Macroeconomia

Desce a cortina: o espetáculo argentino continua em instantes

27 set 2019

Na seção “Em Foco” do Boletim Macro de jun/19, ressaltamos que a Argentina se manteria sob enorme pressão até (pelo menos) o fim deste ano, com forte possibilidade de políticas populistas em meio a uma campanha virulenta, pouco propositiva e que, no melhor cenário, não ajudaria a mitigar as grandes incertezas sobre o comportamento do país nos próximos anos. Já expressávamos dúvidas sobre a capacidade de pagamento dos empréstimos contraídos junto ao FMI (ao menos nas condições originalmente acordadas), sobre a necessidade de novos aportes e sobre as condições de governabilidade depois dos inúmeros choques recentes. No melhor cenário, já nos parecia que seria bastante difícil.

A despeito da grande complexidade do tema, os investidores (em especial os estrangeiros) sempre trataram as eleições argentinas de forma um tanto maniqueísta: o macrismo (a chapa Macri-Pichetto) representaria o compromisso com reformas e políticas pró-mercado, ao passo que o kirchnerismo (a chapa Fernández-Kirchner) seria a volta ao passado, ao default e ao descontrole macroeconômico. Mostras de que a realidade era bem mais complicada eram deixadas de lado: as medidas populistas implementadas por Macri em meados do segundo trimestre, com enorme eco em políticas kirchneristas de um passado não tão distante, foram solenemente ignoradas (no que certamente a “vista grossa” do FMI ajudou).

Com efeito, as esperanças do mercado foram alimentadas pelas pesquisas eleitorais feitas entre o final de junho e o início de agosto. As dezenas de informações disponíveis traziam enorme dispersão numérica, mas continham um elemento comum: a diferença entre Fernández-Kirchner e Macri-Pichetto diminuía, ainda que os primeiros sempre se mantivessem à frente. Macri mostrava-se, a princípio, cada vez mais competitivo – bem diferente de dizer que ganharia a eleição, ainda que muitos analistas tenham tido esta interpretação.

Lembramos que o sistema eleitoral argentino é repleto de peculiaridades. As eleições são implementadas em ballotage, uma forma modificada da eleição em dois turnos. Um candidato ganha o pleito em primeiro turno se atingir ao menos 45% dos votos ou pelo menos 40% dos votos e mantiver uma diferença de 10 pontos percentuais em relação ao segundo colocado.

Mais ainda, as eleições majoritárias argentinas são precedidas por outra eleição obrigatória – as eleições Primarias, Abiertas, Simultáneas y Obligatorias (PASO). As PASO foram criadas no governo Néstor Kirchner (2009) para definir cláusulas de barreira e a composição da chapa de cada partido/coligação, para cada modalidade (Executivo ou Legislativo) e em cada província do país. Como o voto é obrigatório, as PASO são, na prática, a maior pesquisa eleitoral do planeta.

E então veio o choque. As PASO de 11 de agosto mostraram um cenário eleitoral completamente distinto do contido nas pesquisas. Fernández-Kirchner mantiveram liderança (o que não seria, por si, surpresa), mas não só com praticamente 15 pontos percentuais de diferença para Macri-Pichetto, como também rompendo a barreira dos 45% de intenção de voto – ou seja, se as PASO fossem as eleições majoritárias (que ocorrerão em outubro), haveria incontestável vitória da oposição em primeiro turno.

Os resultados regionais foram ainda mais contundentes. Para a eleição presidencial, a chapa Macri-Pichetto só obteve vitórias em duas províncias: Córdoba e na Cidade Autônoma de Buenos Aires. Nas eleições locais, o Cambiemos colecionou derrotas em praticamente todo o país, incluindo a Província de Buenos Aires: Maria Eugenia Vidal, estrela do movimento e, para muitos, um nome mais forte do que Macri para a eleição presidencial, ficou 17 pontos percentuais atrás de Axel Kicillof (ex-ministro da Fazenda de Cristina Kirchner). Resultado inequívoco: um contundente não ao Macrismo, ouvido para muito além das fronteiras do país.

No dia seguinte às primárias, os mercados acusaram o golpe: ondas de pânico e desmonte de posições varreram os ativos. O peso argentino depreciou-se em 15%, os títulos da dívida pública perderam em torno de 25% do seu valor, o índice da Bolsa de Buenos Aires (Merval) caiu 38% e o risco-país (de 5 anos) chegou a 2700 pontos-base. Tentando estancar a sangria, o Banco Central Argentino se viu obrigado a elevar as taxas de juros para além de 75%a.a. Reverberações e contágio financeiro foram percebidos em todos os países emergentes, destacando a América Latina e, em específico, o Brasil. Tudo isso ocorreu somente no dia 12 de agosto.

Depois do choque, a dúvida: a quem a população culparia? Macri, o comandante em exercício, que foi incapaz de lidar com o cenário externo mais adverso, e sob quem as condições da economia e da vida da população começaram a piorar fortemente desde meados do ano passado? Ou Fernández, cuja volta (aliada à de Cristina Kirchner) reativou o medo do colapso da macroeconomia argentina, do fechamento da fronteira aos investidores internacionais, de intervencionismos estatais diversos e, em última instância, de um novo default?

Tal pergunta seria, a princípio, o epicentro da dinâmica eleitoral até outubro. Do lado de Fernández, a estratégia vencedora claramente seria se eximir de culpa. Já do lado de Macri, a estratégia possível teria duas vertentes: imputar a culpa do choque à oposição e, ao mesmo tempo, implementar políticas que aliviassem os seus efeitos sobre a população, especialmente a de baixa renda e a classe média (por acaso, onde a oposição concentra grande parte dos seus votos).

Naturalmente, Macri entrou em contradição. Atacou (inicialmente, até de forma virulenta) a oposição, renovou ameaças de que o pior ainda estaria por vir e que a Argentina não deveria voltar às práticas irresponsáveis do passado. Em paralelo, implementou exatamente essas práticas (lembre-se, já havia feito algo do gênero em abril de 2019): benefícios diversos aos trabalhadores, reajuste extraordinário do salário mínimo, bônus especiais para o funcionalismo público, renegociação de dívidas de pequenas e médias empresas, aumento de bolsas de estudo governamentais e uma tentativa (malsucedida) de congelamento dos preços de combustíveis até outubro.

Segundo o próprio governo, tais medidas teriam impacto fiscal de aproximadamente 0,4 p.p. de PIB – praticamente inviabilizando o cumprimento da meta de estabilidade do resultado primário em 2019, pedra angular do acordo feito com o Fundo Monetário Internacional. Começaram a aparecer rumores de ruptura com o Fundo, no que a queda do ministro da Fazenda (Dujovne) e o “silêncio multilateral” não ajudaram. Em um país com elevado endividamento em moeda estrangeira, baixo nível de reservas internacionais e incapaz de gerar as cambiais necessárias ao pagamento de suas obrigações (certamente no longo prazo, quiçá no curto prazo), estavam postos os ingredientes para uma crise cambial.

Dito e feito. Após renovadas pressões sobre a moeda e gastando quase US$ 15bi das reservas internacionais para contê-las (sem grande sucesso), o governo capitulou. Em 28 de agosto (duas semanas depois das primárias), foi anunciado o reescalonamento dos pagamentos da dívida pública. Nos vencimentos de curto prazo, as pessoas físicas seriam preservadas, mas os clientes institucionais receberiam, no prazo do vencimento, somente 15% dos valores devidos – 25% adicionais em três meses e 60% em seis meses. Em paralelo, foi anunciado que os termos de pagamento do empréstimo do Fundo seriam revistos e que a dívida de longo prazo também seria renegociada. Em todos os casos, os termos da renegociação devem ser aprovados tanto pelo Congresso argentino como pelos credores.

Em termos estritos, a Argentina não disse que não iria pagar – ou seja, não seria um default. Em termos objetivos, isso é somente uma questão semântica – nos prazos e taxas de juros compactuadas, o país afirmou que não poderia honrar seus compromissos. Mais ainda, parece improvável que uma negativa de renegociação por parte de algum dos credores seja seguida pelo pagamento imediato dos valores devidos.

Se o anúncio do reescalonamento dos pagamentos foi uma surpresa para os mercados (ao menos neste momento), o que se seguiu foi longe de surpreendente: nova queda intensa dos valores dos títulos públicos, aumento do risco-país (inclusive chegando a ser classificado como selective default em algumas agências de risco), novo ajuste à baixa na Bolsa e pressão adicional sobre a taxa de câmbio.

Ato contínuo, medidas administrativas tiveram que ser tomadas para evitar a sangria adicional de dólares. Dando sequência a uma já longa série de “atos kirchneristas”, o governo baixou decreto no início de setembro pelo qual restringe a compra de dólares por empresas e bancos, limita as remessas de lucros e dividendos, obriga exportadores a internalizar seus ganhos em dólares e estabelece limite de compras mensais de US$ 10 mil para os poupadores. Ao mesmo tempo, avolumaram-se as evidências de aceleração inflacionária. O sonho da reeleição acabou.

Macri abriu seu mandato flexibilizando as regras de acesso ao mercado cambial (removendo o Cepo definido pelo governo Kirchner em 2011) e terminará seu termo presidencial restringindo o acesso dos argentinos à moeda forte. O controle cambial vigorará até o dia 31 de dezembro – vinte dias depois da posse no novo presidente, que, salvo reviravolta inacreditável, será Alberto Fernández.

O próximo presidente receberá um país em frangalhos: inflação acelerando (mesmo com os controles de preços), demanda interna colapsando, desemprego crescendo, taxas de juros nas alturas e, acima de tudo, enorme incerteza prospectiva. São pertinentes as dúvidas a respeito da governabilidade, em uma sociedade fragmentada, com aparente grande rotação de seus quadros políticos e sem sinal claro de apoio da comunidade internacional.

Ainda que certos acenos tenham sido feitos, inclusive em movimentos conjuntos com o atual governo, falta convicção sobre a real capacidade de negociação entre a Argentina e seus credores externos. Nem mesmo os aportes do FMI de outubro, anteriores à eleição, parecem estar garantidos. Em resumo, falta uma “Carta ao Povo Argentino” – ainda há tempo, mas não é claro se há vontade ou convicção.

Como esse cenário afeta o Brasil? O canal mais imediato é o contágio financeiro, com as ondas de choque argentinas sendo sentidas na classe emergente em geral e, em específico, na América Latina e no Brasil. Ainda que esse efeito seja perceptível, entendemos que há outros canais mais importantes – e com implicações mais severas, não só para este ano como para o próximo.

Em recente artigo no Blog do IBRE, minhas colegas Luana Miranda e Mayara Santiago fizeram um cuidadoso debate sobre as interligações reais existentes entre Brasil e Argentina. Em resumo, há enorme integração entre as cadeias produtivas dos dois países, o que vai muito além do setor automotivo (usualmente, o “vaso comunicante” mais lembrado): quase 60% de nossas exportações para a Argentina se dão em bens industriais intermediários.

Hoje, é virtualmente impossível quantificar o tamanho do choque em curso, ainda que a direção pareça mais do que óbvia – haverá desaceleração adicional da economia argentina, partindo de uma posição inicial já combalida e abortando a recuperação cíclica a partir do segundo semestre deste ano.

Olhando para 2018 e para 2019 (neste segundo caso, utilizando as estimativas para o comportamento da economia argentina feitas pelo FMI em julho, antes do choque e, portanto, certamente defasadas), as autoras estimaram que a crise argentina retirou 0,2 p.p. de crescimento brasileiro no ano passado e que deverá tirar algo como 0,5 p.p. este ano. É difícil imaginar que a Argentina não seja fator a deprimir nosso crescimento também em 2020.

Em conclusão, grande parte das perguntas que fizemos em nosso comentário de junho continuam válidas. Os empréstimos contraídos com o FMI serão pagos? Sob quais condições? Qual a taxa de sacrifício que será imposta ao povo? Haverá governabilidade? O tecido social e político irá se esgarçar e chegar ao ponto de ruptura? Todas perguntas pertinentes; (ainda) sem resposta, mas, infelizmente, com tom cada vez mais negativo.

Desce a cortina: o espetáculo continua em instantes.

Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de março de 2019. Leia aqui a versão integral do BMI Setembro/19. 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

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