Macroeconomia

Dominância política

16 nov 2021

Enquanto a situação de dominância política perdurar, é pouco provável que o país consiga superar a trajetória de instabilidade macroeconômica e crescimento medíocre das últimas décadas. Até lá, o foco deve ser na contenção de danos para evitar uma piora da situação. 

Esta semana tivemos uma nova rodada de deterioração das projeções dos principais indicadores da economia brasileira. A mediana das expectativas de mercado para o crescimento do PIB em 2022 caiu para 1%, e várias instituições financeiras e consultorias estimam que haverá estagnação ou queda da atividade econômica ano que vem.

O cenário para a inflação é ainda mais preocupante, com o segundo mês seguido de variação do IPCA acumulada em 12 meses na casa dos dois dígitos. Após a divulgação da inflação de 10,67% em outubro, as projeções de mercado têm sido revisadas para faixas próximas de 10% em 2021 e acima de 5% em 2022. Isso tem levado a uma revisão para cima das expectativas de aumento da Selic, com aumento da probabilidade de uma elevação de 2 pontos percentuais na próxima reunião do Copom em dezembro.

Embora esta aceleração da inflação esteja acontecendo em vários países, em decorrência de pressões de custos associadas a disrupções nas cadeias globais de valor e aumento do custo da energia, o quadro inflacionário no Brasil é agravado devido aos riscos fiscais e políticos.

A mudança do teto de gastos introduzida na PEC dos Precatórios aprovada esta semana na Câmara foi um divisor de águas neste sentido, com consequências negativas que provavelmente serão permanentes caso também seja aprovada no Senado.

Primeiro, por representar na prática o fim da única âncora fiscal que resta. Na última década, a Lei de Responsabilidade Fiscal foi flexibilizada ou ignorada de diversas formas, o que fez com que se tornasse incapaz de impedir um colapso fiscal no governo Dilma. Isso, por sua vez, resultou na grave recessão de 2014-2016, da qual o país ainda não havia se recuperado quando eclodiu a pandemia.

Outro componente do arcabouço fiscal que tem sido descumprido todo ano, mediante solicitação de autorização do Executivo ao Congresso, é a Regra de Ouro. O governo inclusive tentou introduzir na PEC dos Precatórios um dispositivo que facilitaria esse descumprimento que, no entanto, foi retirado em função da aprovação de um destaque.

Finalmente, desde 2014 têm sido registrados déficits primários sucessivos. Diante do forte crescimento das receitas, havia a possibilidade de redução expressiva do déficit primário em 2022. No entanto, devido ao aumento projetado das despesas e uma possível perda de receita caso seja aprovada a reforma do imposto de renda, a perspectiva de equilíbrio fiscal ficou mais distante.

Outro aspecto muito negativo da mudança do teto de gastos foi seu caráter abrupto e casuístico, com uma mudança súbita no indexador das despesas para satisfazer interesses eleitorais. Na medida em que fica claro que uma regra inscrita na Constituição pode ser modificada dessa forma, seu papel de âncora fiscal fica evidentemente comprometido.

Me parece claro, portanto, que nosso crônico problema fiscal está relacionado não tanto a uma eventual carência ou imperfeição de instrumentos legais, mas sim a algo muito mais amplo, que diz respeito à dificuldade de conciliar a contínua pressão por mais gastos com o equilíbrio fiscal.

Esse conflito teve consequências dramáticas ao longo de nossa história, como a hiperinflação dos anos oitenta e início dos anos noventa, que só veio a ser debelada graças ao Plano Real. Com o fim da inflação alta, a pressão por mais gastos resultou em grande aumento da carga tributária e, quando este mecanismo deixou de ser politicamente factível, o resultado foi uma explosão da dívida pública.

O teto de gastos, aprovado em 2016, foi uma tentativa de resolver este conflito de forma mais coordenada. Agora o barco corre o risco de ficar novamente à deriva, e as consequências negativas sob a forma de inflação mais alta e menor crescimento já são evidentes.

O conceito de dominância fiscal diz respeito a situações em que a política monetária perde a capacidade de controlar a inflação devido à falta de coordenação com a política fiscal, geralmente associada a um descontrole da dívida pública. Embora essa possibilidade já tenha sido aventada para o Brasil em algumas ocasiões, como no processo eleitoral de 2002, não existem evidências claras de que já estivemos nessa situação.

O que parece ter acontecido nos últimos anos, no entanto, é um quadro de progressiva dominância política, cuja expressão mais evidente (embora não única) são as famigeradas emendas de relator. Embora a demanda dos parlamentares por mais recursos seja legítima se for feita de forma transparente, ela pode resultar em desequilíbrio fiscal caso não haja uma coordenação adequada com o Executivo.

A falta de capacidade de coordenação do governo Bolsonaro com o Congresso, revelada desde o início da atual gestão, e que culminou na terceirização da agenda econômica para o Centrão, dificulta consideravelmente a capacidade do Banco Central de controlar a inflação. Além disso, a incerteza política e fiscal, que tem permanecido em patamares elevados desde 2015, coloca enormes obstáculos para decisões de investimento e, consequentemente, para uma retomada sustentada da economia.

Enquanto esta situação de dominância política perdurar, é pouco provável que o país consiga superar a trajetória de instabilidade macroeconômica e crescimento medíocre das últimas décadas. Até lá, o foco deve ser na contenção de danos. Afinal, temos visto nos últimos meses que o que é ruim pode piorar.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 12/11/2021.

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