Política

Eleições municipais e as perspectivas do sistema partidário

28 out 2024

Eleição municipal não antecipa bem disputa presidencial, mas ajuda a discernir futura composição da Câmara e tendências do sistema partidário: em 2024, divisão da direita, mudança na liderança do centro e desvitalização do PT.

Eleições municipais não são boas preditoras da disputa presidencial que acontece dois anos depois. O resultado dos pleitos municipais ajuda, isto sim, a discernir, em grandes linhas, a futura composição da Câmara dos Deputados e as principais tendências do sistema partidário. Por exemplo, as eleições municipais de 2016 revelaram claramente a ascensão da direita e o declínio do PT.

O primeiro turno das últimas eleições municipais, realizado no dia 6 de outubro, não redesenhou o sistema partidário, mas aponta desafios fundamentais para a direita, o centro e a esquerda. A direita – PL, PP, União Brasil e Republicanos – saiu-se muito bem. Porém, o centro – PSD, MDB e PSDB – continua a ser possante na política local. A esquerda – PT, PSB, PDT, REDE, PCdoB e PSOL – conseguiu evitar uma grande derrota prognosticada por muitos. Nas palavras de Leonardo Avritzer, “A direita cresceu, mas está longe de posicionar-se como a principal força política do País, força essa que continua centrada no PSD e no PMDB. A esquerda recuperou-se parcialmente e volta a ter competitividade em um conjunto de cidades em que há oito anos parecia não ter mais capacidade de vencer, além de transformar sua influência na Região Nordeste em resultados eleitorais”.[1]

Para além da distribuição de votos e cadeiras, o pleito de 2024 sinaliza a divisão da direita, mudança na liderança do centro e a desvitalização do PT.

A divisão da direita decorre da ascensão de Pablo Marçal. Apesar de não ter chegado ao segundo turno na disputa pela prefeitura de São Paulo, o ex-coach foi a grande sensação nacional das eleições municipais. Dono de um estilo agressivo, defensor ardente da teologia da prosperidade e do empreendedorismo digital como soluções para os problemas econômicos e sociais, admirador do autocrata salvadorenho Nayib Bukele e inimigo ferrenho do que chama de comunismo, Marçal encarna o bolsonarismo raiz. A ponto de já estar rivalizando com o próprio bolsonarismo pela candidatura da extrema-direita ao Palácio do Planalto em 2026. Pesquisa Genial/Quaest mostra que, se a contenda presidencial fosse entre Lula, Tarcísio Freitas (o governador de São Paulo) e Marçal, o primeiro ficaria com 32% das intenções de voto, o segundo com 15% e Marçal com 18%[2].

Como Marçal enfrenta processos na Justiça Eleitoral, corre o risco de ser declarado inelegível. De qualquer modo, a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, como era de se esperar, tornou-se agora um problema evidente para a direita, uma vez que há vários candidatos que se propõem a suceder o ex-presidente no comando daquele campo político-ideológico, nomeadamente, os governadores Tarcísio Freitas (SP), Ronaldo Caiado (GO), Romeu Zema (MG) e Carlos Ratinho (PR), além de Marçal. Assim, apesar do seu enorme capital eleitoral, dificilmente Bolsonaro continuará a controlar a direita como tem feito desde 2018.

Quanto ao centro, a grande novidade é o PSD ter tomado a posição de líder desse campo do velho MDB. As eleições de 2024 também confirmaram a decadência do PSDB. Conseguirá o PSD tornar-se o que outrora foi o PSDB, isto é, um partido de centro-direita enfaticamente comprometido com a democracia e dotado de capacidade real de ganhar a Presidência da República? É isso o que deseja seu principal líder, Gilberto Kassab, atual secretário de Governo e Relações Institucionais do Estado de São Paulo. Porém, falta ao PSD um dos principais ativos do PSDB em seu auge (entre 1994 e 2016): uma relação orgânica com a intelectualidade e a academia. Apenas com tal relação pode um partido não apenas desenvolver um sólido projeto nacional, mas também executá-lo, caso chegue ao Palácio do Planalto. Até o momento, não se vê nenhum sinal de o PSD tentar estabelecer laços orgânicos com a intelligentsia e a universidade. A continuar assim, o PSD marcha para ser somente um novo MDB, isto é, um partido excessivamente pragmático e dominado por barões estaduais.

Por último, a desvitalização do PT. O partido obteve apenas 248 prefeituras (4,5% do total de 5.569) no primeiro turno das eleições municipais – apesar de ocupar a Presidência da República pela quinta vez, ter em Lula o maior líder popular da história brasileira e contar com vastos recursos do fundo eleitoral e das emendas impositivas. Ainda que tenha havido um crescimento de 35,5% em relação a 2020, é muito pouco para uma agremiação com tal história e envergadura. Isso significa que o PT está desconectado da sociedade brasileira.

Como afirmou a prefeita petista reeleita de Contagem (MG), Marília Campos, “O PT tem hoje uma predominância do discurso identitário, que faz com que dispute apenas uma bolha. É pouco universal. Diria também que, como não faz um discurso universal, que dispute o cidadão comum com seus problemas no transporte, na saúde, no território onde vive, o partido faz esse voto ser disputado ou pelo centro ou ficar muito refém dos votos conservadores, das igrejas”[3]. Ironicamente, o PT é um partido que nutre uma longa relação orgânica com a intelligentsia e a universidade. Porém, a ossificada burocracia da agremiação, controlada por velhos políticos profissionais, não ouve mais os intelectuais ligados ao partido. Por exemplo, essa burocracia tem como principal crítica ao ministro da Fazenda Fernando Haddad o fato de ele ser um social-democrata. Se ouvisse mais seus intelectuais, a burocracia partidária teria uma visão muito mais positiva de Haddad.

Em suma, as eleições municipais de 2024 desenharam um sistema partidário caracterizado por luta feroz no seio da direita, um centro ainda dominante mas com escassas preocupações programáticas, e uma esquerda liderada por um partido sem sintonia com a atual sociedade brasileira. Para o bem da democracia, ainda há tempo de mudar os dois últimos aspectos antes de chegarmos a outubro de 2026.


Esta é a seção Observatório Político do Boletim Macro FGV IBRE de outubro de 2024.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

[1] Ver Leonardo Avritzer, “Mapa complexo”, Carta Capital, 10/10/2024, disponível em https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/mapa-complexo/.

[2] Ver Rafaela Gama, “Quaest: Marçal surge como opção da direita em 2026, à frente de Tarcísio, e Lula aparece em primeiro lugar”, O Globo, 14/10/2024, disponível em https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/noticia/2024/10/14/quaest-marcal-surge-como-opcao-da-direita-em-2026-a-frente-de-tarcisio-e-lula-aparece-primeiro-lugar.ghtml.

[3] Ver Caio Sartori, “Número de prefeituras da esquerda despenca em 12 anos e desafia partidos”, O Globo, 13/10/2024, disponível em https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/13/numero-de-prefeituras-da-esquerda-despenca-em-12-anos-e-desafia-partidos.ghtml.

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