Cenários

Brasil, passado e futuro: Um pouco mais de permissividade monetária

30 jan 2024

Em 2024, falta de coordenação entre fiscal e monetário seguirá dando o tom. Esperamos que Selic atinja 9,00% até o 3º tri. Quanto maior a desaceleração do crescimento, maior o ativismo governamental e maiores serão os riscos.

Como foi 2023: Surpresas na economia e a volta de certos fantasmas do passado - O crescimento do PIB foi sensivelmente maior do que esperávamos[1]. A economia brasileira terá crescimento em torno de 3,0% em 2023, resultado muito maior do que as nossas projeções no início do ano passado (crescimento de 0,7%)[2]. A maior parte da surpresa ocorreu em fatores exógenos, destacando a forte contribuição do setor agropecuário e o aumento da produção da indústria extrativa mineral (principalmente em petróleo). É injusto dizer, no entanto, que toda a surpresa ocorreu nestes setores; o crescimento dos serviços foi mais intenso do que esperávamos, e, do lado demanda, houve maior contribuição do consumo das famílias e das exportações líquidas.

Os setores crédito-intensivos amargaram um desempenho pífio. A indústria manufatureira, a construção civil e os investimentos tiveram resultados muito negativos durante 2023, reforçando a importância da restrição monetária (juros atingiram 13,75%a.a. em agosto de 2022 e lá ficaram até agosto de 2023) e das incertezas quanto aos rumos da economia no início do novo governo.

O forte desempenho do mercado de trabalho ajudou a dar suporte aos serviços e ao consumo. Esperávamos que a taxa de desemprego começasse a acelerar em meados de 2023, com uma redução do crescimento real da massa salarial e normalização da procura por trabalho, através de um aumento na taxa de participação. Nada disso ocorreu; a ocupação seguiu avanço até o final de 2023, a retomada da taxa de participação foi mais moderada do que imaginávamos e o desempenho da renda real mais forte do que projetávamos.

A expansão fiscal do início do ano também teve impacto relevante nos desvios entre as nossas projeções e os dados observados[3]. Sempre destacamos que a preferência relevada do grupo político que atualmente ocupa a presidência era por expansão dos gastos públicos; nesse sentido, o choque ocorrido com a Emenda Constitucional da Transição (EC 126/2022) não foi propriamente uma surpresa. O impulso gerado (1,5p.p. do PIB) teve efeitos maiores do que esperávamos sobre a atividade no curto prazo, ajudando a explicar uma parte de nossos erros de projeção.

O desempenho da balança comercial foi outro destaque positivo no ano. O saldo comercial foi superavitário em US$ 98,8bi em 2023, recorde histórico, combinando um pequeno aumento das exportações e um forte recuo das importações frente a 2022. A expansão das exportações, mesmo que pequena, foi notável se lembrarmos que o mundo desacelerou, tendo como destaques maiores vendas externas de produtos agrícolas (inclusive manufaturados), petróleo bruto e minério de ferro. Já a queda das importações esteve diretamente ligada à piora do desempenho da indústria e dos investimentos, mesmo em cenário de maior expansão do PIB. A mudança nas regras de precificação dos combustíveis, por parte da Petrobras, também reduziu as importações de combustíveis e derivados no ano passado.

Com saldo comercial forte e déficits em conta corrente contidos, o setor externo brasileiro seguiu como uma ilha de tranquilidade em nosso cenário macroeconômico. Note-se que a melhora do desempenho da conta corrente foi menos do que proporcional ao aumento do saldo comercial entre 2022 e 2023 (a balança comercial aumentou US$ 37,5bi, ao passo em que o déficit em conta corrente reduziu em US$ 28,5bi)[4], mas ainda assim foi relevante. A robustez do cenário externo foi um dos fatores que ajudou a dar sustentação à taxa de câmbio, com valorização de quase 8% do Real frente ao Dólar americano no ano passado.

A inflação voltou à banda de tolerância, eximindo o Banco Central de escrever uma nova carta aberta à sociedade. A inflação, medida pelo IPCA, encerrou 2023 em 4,62%, virtualmente o nosso cenário no início do ano (4,7%). A composição foi, no entanto, diferente do que imaginávamos, com mais pressão nos preços administrados (9,1%) e menos pressão nos preços livres (3,1%). Note-se, nos preços livres, que houve grande dicotomia entre as inflações de bens, sejam tradables (0,6%) ou non-tradables (5,1%), e de serviços (6,2%), com aceleração das duas últimas ao final do ano. É importante lembrar que certas medidas pontuais, como o subsídio a automóveis (jun/23), foram relevantes para que a inflação tenha terminado o ano abaixo do limite superior da banda de tolerância (4,75%) para a meta de inflação de 2023 (3,25%).

Não víamos espaço para flexibilização monetária em 2023, e recebemos com preocupação o início dos cortes de juros em agosto do ano passado. O Banco Central iniciou um ciclo de cortes a uma velocidade de 50bps por reunião, entregando, ao final de 2023, uma taxa Selic de 11,75%a.a. Note-se que, a despeito de certas surpresas positivas observadas durante o ano passado, as projeções condicionais da própria autoridade monetária se encontraram acima da meta de inflação durante todo o horizonte relevante mesmo quando do início dos cortes de juros. Parece-nos claro que o Banco Central está satisfeito com não-infração do regime (ou seja, inflação na banda de tolerância), colocando o cumprimento da meta no horizonte relevante em 2º plano.

A autoridade monetária tem sinalizado que a velocidade de cortes será mantida em 50bps por reunião, ao menos no curto prazo. A estratégia de comunicação passou pelo compromisso com o ritmo para as duas reuniões subsequentes, evidentemente sendo condicional à confirmação do cenário prospectivo da autoridade monetária. A precificação de mercado oscilou durante o segundo semestre do ano passado, por vezes demandando um ritmo mais rápido (especialmente com sinais de desaceleração do crescimento interno e melhora do ambiente global), por vezes advogando por maior cautela (especialmente devido a dúvidas fiscais).

A nota mais negativa do cenário veio da política fiscal, mostrando grande piora do resultado primário em 2023[5]. Com a confirmação de uma “preferência por despesas” e com frustração nas receitas (recorrentes e não-recorrentes), o déficit primário terá encerrado 2023 pouco abaixo de 2,3% do PIB. Parte importante da piora primária adveio do pré-pagamento de precatórios ao final do ano[6], evento que, em si, levou a uma piora primária de 0,95p.p. do PIB – e que representará, em menor medida, mais uma rodada de expansão fiscal no início de 2024, fato que, em si, atrapalhará o cumprimento da meta de inflação no horizonte relevante.

Os resultados negativos, no curto prazo, foram acompanhados por mudanças na estrutura de médio prazo – e, em alguns casos, para melhor. O Novo Arcabouço Fiscal, que disciplina a gestão fiscal até 2026, nos parece excessivamente ambicioso, exigindo um forte aumento, anual e recorrente, das receitas para conciliar expansão real dos gastos públicos, mesmo que moderada, e reversão do resultado primário de um déficit em 2023 a um superávit em 2026. A Reforma Tributária, por sua vez, instituiu um regime de impostos mais simples e efetivo, sendo um avanço frente ao regime tributário atual. Note-se que a reforma não foi, nem de perto, a melhor possível, mas ainda assim deve ter efeitos positivos sobre o ambiente macroeconômico a médio prazo.

Confirmou-se, assim, a nossa visão de que a falta de coordenação entre as políticas fiscal e monetária seria um grande desafio neste governo. Os eventos de 2023 nos parecem somente um aperitivo do que está por vir, especialmente se considerarmos que as mudanças fiscais aprovadas no ano passado (no Novo Arcabouço Fiscal e a Reforma Tributária) serão insuficientes para disciplinar a trajetória de dívida/PIB, e que o crescimento da economia dará sinais de exaustão já em 2024. Com uma política fiscal mais expansionista do que seria recomendável, resta saber até qual ponto a política monetária operará de forma mais restritiva.

O que esperamos de 2024: Um pouco mais de permissividade monetária

Em condições normais, não vemos qualquer possibilidade de que a meta de estabilidade primária presente no Novo Arcabouço Fiscal seja cumprida em 2024. Frente ao cenário esperado de receitas e despesas, e nisso já incluindo expectativas de maior arrecadação com “mudanças de regras” (por exemplo, no CARF), ainda enxergamos uma carência de receitas da ordem de R$ 80bi somente para este ano[7]. Estritamente falando, é possível obter montantes dessa magnitude através de expedientes não-recorrentes, mas isso só posterga o problema para 2025 – que, no arcabouço aprovado, já deveria entregar superávit primário. Parece-nos muito mais provável que as metas do arcabouço sejam flexibilizadas no decorrer do ano, combinando pressão por maiores gastos e insuficiência de novas receitas. Esperamos déficit primário de 1,1% do PIB em 2024.

A esperada desaceleração do crescimento do PIB para 1,3% tende a pressionar o governo – quanto mais em ano eleitoral (subnacional). Sem choques exógenos positivos, esperamos crescimento do PIB de somente 1,3% do PIB em 2024. Há riscos negativos emanando da agropecuária (para a qual já esperamos uma contração de -3,5%, já como reflexo dos grandes choques climáticos do El Niño), mas é forçoso reconhecer que o governo não deve ficar inerte, aumentando dispêndio, tanto fiscais (flexibilizando as regras do arcabouço) como parafiscais (utilizando bancos públicos e recursos extraorçamentários, como o FGTS). Hoje, entendemos que estes riscos se cancelam para o PIB. O maior ativismo governamental (em todas as esferas, não somente a federal) deve ser acompanhado conforme nos aproximarmos das eleições municipais de 2024, centrais para os projetos políticos da situação e da oposição.

Não vemos grandes tendências na taxa de câmbio. Ainda que em magnitude inferior à observada no ano passado, o superávit comercial deve continuar relevante e o déficit em conta corrente contido, configurando, assim, mais um ano de restrição externa inativa em nossa economia. A despeito dessas questões mais positivas, é difícil imaginar qualquer tendência relevante de apreciação dadas as incertezas fiscais – na execução do arcabouço, na aprovação da legislação complementar à Reforma Tributária e na própria manutenção das regras aprovadas em 2023.

O mercado de trabalho deve continuar robusto, com taxa de desemprego historicamente contida. O desempenho do mercado de trabalho e da renda nos surpreendeu em 2023, e incorporamos essas surpresas à construção do cenário de 2024. Com taxa de participação tendo dificuldade de voltar ao patamar pré-Covid, em muito devido ao aumento das transferências de renda, esperamos taxa de desemprego média de somente 8,3% em 2024 (vs. 8,3% em 2023). A massa salarial ampliada tende a crescer novamente, dando sustentação ao consumo de bens e serviços.

A inflação deve desacelerar para 3,9% em 2024, mas seguirá com enorme dificuldade de se aproximar da meta de 3,0%. Esperamos um reequilíbrio de forças entre a inflação de administrados e a inflação de livres, já reconhecendo certo “uso eleitoral” dos preços administrados neste ano. Emergem riscos negativos derivados dos desequilíbrios climáticos recentes, tanto em bens (non-tradables) como em administrados (reajustes anuais de tarifas de eletricidade residencial), além de certa pressão em combustíveis e bens tradables no decorrer do primeiro semestre. A inflação de serviços tende a reduzir, porém se mantendo em patamar elevado – e inconsistente com o cumprimento da meta de inflação. A plena desinflação da economia não será alcançada neste ano e nem no próximo, para o qual estimamos IPCA nas cercanias de 4,0%.

A despeito do não-cumprimento da meta de inflação, vemos a Selic sendo cortada até 9,00%a.a. em 2024. Se supusermos que a meta é o objetivo explícito da autoridade monetária, não haveria espaço para este orçamento de cortes de juros. No entanto, também não se poderia ter iniciado a flexibilização monetária em 2023. Isso posto, entendemos que há uma preferência revelada, priorizando a não-infração do regime de metas (ou seja, inflação inferior a 4,5% no horizonte relevante). Tomando este como o objetivo de facto do Banco Central, esperamos uma sequência de reduções da Selic, ao ritmo de 50bps, até julho, com um movimento final de 25bps na reunião do COPOM de setembro.

Um maior estresse entre monetário e fiscal é o principal fator de risco para este plano de voo. Há chance real do Executivo priorizar o crescimento de curto prazo, com um sem-fim de medidas que, mesmo sob nova roupagem, tragam os mesmos efeitos negativos do passado (política industrial, conteúdo nacional, novo PAC, novo MCMV, aumento das transferências de renda a segmentos específicos, aumento da folha salarial do Estado etc.). Parece-nos, no entanto, que a maior parte dos efeitos negativos tende a se materializar de 2025 em diante, colocando a gestão monetária na berlinda no ano que vem – já com nova composição do colegiado do COPOM e com um objetivo de meta contínua de inflação, que ainda carece de maiores detalhes e regulamentação adequada.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.


[1] Este artigo faz parte de Destaque BRCG | Cenário 2024 | Passado e futuro: Temperatura em elevação. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

[2] Destaque BRCG | Brasil: 2023 em cinco (longos) parágrafos. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

[3] Destaque BRCG | Política fiscal: O pacote e a preferência revelada. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

[4] Resultados são anteriores a revisão ordinária da conta corrente, a ser divulgada somente no final de janeiro de 2024, fora do seu prazo usual, devido à operação-padrão dos servidores do Banco Central do Brasil

[5] Destaque BRCG| Arcabouços fiscal: O jogo só começou. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

[6] Destaque BRCG | Pagamento atípico dos precatórios: aspectos técnicos, impulso fiscal e efeitos sobre as metas. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

[7] Destaque BRCG | Potencial de arrecadação da tributação de IRPJ/CSLL sobre os incentivos fiscais do ICMS. Disponível em https://brcg.com.br/destaque-brcg/

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