Macroeconomia

Com que roupa Lula vai?

12 abr 2021

Lula recuperou seus direitos políticos. Aquele que provavelmente é o maior líder popular da história muda completamente as peças do jogo. Se já não fosse pouco toda a carga simbólica da biografia de Lula com o tempero do período no cárcere, enfrentado com altivez e galhardia, há a dose adicional de simbolismo com o paralelo com a volta de Getúlio Vargas em 1951. Já circula nas redes sociais, para a diversão dos mais velhos e para ajudar na formação política das novas gerações, o vídeo com a marchinha “O retrato do velho” de Haroldo Lobo, na voz de Francisco Alves, o Chico Viola.

Mas é cedo. Ainda não é possível cravar a vitória de Lula. Mesmo porque a rejeição a ele e ao petismo se mantém elevada. Por outro lado, análise da conjuntura política certamente não é a especialidade da coluna.

As movimentações ocorrem, entretanto. A grande questão é sabermos com que roupa Lula irá se apresentar em 2022. Há pelo menos três figurinos. O Lula de 1989, “contra tudo isso que está aí”, o Lulinha “paz e amor” da Carta ao Povo Brasileiro de 2002, e o Lula do segundo mandato, muito mais intervencionista.

No jornal Folha de S.Paulo de domingo, 28 de março, reportagem de Fábio Zanini se perguntava se Lula escreveria uma nova “Carta ao povo brasileiro”. O jornalista Edmundo Machado de Oliveira, hoje assessor técnico da liderança do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo, e um dos redatores originais da Carta, afirmou em entrevista a Zanini que “Se eu fosse escrever hoje, seria para escrever o seguinte: ‘estamos vivendo um mundo completamente diferente. A âncora principal de qualquer governo, sobretudo o Brasil, é o problema da desigualdade social’”. Um pouco mais à frente na reportagem, Oliveira afirmou: “A questão da desigualdade os ‘Faria Limers’ [mercado financeiro] vão ter que aprender de uma forma ou de outra (...)”.

Oliveira considera – assim como, penso eu, o PT, incluindo Lula e sua assessoria econômica – que o tema da desigualdade não é tratado pois a Faria Lima o bloqueia. Será que é fato?

A desigualdade precisa ser atacada pelo gasto e pela receita. Pelo gasto, a maior fonte da desigualdade são os regimes próprios de previdência dos servidores públicos. Esses vêm sendo lentamente reformados desde os anos 90. A reforma de 2003, no primeiro ano do petismo, e a reforma da Previdência de 2019 foram dois passos na direção correta. Há muito a ser feito, mas me parece que, quando Oliveira afirma a necessidade de a Faria Lima entender o tema da desigualdade, não é aos privilégios dos servidores públicos que ele se refere.

Oliveira menciona a baixa progressividade dos impostos no Brasil. Há toda uma agenda de tributar lucros e dividendos, aumentar o imposto sobre a herança e taxar anualmente a riqueza. Essa não é uma agenda estranha à coluna. Discutimos o tema neste espaço em novembro de 2015.

Houve uma longa hegemonia socialdemocrata no Brasil. Foram seis vitórias eleitorais seguidas. A baixa progressividade tributária não foi tratada nesse período. E não foi por causa de veto da Faria Lima. A soma de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) com a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para o setor financeiro já é de 40%, seis pontos percentuais acima dos demais setores. Os executivos em sua grande maioria já trabalham no regime da CLT. Não há nenhum sinal de que seja um setor subtributado. É sempre possível tornar a tabela do IRPF mais progressiva e, consequentemente, tributar mais pesadamente os salários elevados.

No entanto, as grandes distorções estão nos regimes tributários especiais, principalmente Simples e Lucro Presumido, e nas inúmeras desonerações, incluindo diversas possibilidades para que pessoas não paguem imposto de renda, entre várias outras.

Ou seja, contrariamente ao que transparece, a baixa progressividade dos impostos no Brasil é fruto de um equilíbrio político muito forte que envolve praticamente todo o Congresso Nacional. Basta lembrar que os projetos de lei que elevam o limite de enquadramento para o regime do Simples são aprovados no Congresso por ampla maioria, e, recentemente, esse regime especial foi constitucionalizado como um programa que não participará dos esforços de redução de subsídios.

Assim, a ideia de que a agenda da progressividade dos impostos é bloqueada pela Faria Lima não tem nenhuma base factual. A Faria Lima tem poder político ínfimo e o fim do financiamento empresarial das campanhas eleitorais reduziu a importância das empresas na política.

Adicionalmente, essa agenda serve como álibi para que os petistas não encarem um dos principais motivos do esgotamento econômico do longo ciclo do partido no poder.

O ciclo socialdemocrata envolveu a implantação do que a coluna, há mais de dez anos, chama de “o contrato social da redemocratização”, isto é, o desejo de construir por aqui versão tropicalizada do Estado de bem-estar social padrão europeu continental. Uma série de ações – política de valorização do salário mínimo, reforma agrária, SUS, Benefício de Prestação Continuada (BPC), aposentadoria rural, universalização do ensino fundamental, Bolsa Família, Prouni, Fies e tantas outras iniciativas – fazem parte desse programa.

Esse projeto é da sociedade e foi implantado em todos os governos após a estabilização da economia. O que diferenciou o governo petista foi a deriva nacional-desenvolvimentista observada a partir de 2006, com a troca de guarda no Ministério da Fazenda, na qual saiu Antônio Palocci e assumiu Guido Mantega.

O intervencionismo se caracterizou por colocar o Estado à frente do processo de alocação da poupança do país. Uma série de programas de investimento foram iniciados – toda a cadeia de petróleo e gás, indústria naval, grande incentivo à indústria automobilística, entre tantos outros – e maturaram muito mal. Essas iniciativas tinham o pressuposto de que o caixa do setor público, incluindo Tesouro, estatais e bancos públicos, especialmente o BNDES, era ilimitado. Não faltariam recursos para manter o cronograma de investimento. Após muito gasto,2 entramos em profunda crise no 2o trimestre de 2014. Como já defendi em outras oportunidades neste espaço, a crise é fruto das inconsistências do contrato social da redemocratização, agravada pelo custo do intervencionismo. A experiência mostra que não cabem no orçamento do setor público ambos, o contrato social da redemocratização e o intervencionismo.

Voltando a Lula, há a interpretação de que ele é pragmático e que a deriva intervencionista foi uma tentativa de sustentar o crescimento econômico em seguida à crise de 2008. Que teria havido aprendizado e que um novo governo petista não embarcaria novamente em tal aventura. Não é isso que se depreende da fala de Lula no dia seguinte à recuperação de seus direitos políticos. Não fez nenhuma crítica ao intervencionismo, defendeu muito a indústria e sugeriu que o único responsável pela crise foi o PSDB, o partido que perdeu quatro eleições consecutivas.

Não está claro com que roupa o PT irá para o samba.


1 - https://www.youtube.com/watch?v=vwGl5-B2Iog.
2 - Somente os aportes do Tesouro Nacional para o BNDES foram por volta de R$ 400 bilhões. Segundo meu colega Mansueto Almeida, o impacto disso na dívida bruta – emissões e juros da dívida dos bancos públicos junto ao Tesouro – foi maior. No final de 2007, o total de empréstimos do Tesouro Nacional para todos os bancos públicos no Brasil era de apenas R$ 14,1 bilhões, ou 0,5% do PIB. No final de 2014, esse valor havia crescido para R$ 545,6 bilhões, equivalente a 9,4% do PIB, um crescimento de quase nove pontos do PIB, tendo como fonte um forte aumento da dívida pública bruta.

Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de abril de 2021.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.