Macroeconomia

Dominância fiscal e o papel das expectativas

26 nov 2020

Com os índices inflacionários mais desfavoráveis dos últimos meses, acendeu o sinal de alerta de que o Banco Central talvez tenha que elevar as taxas de juros antes do que se esperava. Esses desdobramentos da crise trouxeram de volta a tese da dominância fiscal.

A dominância fiscal se refere à situação em que o Banco Central se vê impedido de elevar a taxa de juros para combater a inflação porque a elevação do pagamento de juros sobre a dívida pública amplifica o desequilíbrio fiscal. O desequilíbrio afugenta investidores, a taxa de câmbio se deprecia e a inflação se acelera. Nessas condições, a política monetária se torna ineficaz e, até mesmo, contraproducente.

Não é a primeira vez que esse debate surgiu. Nas crises de 2002 e 2015, vários economistas alegaram que vivíamos essa situação. Em ambos os casos, o Banco Central elevou as taxas de juros, a inflação cedeu e a política fiscal se ajustou ao novo equilíbrio. Em 2003, o governo elevou o superávit primário em 0,5 p.p. do PIB e, em 2016, o governo adotou uma nova regra fiscal que prometeu um ajuste de longo prazo a ser viabilizado pela reforma da previdência.

Os dois episódios mostram que a tese da dominância fiscal foi equivocada, mas evidenciam a importância das expectativas. O primeiro episódio teve como origem a desconfiança, rapidamente desfeita, dos detentores da dívida pública ao eventual default por conta da mudança de governo. O segundo episódio se desfez com uma promessa de reforma da previdência que só foi cumprida três anos depois em 2019.

A atual discussão sobre dominância fiscal tem contornos muitos distintos dos episódios anteriores. A expectativa de inflação para 2021 se encontra abaixo da meta. As pressões inflacionárias possuem natureza temporária, mas mesmo que esse quadro sofra alterações, é possível revertê-lo caso necessário como sempre fizemos.

O país conta com elevado nível de reservas internacionais para administrar choques de curto prazo na taxa de câmbio. Há mais de uma década sabemos que as depreciações cambiais possuem efeitos positivos sobre a dívida líquida do governo por sermos credores em moeda internacional. O que está ocorrendo é que, tal como nos episódios anteriores, existe uma desconfiança crescente. Assim, a discussão de dominância fiscal está deslocada das questões mais emergenciais que devem resolver o problema das expectativas.

Apesar das perspectivas serem mais positivas para o desfecho da crise, a segunda onda na Europa e nos Estados Unidos pode elevar a aversão ao risco no início do próximo ano. A combinação de um choque financeiro externo com uma nova rodada de paralisações no Brasil aumenta nossa vulnerabilidade. A percepção de paralisia política e econômica em um cenário adverso alimenta essa desconfiança. É para uma situação adversa e emergencial como essa que devemos estar preparados.

No primeiro quadrimestre do ano, os vencimentos da dívida pública serão de R$ 605 bilhões. Os últimos dados sobre o caixa da STN são de setembro e mostram que existem R$ 722 bilhões disponíveis para a gestão da dívida. Mesmo com sobras, a utilização excessiva desses saldos pode colocar em risco o manejo da dívida porque ainda teremos um déficit elevado para financiar e mais vencimentos expressivos ao longo do restante do ano.

É necessário reforçar o caixa do Tesouro a partir do repasse dos recursos do lucro do Banco Central, da devolução de empréstimos dos bancos públicos e aprovando a desvinculação de fundos públicos tal como previsto pelo PLP 137/2020. As emissões da dívida deveriam ser melhor distribuídas no tempo projetando um prazo realístico para a distribuição da vacina porque é quando a crise terá fim e parte do risco fiscal e das demais incertezas serão dissolvidas.

Existem dois desafios importantes para o orçamento de 2021 que ainda não possui perspectiva de aprovação. O primeiro é o cumprimento do teto de gastos que se tornará um problema concreto. Existem mais de R$ 20 bilhões para serem incorporados nas projeções orçamentárias em decorrência da derrubada do veto da desoneração da folha e da atualização do valor dos benefícios sociais com a elevação do INPC. Com isso, as despesas discricionárias devem ficar muito abaixo do que se considera como limite para evitar o shutdown da máquina pública.

O segundo desafio é que o orçamento nunca esteve tão distante das prioridades da sociedade. O conjunto de regras e limites definidos para a elaboração do orçamento deixam uma parcela da sociedade, mais vulnerável à pandemia, de fora das políticas públicas. O governo não deveria desistir de avançar nisso. É um legado importante.

Estranhamente não se vê preocupações com esses temas. Mas tudo parece mais difícil para um governo que ainda não conseguiu pedir para a sociedade usar máscaras e que alega que atingimos a imunidade de rebanho. Em muitos assuntos, nem sequer finge que está tentando acertar. Essa é a fonte de desconfiança mais importante a ser desfeita.


Este artigo foi publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 25/11/2020, quarta-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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