Política Monetária

Como conduzir a política monetária próximo da dominância fiscal?

14 fev 2025

BC deveria tirar ênfase na convergência da inflação à meta de 3% e usar mais o intervalo de tolerância ao redor da meta como alvo, diante da proximidade entre atual nível da relação dívida/PIB e o que traria dominância fiscal.

Aloisio Araújo, da FGV EPGE e do IMPA, deu excelente entrevista no Jornal Valor dia 28 de janeiro, que foi publicada sob o título “BC deve mirar parte de cima da meta da inflação”.  Desde maio do ano passado, em minha coluna aqui do Broadcast, deixei explícita minha opinião sobre o problema de executar a política monetária num sistema de metas para a inflação com metas muito baixas e expectativas que não convirjam para a meta. O Copom deveria usar o intervalo de tolerância ao redor da meta. No texto, de 14/5/2024, escrevi: “o Bacen faria bem em aproveitar esta ocasião para uma reflexão mais profunda de seu papel como estabilizador dos preços da economia: como seguir o sistema de metas para a inflação com uma meta muito baixa? Como devemos usar o intervalo de tolerância ao redor da meta?”. A seguir, o texto conclui que “O Copom deveria usar um pouco do intervalo de tolerância para evitar impor à sociedade brasileira um custo elevado demais pela fragilidade fiscal que temos”. Dois meses depois, no dia 9/7/2024, publiquei no Valor Econômico um artigo mais conceitual sobre o sistema de metas com intervalo de tolerância (“Como usar o intervalo de tolerância da meta de inflação?”). Nele, explico que o sistema de metas foi desde o início pensado para ser utilizado não pontualmente, mas como um guia de expectativas que introduzia uma possibilidade clara: “permitir que, uma vez observado um desvio do centro da meta, a política monetária não tenha que ser ajustada de forma abrupta para que a convergência ao centro aconteça rapidamente”.  Ou seja, diferentemente da meta nos EUA ou na União Europeia, a meta no Brasil não é pontual. A visão dominante dos membros do Copom, como tem sido expressa por vários de seus integrantes, é muito distinta da visão original das pessoas que elaboraram o sistema de metas. Os membros passam a mensagem que interpretam o sistema de metas de forma ultraortodoxa, como se ele fosse pontual. Em diversas ocasiões, inclusive nas atas, declararam que têm como objetivo a convergência para o centro da meta (3% ao ano) no horizonte de convergência da política monetária (18 meses).

Na entrevista citada no início, Aloisio Araújo sugeriu que, neste momento, o Bacen utilizasse como inflação alvo um valor mais próximo do teto da banda (o teto é 4,5%). Qual a razão de uma inflação alvo mais próxima de 4,5% que o valor 3%, que é o centro do intervalo de tolerância? Isto decorre de pesquisas que ele e seus coautores têm feito há bastante tempo, a primeira das quais publicada na International Economic Review em fevereiro de 2016. A última versão disponível é de dezembro de 2024, “Inflation Targeting under Fiscal Fragility” de Aloisio Araújo (FGV EPGE e IMPA), Vitor Costa (IMPA), Paulo Lins (University of Rochester), Rafael Santos (FGV EPGE) e Serge de Valk.  Este artigo foi aceito para publicação no American Economic Journal – Macro.  

Deste trabalho, deduzem-se várias conclusões. Primeiro, há um limite de DBGG/PIB (dívida bruta do governo geral) a partir do qual a política monetária ótima para a sociedade seria inflacionar a economia (hoje esta inflação seria algo entre 7,5% e 8% ao ano). Este limite é o chamado de dominância fiscal.  Por definição, é uma situação na qual a dívida pública fica tão elevada que se torna inevitável inflacionar a economia para diminuí-la em termos reais.  A inflação mais elevada tem como efeito colateral reduzir os gastos do governo em termos reais.  Segundo, este limite é menor quanto mais baixa é a meta para a inflação.  Utilizando dados recentes, e o modelo dos autores com dados até dezembro, calculamos na Sarpen que a dívida bruta (DBGG) de dominância fiscal, para uma meta de 3% ao ano é cerca de 85% do PIB. Claro que o nível aqui importa, mas o principal é que estamos próximos dele.  Este valor era cerca de 90% em outras versões mais antigas (e com dados menos estressados do que temos hoje). Terceiro, com uma meta de 4,5% ao ano, este limite passaria a cerca de 93% do PIB, ou seja, uma DGBB/PIB com 8% do PIB a mais que o limite com a meta de 3% ao ano. Quarto, com o aumento do juro real, e mantendo-se a proporção da dívida indexada em IPCA, o nível de dominância cai, chegando a cerca de 80% do PIB para o juro real de 8% ao ano.  Uma ressalva que é importante: estes modelos foram calibrados com a crise de 2002 em mente, e nossas contas ainda não foram totalmente batidas.  Mas, mesmo que o nível de dominância seja um pouco mais alto, 90% como vimos em outras simulações, a sensibilidade às metas e ao juro real está razoavelmente de acordo com a intuição.

Os dados publicados pela IFI (Instituição Fiscal Independente), no RAF de janeiro de 2025, indicam que a DBGG/PIB alcançará valores de 85% ao longo do ano de 2026, mesmo considerando que revisemos para baixo a projeção, ajustando-se as previsões pelo valor realizado de dezembro (IFI previu 77% do PIB e, de acordo com o Bacen, a DGBB/PIB ficou em 76,1% em fins de 2024). A própria IFI estimou, no RAF de dezembro, que a probabilidade de que a DGBB/PIB exceda 90% até 2029 é de 82,9%.  Assim, a DGBB estaria batendo às portas da região de dominância. Obviamente, a trajetória da DBGG/PIB tem pouca chance de alteração se o governo insistir em indexar acima da inflação o salário-mínimo, e se os gastos de educação e saúde mantiverem-se atrelados à receita líquida do governo. Como parece que o governo Lula 3 tem firme propósito de não revogar estas medidas, o melhor que se poderia fazer seria deixar a inflação um pouco mais elevada e esperar para que em 2026 vença as eleições um(a) candidato(a) com uma proposta que viabilize fiscalmente o país.

Desta forma, o que deveria o Bacen fazer para conduzir a política monetária nesta zona periclitante?  Em primeiro lugar tirar por completo a ênfase na necessidade de convergência da inflação para a meta de 3% ao ano no horizonte de 18 meses. Segundo, passar a utilizar mais o intervalo de tolerância ao redor da meta como alvo, o que significa uma convergência menos rápida para os 3% ao ano. Terceiro, se o ritmo de gastos continuar como se segue, compreender que não será viável mudar formalmente o centro da meta para cima, sob risco de maiores danos ainda (vejam meu artigo “Mudar a meta requer as contas fiscais em ordem”, Valor Econômico 17/2/2023). Tal medida só poderá ser feita se for executada uma política fiscal que coloque de forma crível a trajetória da relação DBGG/PIB longe da região de dominância fiscal.  Isto quer dizer que, em se mantendo o ritmo atual de crescimento de gastos, o melhor que o Copom pode fazer é descartar o centro da banda. Quarto, incorporar a seus modelos tradicionais (que estão sempre em aperfeiçoamento) estes novos que levam em conta de forma explícita a interação entre a meta de inflação e a política fiscal do país.

Esta política monetária alternativa teria a óbvia desvantagem de elevar a chance de descumprimento da meta (inflação acima do teto do intervalo de tolerância). O que diminuiria a credibilidade do Copom. Por outro lado, também reduziria bastante a chance de que o país entrasse em dominância fiscal. Na dominância fiscal a inflação é bem superior ao teto da banda e teria efeitos muito mais deletérios para a economia, principalmente para a população de renda mais baixa, e para a reputação da Autoridade Monetária.

Agradeço em especial à ajuda para entender os detalhes dos modelos de simulação e à discussão sobre os resultados que mencionei aqui a Rafael Chaves Santos (FGV EPGE) e Vitor Costa (IMPA). Agradeço às simulações feitas por Arthur Regueira da Sarpen Quant Investments.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

Roberto Guimaraes
Excelente artigo.
José Francisco ...
Por aí temos chance...

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