Macroeconomia

China: Combatendo choques e lidando com o imponderável

21 fev 2020

2019 foi um ano particularmente difícil para a economia chinesa. Uma sucessão de choques afetou o crescimento, as condições de vida da população, a saúde patrimonial das famílias e empresas e, sob certos aspectos, chegou até mesmo a colocar pressão sobre a coesão social e a estabilidade do regime.

Dois desses choques são amplamente conhecidos. Por um lado, a guerra comercial entre China e Estados Unidos trouxe ventos de proa para a economia chinesa (e global), desorganizando cadeias de valor, aumentando os custos de produção e mantendo os agentes econômicos sob permanente incerteza[1]. Os fluxos comerciais chineses começaram a sofrer em meados de 2018, tendo uma desaceleração mais intensa a partir do início de 2019, e a indústria se viu cercada de dúvidas a respeito da demanda externa.

Por outro lado, a China enfrentou uma emergência sanitária com o surto de gripe suína africana. Quase a metade do seu rebanho de suínos teve que ser sacrificada, afetando fortemente os preços de alimentos. Ainda que conjuntural, tal choque parece ter “memória longa”: o tempo de engorda de matrizes é superior a dois anos, a infecção se espalhou pelo globo (solapando, ao menos, 25% da oferta global) e não se conseguiu fornecer substituto adequado às famílias chinesas. Em última instância, foi um grande choque de renda disponível, piorando as condições de vida e o bem-estar da população.

Para além desses, outros desafios foram observados – ainda que sejam pouco discutidos. O ano passado foi marcado por relevantes problemas na intermediação bancária, com uma crise de confiança varrendo bancos pequenos e médios, intervenções de órgãos reguladores em instituições financeiras (as primeiras em 20 anos) e contestações crescentes a respeito da saúde do sistema financeiro.

A despeito de grandes injeções de liquidez na economia, ocorreu forte aumento da volatilidade das taxas interbancárias: os mecanismos de transmissão da política monetária se desajustaram e, até agora, não voltaram ao seu normal.

Por fim, emergiram desafios à coesão social. São crescentes os sinais de aumento da desigualdade, potencializados pela diminuição da renda disponível (derivada do choque inflacionário) e pelo recuo na geração de empregos (com empresas passando por dificuldades na geração de caixa e lucro). Complicando ainda mais a situação, as famílias chinesas nunca estiveram tão endividadas.

Faltaram comida, renda e emprego, cresceram as dívidas, a incerteza e as contestações ao establishment. Certamente não foi um período tranquilo para os governantes chineses.

A China passou por outros eventos delicados em sua história recente, e a saída escolhida pelos governantes sempre foi parecida: expansão fiscal, monetária, creditícia e parafiscal, voltada à promoção dos investimentos (tipicamente em infraestrutura), ao vazamento de demanda para o exterior e ao crescimento das empresas estatais e paraestatais.

O script de 2019 teve a inspiração de sempre, mas com implementação um tanto distinta. Em vez de priorizar o setor público, os impulsos foram direcionados à limpeza dos balanços e promoção do crescimento privado. Uma adaptação às atuais condições iniciais: o setor privado empresarial sofre com a desorganização econômica, interna e externa, e as famílias se veem pressionadas por menos empregos, queda no seu poder de compra e rápida erosão das suas finanças pessoais.

Após fortes cortes nas taxas de depósitos compulsórios (em torno de 450 pontos-base desde o início de 2018), aceleração das concessões de crédito (incluindo o shadow banking) e grande expansão do déficit fiscal (ainda maior se considerarmos a parcela parafiscal), a economia começou a dar sinais de estabilização ao fim do ano passado.

Ainda que o crescimento de 6,1% em 2019 tenha sido o mais baixo desde 1990, o último trimestre do ano registrou retomada evidente na indústria e nos investimentos em ativos fixos. Ainda seria necessário tempo para que houvesse mais consistência: os indicadores de demanda permaneceram pressionados, a saúde financeira das famílias abalada e o emprego em contração.

Em um cenário favorável, seria uma questão de tempo: as políticas de impulso domésticas dariam suporte, o armistício comercial com os EUA (antecipado ao fim do ano e assinado em janeiro de 2020) diminuiria as incertezas e, pouco a pouco, as condições de vida da população parariam, pelo menos, de piorar. Veio, então, o imponderável – colocando a frágil recuperação à prova.

A epidemia de coronavírus é basicamente tudo que a China não precisava neste momento. Ainda que seja muito difícil quantificar os seus efeitos, a direção parece incontestável: atrapalha a incipiente estabilização da economia, deprime a demanda e renova as pressões inflacionárias com a total desorganização das cadeias de produção e abastecimento. Se mantida por tempo suficiente, tende a desorganizar a indústria chinesa e impactar as cadeias de suprimentos e geração de valor, primeiro na Ásia e depois em todo o mundo.

Sob a ótica qualitativa, a epidemia de coronavírus certamente aumenta os riscos de implementação das políticas públicas. De um lado, renova a pressão para mais uso das ferramentas monetária e fiscal, enfraquecendo o debate sobre prudência, eficiência e sustentabilidade.

De outro lado, aumenta o escrutínio em relação ao regime, que sofre pressões crescentes por maior transparência e qualidade. Há uma “caça às bruxas” na administração pública, por enquanto restrita às lideranças da região de Hubei, epicentro da crise. Como o imponderável “deu as caras”, é temerário dizer que o Politburo não sairá chamuscado.

Em conclusão, ainda estamos por entender melhor os impactos da crise e suas implicações sobre a economia local, sobre a economia global e sobre o equilíbrio político chinês. Os primeiros sinais efetivamente observados não são dos melhores: desaceleração das métricas qualitativas de crescimento, depreciação da moeda e nova rodada de aceleração inflacionária em janeiro de 2020.

O crescimento chinês certamente será afetado e, neste momento, parece difícil não enxergar uma expansão anual de, no máximo, 5,5% em 2020. Parece-nos, no entanto, que discussão mais relevante agora é outra: lidar com a ebulição social será um teste de fogo para a administração de Xi Jinping.

Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de outubro de 2019. Leia aqui a versão integral do BMI Fevereiro/20. 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

[1] Como já dissemos em artigos anteriores, a questão comercial é somente a ponta do iceberg: muito mais do que aumentar o superávit bilateral, o objetivo americano é combater a ascensão chinesa, não só no campo econômico como também no tecnológico e geopolítico. Por mais que tenhamos descompressões no curto prazo, a tensão de fundo permanecerá

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