Macroeconomia

Desequilíbrio geral

3 nov 2021

A tentativa de usar a tributação de dividendos como fonte de financiamento do novo programa social e a PEC dos Precatórios reflete o fato de que nem o governo nem o Congresso estão dispostos a reduzir outras despesas para custear a expansão da rede de proteção social.  

Nos últimos dias temos assistido a uma nova rodada de deterioração dos indicadores econômicos do país. A possibilidade de uma situação de estagflação vai se tornando mais concreta diante da rápida aceleração da inflação e de novas revisões para baixo das projeções do mercado para o crescimento do PIB, algumas das quais já envolvem queda da atividade econômica em 2022.

Também surgiram sinais mais contundentes de perda de ancoragem das expectativas de inflação, não somente para o ano que vem mas também para prazos mais longos. Essas evidências, combinadas com a elevação de suas projeções de inflação e da assimetria negativa do balanço de riscos, levaram o Banco Central a intensificar esta semana o ritmo de elevação da Selic.

No que diz respeito ao mercado de trabalho, já existem evidências de desaceleração na geração de postos de trabalho formais de acordo com o CAGED. Os números da PNAD Contínua referentes ao trimestre encerrado em agosto, por sua vez, mostram que o aumento do emprego tem sido impulsionado por ocupações informais, com remunerações em média mais baixas.

Embora o quadro econômico já venha se deteriorando há alguns meses, ele foi consideravelmente agravado pela mudança do teto de gastos aprovada semana passada na Comissão Especial da Câmara criada para deliberar sobre a PEC dos Precatórios. Isso pode representar o fim da única âncora fiscal que resta, após sucessivas flexibilizações da Regra de Ouro e da Lei de Responsabilidade Fiscal, e déficits primários sucessivos desde 2014.

O ministro da Economia tem se queixado de economistas que, em sua avaliação, têm treinamento deficiente em equilíbrio geral. Aparentemente a crítica foi endereçada a analistas que não estariam compreendendo o plano econômico do governo ou mesmo questionando sua existência. No entanto, o grande problema de várias propostas recentemente apresentadas pelo governo reside precisamente em suas repercussões negativas em um contexto de equilíbrio geral.

Começando pela reforma do imposto de renda, um de seus objetivos declarados é oferecer uma fonte de financiamento para o novo programa social, por meio da tributação de dividendos, além de aumentar a progressividade da tributação de renda. No entanto, a isenção da tributação de dividendos para sócios de empresas do Simples e do lucro presumido com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões beneficia profissionais com rendimentos elevados, o que reduz a progressividade do sistema tributário.

Além disso, várias estimativas apontam para um efeito líquido de redução das receitas caso o PL do imposto de renda seja aprovado. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), o impacto negativo seria de R$ 34,1 bilhões em 2022, R$ 15,4 bilhões em 2023 e R$ 16,1 bilhões em 2024.

Embora o PL reduza a carga tributária corporativa (IRPJ e CSLL), é difícil imaginar que o possível aumento de competitividade possa compensar os efeitos negativos de equilíbrio geral decorrentes da piora das contas públicas, como a elevação da inflação e da taxa de juros. Também é pouco provável que se consiga reduzir a pobreza de forma sustentada num ambiente de crescimento da dívida pública.

Já o substitutivo da PEC dos Precatórios conseguiu a proeza de combinar vários impactos negativos de equilíbrio geral em uma proposta. A proposição cria um limite correspondente ao valor pago das despesas judiciais em 2016 (ano base de cálculo do teto de gastos) corrigido pelo mesmo fator de correção do teto. Os valores que excedessem este limite a partir de 2022 seriam acumulados para quitação em anos seguintes. Como mostra uma nota da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, esta proposta tende a gerar um volume crescente do saldo devedor não pago, com consequências muito negativas para a credibilidade da União.

Outra mudança de grande impacto foi a alteração do teto de gastos, que passaria a ser corrigido para o ano seguinte pela variação do IPCA acumulada de janeiro a dezembro do ano corrente, e não mais pela inflação acumulada em doze meses até junho do ano corrente. Além de representar uma mudança casuística para não somente aumentar o valor do benefício social, mas também acomodar despesas de caráter eleitoreiro, como as emendas de relator e o aumento do Fundo Eleitoral, pode haver um aumento da insegurança jurídica. Isso ocorre porque o orçamento teria que ser elaborado sem que se saiba qual o valor do teto de gastos, já que a inflação do ano corrente só é conhecida em janeiro do ano seguinte.

O resultado mais provável de um aumento do benefício social financiado por expansão da despesa e mudança arbitrária do teto de gastos será uma aceleração da inflação. Isso irá correr o valor real do benefício, além de prejudicar a recuperação do mercado de trabalho. A consequência de equilíbrio geral poderá ser uma elevação da pobreza.

Tanto a tentativa de usar a tributação de dividendos como fonte de financiamento do novo programa social, como a desastrosa PEC dos Precatórios, refletem o fato de que nem o governo nem o Congresso estão dispostos a reduzir outras despesas para custear a necessária expansão da proteção social. O resultado é o desequilíbrio geral que estamos assistindo.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 29/10/2021.

Comentários

Victor Gomes
Marcos Venícius...
Marcos Venícius...
fernando.dantas

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.