Distribuição de renda no Brasil e o papel dos rendimentos além do trabalho para a desigualdade: uma análise do período 2012-19
No último mês, foram divulgados os microdados da Pnad Contínua Anual, do IBGE, referentes ao ano de 2019. Diferentemente dos da Pnad Contínua Trimestral, em que os dados de rendimentos são relativos apenas ao universo do trabalho, aqueles trazem consigo informações a respeito de todas as fontes de rendimentos que um indivíduo pode vir a ter.
Tendo informação sobre todas as fontes de renda, é possível observar não só os níveis gerais, mas também a dinâmica de rendas provenientes, além do trabalho, de aposentadoria, programas sociais (Bolsa Família e BPC), seguro-desemprego e outros rendimentos[1]. O Gráfico 1 mostra a evolução, de 2012 a 2019, da média da renda domiciliar per capita agregada e por fonte[2].
Gráfico 1:
Entretanto, no que diz respeito a análises de rendimentos, mais importante que entender sua dinâmica global é compreender a maneira através da qual a renda distribui-se pela população. Uma forma de fazê-lo é segmentar a amostra a partir dos percentis da distribuição de renda aos quais se referem os diferentes indivíduos nela presentes. Desse modo, conseguimos focalizar nossa investigação e, portanto, torná-la mais acurada.
Nesse sentido, ao dividir a distribuição de renda por decis (isto é, em dez segmentos com a mesma quantidade de pessoas, das mais pobres às mais ricas), faz-se possível o cálculo não só das faixas de renda que determinam os diferentes percentis, mas também de suas médias, por exemplo. Com efeito, utilizando-se os rendimentos per capita de todas as fontes, a Tabela 1 demonstra tais cálculos para o ano de 2019, a preços médios do mesmo ano. A primeira coluna indica o decil, e a segunda e a terceira, os respectivos intervalos de renda e médias, nessa ordem.
Tabela 1: Intervalos e médias de rendimentos mensais per capita de todas as fontes por decis.
Ano de 2019, a preços médios do mesmo ano.
Decil |
Intervalo |
Média |
1º decil |
0 a 220 reais |
109 reais |
2º decil |
220 a 363 reais |
294 reais |
3º decil |
363 a 500 reais |
436 reais |
4º decil |
500 a 665 reais |
572 reais |
5º decil |
665 a 860 reais |
747 reais |
6º decil |
860 a 1000 reais |
950 reais |
7º decil |
1000 a 1320 reais |
1133 reais |
8º decil |
1320 a 1760 reais |
1522 reais |
9º decil |
1760 a 2800 reais |
2184 reais |
10º decil |
2800 a 116667 reais |
5994 reais |
Fonte: Pnad Contínua Anual, IBGE. Elaboração própria.
Dessa maneira, repetindo a mesma análise desde 2012 a 2019, tornamo-nos capazes de observar a dinâmica da renda média per capita dos diferentes decis ao longo do tempo. Nesse aspecto, o Gráfico 2, que mostra a chamada Curva de Incidência, demonstra a variação, por decis, dos rendimentos de todas as fontes per capita[3] para quatro períodos: 2012 a 2014 (pré-crise); 2014 a 2016 (crise); 2016 a 2019 (pós-crise); e 2012 a 2019.
Gráfico 2:
No gráfico acima, as colunas de cores vermelha, verde e amarela indicam, respectivamente, as variações dos rendimentos per capita de todas as fontes relativas aos períodos de pré-crise, crise e pós-crise para cada um dos decis de renda, ao passo que a linha o faz para todo o período, isto é, de 2012 a 2019. Portanto, convém dividir nossa análise para cada um dos períodos.
Durante o período pré-crise, conforme se pode observar, todos os decis de renda apresentaram variação positiva de sua renda. Durante o período de crise, entretanto, os rendimentos de todos os decis foram reduzidos, apesar de que os mais pobres foram os mais afetados, tendo os 10% mais pobres observado um efeito de anulação do incremento de renda que obtiveram no período anterior. No período pós-crise, finalmente, não fosse o primeiro decil, todos os outros percentis teriam tido suas rendas acrescidas em alguma dimensão, apesar de que de forma heterogênea.
Dessa maneira, avaliando-se o período de 2012 a 2019 em toda sua extensão, todos os decis de renda conseguiram – de forma desigual, contudo – incrementar suas rendas, com a exceção dos 10% mais pobres. Estes, particularmente, não só foram os mais afetados pela crise, como também os com maior dificuldade de recuperação no período seguinte a ela, de modo que tiveram redução de cerca de 18% em seus rendimentos médios per capita ao longo do período.
Contudo, convém lembrar que os dados analisados no Gráfico 1 dizem respeito aos rendimentos per capita de todas as fontes. Nesse sentido, a fim de entender de que maneira as diferenças de composição das rendas entre os decis se expressam em suas distintas dinâmicas, faz-se necessário analisar a evolução dos rendimentos de cada uma das fontes de forma isolada. A partir disso e tendo em vista as particularidades composicionais de rendimentos entre os diferentes decis, conseguimos ter alguma dimensão da importância de cada um dos rendimentos para a suavização ou exacerbação de suas oscilações. Nesse sentido, comecemos analisando os rendimentos provenientes do trabalho que, conforme vimos no Gráfico 1, constituem-se como os mais importantes na composição da renda total. Tal qual o gráfico anterior, o Gráfico 3 apresenta as variações de renda nos períodos analisados para cada um dos decis da distribuição dos rendimentos de todas as fontes, porém dessa vez levando em conta apenas a renda do trabalho.
Gráfico 3:
Como se pode observar, analisando-se apenas os rendimentos do trabalho, o quadro geral parece ser bem pior. Não só a queda de renda dos 10% mais pobres tornou-se ainda mais acentuada, chegando a cerca de 25% de redução, como também a dinâmica da curva do período de 2012 a 2019 mostra-se errática, de modo que outros decis que, conforme vimos no Gráfico 2, tiveram incremento de renda, deixaram de tê-lo e passam a apresentar reduções significativas em suas rendas médias. Portanto, torna-se clara, no primeiro momento, a grande influência às flutuações abruptas a que os rendimentos do trabalho se viram sujeitos por conta da crise econômica. Tal fenômeno explica-se, sobretudo, pelo desemprego e necessidade de redução de salários que grande parte da população teve – e ainda tem, em grande medida – de suportar a partir da crise que se instalou no país em meados de 2015.
Entretanto, resta uma explicação para o seguinte questionamento: como pode ter sido a flutuação dos rendimentos de todas as fontes tão mais suave que a da renda relativa ao trabalho? Para tanto, necessitamos investigar, justamente, as outras fontes constitutivas dos rendimentos de todas as fontes, quais sejam: programas sociais (Bolsa Família e BPC), aposentadorias, seguro-desemprego e outros rendimentos. Nesse aspecto, o Quadro 1 constitui-se pelas contribuições[4] de cada uma dessas fontes à variação dos rendimentos médios per capita totais para os quatro períodos analisados.
Quadro 1:
Como se vê pelo quadro acima, no período de 2012 a 2019, a renda de todos os trabalhos e aposentadorias e pensões dos indivíduos das famílias 10% mais pobres se reduziu consideravelmente, acumulando uma queda superior a 25%. No entanto, programas sociais e outros rendimentos tiveram papel importante para a suavização a queda dos rendimentos totais, a qual se mostrou inferior a 20% (ainda assim muito expressiva). Entretanto, convém lembrar, conforme apontado nas notas de rodapé, que é justamente no ano de 2015 em que se promovem as modificações no dicionário da Pnad Contínua Anual, de modo que a análise dos outros rendimentos, em particular, torna-se imprecisa, sobretudo para o período de 2014 a 2016.
Além disso, pode-se verificar também uma notável expansão dos rendimentos de aposentadoria e de programas sociais para o 6º decil, principalmente no período de 2016 a 2019. Tal fenômeno ocorreu justamente pela inclusão, nesse período, de diversas pessoas desse percentil da distribuição aos rendimentos de aposentadoria e ao BPC. Em particular, o 6º decil constitui-se como o percentil da distribuição com não só o maior número de beneficiários do BPC e de aposentados, mas também a maior expansão de pessoas dessas categorias nesse período. Desse modo, variações desses rendimentos, por um efeito composicional, têm forte influência nos rendimentos totais. Assim, explica-se a queda dos rendimentos de todos os trabalhos para esse decil, conforme mostrado no Gráfico 3.
Portanto, a partir desta análise, pode-se depreender que, muito embora seja a categoria de maior importância relativa para os rendimentos totais, a renda do trabalho mostra-se insuficiente para explicar todas as variações de rendimentos ocorridas no período explorado. Nesse sentido, uma investigação a respeito das fontes de rendimentos em sua completude – em particular dos programas sociais, para as parcelas mais pobres da população – demonstra-se condição necessária para uma análise mais completa a respeito das dinâmicas distributivas dos rendimentos no Brasil.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Por conta de uma alteração qualitativa na descrição da variável da Pnad Contínua em 2015, a análise da evolução dos outros rendimentos (aluguéis, arrendamentos, pensão alimentícia, caderneta de poupança, entre outros) torna-se imprecisa. Desse modo, não o analisaremos com detalhe neste texto.
[2] A soma das fontes não necessariamente se equivale à renda total devido a uma mudança na definição desta última pelo IBGE no quarto trimestre de 2015, que impede a compatibilização perfeita.
[3] Por conveniência dos cálculos, construímos a variável de rendimento de todas as fontes per capita como o somatório de cada uma das fontes. Na medida em que os valores se mantêm praticamente os mesmos que o da variável do próprio dicionário da Pnad Contínua (apesar de não perfeitamente iguais, como já mencionado), tal operação não altera em muito o resultado da análise.
[4] O cálculo de contribuição de cada uma das fontes à variação total se dá pelo produto entre a variação do rendimento da fonte e sua importância relativa no período inicial. Dessa maneira, o somatório das contribuições equivale à variação total dos rendimentos de todas as fontes.
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