atividade desse setor, ainda bastante expressivo em nosso país, passou a ser estimada indiretamente pelos dados de mercado de trabalho da PNAD Contínua e outras informações); dentre várias outras.
Tudo isso, obviamente, acaba tendo reflexos nas estimativas de inflação e do PIB/Contas Nacionais, que são os principais indicadores-síntese da economia de um país. Um exemplo: é sabido há muito tempo que índices de preços agregados pelo método Laspeyres, como é o caso do IPCA e de vários CPIs mundo afora, tendem a superestimar a inflação total da economia, sobretudo quando a atualização dos pesos com novas POFs é pouco frequente e quando há mudanças bruscas nos preços relativos de alguns produtos. No caso do IPCA, alguns trabalhos estimam esse viés em cerca de +0,5 p.p. ao ano (em média). Isso significa dizer que, caso a estrutura de ponderação do IPCA fosse atualizada com maior frequência, o governo poderia estar gastando dezenas de bilhões de reais a menos hoje, na medida em que boa parte da despesa obrigatória – como os benefícios previdenciários e a despesa com o funcionalismo – tem como referência para seu reajuste o IPCA agregado (e o seu “irmão”, o INPC).
Já faz algum tempo que o IBGE vem tentando viabilizar a realização de um concurso emergencial para contratar, de forma permanente, cerca de 1800 novos funcionários. Até agora, não obteve êxito. Mesmo que seja aprovado (e deveria), isso ainda passa longe de resolver os problemas do instituto. É preciso reavaliar os planos de carreira, já que é muito frequente a seguinte situação: após investir tempo e recursos financeiros em treinamento e qualificação para tarefas bastante específicas, o IBGE acaba perdendo funcionários para outros órgãos governamentais por conta das diferenças expressivas de remuneração. Também é preciso dar maior estabilidade orçamentária e tentar viabilizar novas fontes de receitas para o instituto. Adicionalmente, seria extremamente importante buscar promover um planejamento transparente, coordenado e rotineiro com diversos outros órgãos estatísticos (como o IBRE/FGV, dentre outros), de modo a maximizar a disponibilidade de estatísticas de qualidade para a sociedade brasileira.
Por fim, não custa lembrar que a avaliação/monitoramento do desenvolvimento econômico e social, bem como do impacto de políticas públicas (macroeconômicas e microeconômicas) dependem, umbilicalmente, da disponibilidade de estatísticas de qualidade, detalhadas e tempestivas (os chamados big data são complementares/suplementares e não substitutos das estatísticas tradicionais). Como diz uma expressão derivada de uma citação atribuída ao físico e matemático Lord Kelvin, "if you cannot measure it, you cannot improve it”.
Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico, em 14/11/2018.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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