Dez gatilhos e quase nenhuma munição
Nas últimas semanas o mercado financeiro subiu e caiu diante do conflito entre declarações oficiais a favor do atual teto de gasto e a dificuldade crescente de cumprir a promessa feita por Temer, para seus sucessores.
Diante da incompatibilidade da Proposta de Lei Orçamentária (PLOA) de 2021 com as demandas da sociedade, do Congresso e do próprio poder Executivo, o debate atual entre defensores do teto Temer se concentra em como antecipar os ajustes automáticos de despesa previstos na legislação.
Lembrando, a Emenda Constitucional 95/2016 estabelece que, caso o teto de gasto seja descumprido, haverá algumas vedações automáticas de despesa. Porém, devido a um defeito de fabricação, a mesma legislação torna quase impossível que o teto Temer seja descumprido, pois como o orçamento deve respeitar a Constituição, não há como a despesa extrapolar o limite de gasto sem uma decisão deliberada das autoridades em tal direção.
Em resposta ao problema acima, alguns analistas sem experiência de governo chegaram a sugerir que a equipe econômica de Bolsonaro descumprisse a Constituição executando despesas de orçamentos anteriores (pagamento de “restos a pagar”), para “descumprir cumprindo” o teto Temer e, desta forma, acionar os gatilhos. Por essa lógica tortuosa, o governo deveria “elevar a despesa para reduzir despesa”, com possibilidade de crise institucional no meio do caminho. Obviamente essa ideia não prosperou nem onde ela foi proposta, no Congresso Nacional.
Do outro lado, mas ainda dentro do núcleo favorável ao teto Temer, a equipe econômica de Temer... ops... de Bolsonaro agora defende nova proposta de emenda constitucional (PEC) para acionar os gatilhos de ajuste do gasto quando a despesa primária obrigatória chegar a 95% do gasto primário total da União. Como já estamos perto desse limite, caso o governo aprove a “PEC dedo no gatilho”, teoricamente seria possível remanejar alguns recursos dentro do teto Temer.
Na prática, apesar de menos arriscada do que a proposta de “descumprir cumprindo a Constituição”, a solução da equipe Temer-Bolsonaro para manter o teto Temer também não resiste a uma análise realista por um simples motivo: a maioria dos gatilhos que o governo quer acionar já estão informalmente em vigor!
Especificamente, segundo o texto da Emenda Constitucional 95/2016, no caso de descumprimento do teto Temer ficariam vedadas dez tipos de iniciativas, quais sejam:
1) Aumentos para servidores (exceto decorrentes de sentença judicial ou determinação legal anterior ao teto de gasto).
2) Criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa.
3) Alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa.
4) Admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa e aquelas decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios.
5) Realização de concurso público, exceto para as reposições de vacâncias.
6) Criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza em favor de membros de servidores públicos e militares.
7) Criação de despesa obrigatória.
8) Reajuste do salário mínimo acima da inflação.
9) Criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, bem como a remissão, renegociação ou refinanciamento de dívidas que impliquem ampliação das despesas com subsídios e subvenções.
10) Concessão ou a ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária.
A maioria das medidas acima já está acontecendo.
Começando pelas ações focadas na remuneração de servidores. O governo já não pretende fazer concursos além do mínimo necessário, bem como não tem plano de conceder reajustes, abonos ou vantagens para a maioria dos servidores. A única exceção acontece para militares, onde há uma reestruturação de carreira, com aumento de despesa, planejada para 2021 em diante. Teoricamente, a aprovação da “PEC dedo no gatilho” poderia cancelar ou adiar o aumento de gasto com as forças armadas. Porém, o comportamento recente do Presidente da República, bem como de seu entorno de Ministros-Generais, indica que isso dificilmente acontecerá.
Passando para as quatro medidas restantes, a vedação de criação de despesa obrigatória também tem efeito nulo, uma vez que a própria equipe econômica já declarou que só criaria programas novos cortando programas existentes. Simplesmente não há previsão de criação de despesa nova por parte do Executivo. A “PEC dedo no gatilho” teria, portanto, maior impacto sobre decisões recentes do Congresso contra a vontade do Executivo, como a previsão de expansão do FUNDEB, que ainda não foi regulamentada. Será que os parlamentares aprovarão uma PEC cancelando sua decisão anterior? Possível, mas improvável.
No caso do salário mínimo a situação é parecida, haja vista que o governo já pretende corrigir o valor de 2021 apenas pela inflação passada. A realidade é que, justamente porque a equipe econômica não tem proposta de valorização do salário mínimo, o “gatilho” do salário mínimo já foi acionado.
A mesma falta de munição acontece na vedação de aumento de subsídios e subvenções, pois o governo já reduziu esse tipo de gasto e simplesmente não há aumentos programados para 2021 ou depois.
Por fim, no caso de novas desonerações, o governo já está tentando acabar com as existentes, sem muito sucesso. Do ponto de vista lógico, proibir novas desonerações, por mais meritório que seja, não reduz despesa. A exceção é o caso da desoneração da folha, que é ainda equivocadamente contabilizada como despesa no orçamento primário. Nesse caso o governo Bolsonaro já manifestou intenção de encerrar a desoneração neste ano e, portanto, a “PEC antecipa gatilho” tende a brecar a intenção do Congresso em derrubar o veto de Bolsonaro (para manter a desoneração da folha por mais um ano). Resta saber se nossos parlamentares aprovarão uma PEC barrando outra medida que eles mesmos já aprovaram recentemente.
A principal conclusão da análise acima é algo que todos os especialistas em finanças públicas sabem desde 2016, mas nem todos falam publicamente: o teto Temer foi mal desenhado para cumprir seus próprios objetivos. Os gatilhos previstos dificilmente são acionados e, mesmo quando acionados, eles tendem a ter pequeno impacto na redução de despesa em situação de crise fiscal, uma vez que os “ajustes” são vedações de criação de nova despesa, o que teoricamente já estaria acontecendo em situação de crise fiscal.
Por fim, devido à inviabilidade do teto Temer, a agenda do time Temer-Bolsonaro avançou para outra área, para “quebrar o piso” de várias despesas obrigatórias, com sugestões de:
1) Suspensão “temporária” do reajuste do salário mínimo e dos benefícios previdenciários pela inflação.
2) Fim do piso da educação e saúde.
3) Corte de 25% na folha de pagamento de parte dos servidores civis, preservando “carreiras de Estado”.
O próprio Presidente da República já deu “cartão vermelho” à primeira ideia, logo as iniciativas da equipe econômica tendem a se concentrar na outras duas alternativas nas próximas semanas. Dado que o gasto recorrente (excluindo o efeito da Covid-19) com saúde e educação já tem tendência de queda real, mesmo que o governo consiga “quebrar o piso” para 2021-22, o espaço a ser aberto para outras despesas (quais?) dentro do teto Temer tende a ser pequeno. E, em relação ao eventual corte de 25% na folha de pagamento de alguns grupos de servidores, caso aprovado, o efeito financeiro também tende a ser pequeno, uma vez que várias carreiras já foram antecipadamente excluídas da iniciativa.
Independentemente de avaliações de mérito econômico e social, e tenho muitas contra várias das medidas descritas acima, uma análise objetiva de nossa situação econômica e política indica que o teto Temer já se tornou inviável. A crise da Covid-19 adiou a mudança de nossa regra fiscal, mas o Brasil tem encontro marcado com uma nova regra de despesa em 2021-22. Enquanto isso não acontece, e dada a relutância da equipe econômica em discutir uma saída organizada do impasse, a solução mais provável no curto prazo será a prorrogação do “Estado de Calamidade” e do “orçamento de guerra” em 2021. Quando? Após as eleições municipais de novembro.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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