Cenários
Política e Governo

Enigmas e escolhas no início do governo Lula

14 fev 2023

Há dois cenários possíveis à frente: se novo arcabouço trouxer percepção de solvência, o risco país se reduz, o câmbio se valoriza e os juros futuros caem. No cenário negativo, o ciclo será ao revés, e teremos uma crise fiscal.

O Lula que apareceu após a eleição deixou todos atônitos. Veio um Lula “dilmado”, indicando que “gasto é vida”. A partir da construção de um discurso de herança maldita, criou-se um consenso entre os formadores de opinião de que Lula deveria ter uma folga de R$ 200 bilhões sobre o Projeto de Lei Orçamentária, enviado por Paulo Guedes para o Congresso Nacional em agosto de 2022 para vigorar em 2023. No processo de discussão que acompanhou a tramitação da PEC da Transição, ficou claro que R$ 70 bilhões seriam suficientes para atender as principais demandas da campanha eleitoral e de reconstrução das áreas mais relevantes do Estado brasileiro subfinanciadas ao longo do quadriênio de Bolsonaro.[1]

O estranhamento foi Lula ter rasgado o livro texto de boas práticas políticas, e gastar capital político para elevar o gasto e não para medidas de ajuste macroeconômico. O capital político foi gasto no início do mandato para elevar o buraco fiscal, e, portanto, aumentar o problema para o seu próprio governo.

Me parece que três motivos sustentam a maior liberalidade orçamentária do presidente. Primeiro, diversos economistas com credenciais muito respeitadas – como, por exemplo, André Lara Resende e Mônica de Bolle – têm criticado pesadamente o teto do gasto e defendido maior liberalidade com o gasto público. Segundo, a interpretação de Lula das consequências da maior liberalidade fiscal ao longo do período da pandemia. Para Lula, e ele já expressou esta opinião mais de uma vez, gastou-se muito em 2020 e 2021 e não foram gerados os efeitos colaterais danosos que os economistas mais ortodoxos ou fiscalistas sempre apontam. Independentemente do acerto da interpretação do presidente – certamente a coluna discorda profundamente do entendimento –, foi essa a percepção de Lula dos gastos com a epidemia: há muito mais flexibilidade com o gasto público do que os ortodoxos supõem. (A discordância da coluna deve-se à maior liberalidade fiscal ter sido possível sem causar danos mais profundos em função da excepcionalidade da epidemia e de seu caráter não recorrente.)

O terceiro motivo, sempre lembrado pelo jornalista Thomas Traumann, está associado à análise de Lula a respeito da necessidade de não ser visto como praticante de estelionato eleitoral, o que o levaria a ter que lidar com as mesmas dificuldades de Dilma, agravadas agora pela consolidação de uma forte polarização em nossa sociedade. Ou seja, haveria, no início do governo, uma dominância da política sobre a macroeconomia no desenho da política econômica. Em um segundo momento, já com a sociedade menos polarizada, haveria espaço político para a arrumação macroeconômica.

Também, apesar de política não ser a especialidade da coluna, tenho dificuldade de entender o temor de Lula. As circunstâncias que desembocaram no impedimento de Dilma foram muito distintas das circunstâncias atuais. Não há, penso eu, risco de a popularidade do presidente cair para um dígito. De qualquer forma Lula avalia diferentemente e ele que é o practitioner.

Adicionalmente, parece haver na estratégia de Lula o objetivo de usar uma linguagem claramente populista. Segundo livro recentemente publicado pela dupla Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago, três traços caracterizam o discurso populista na política:

“Para nós, esses traços são três (...): (1) o populismo se baseia na oposição discursiva entre o “povo” e a “elite”, (2) o populismo é transgressivo e (3) o populismo transforma instituições”.[2]

Barros e Lago argumentam que há o populismo autoritário, como, por exemplo, o nazismo, em que a “elite” eram os judeus, mas há também versões democráticas do populismo. O populismo não necessariamente representa uma cultura política autoritária. E, adicionalmente, o populismo pode ser uma prática política de enfrentar e encaminhar, em democracias emergentes e muito desiguais e injustas, uma agenda de inclusão e de extensão de direitos de forma pacífica e funcional. Esse me parece ser o entendimento dos autores da experiência do petismo no governo brasileiro de 2003 até 2016.

Assim, essa seria a interpretação da insistência de Lula em criticar os banqueiros, os juros e a independência do Banco Central, chegando até ao extremo de atacar os empresários em geral. Seria uma estratégia discursiva populista, nos termos estabelecidos por Barros e Lago.

Em que pese essa possível racionalização do discurso de Lula, que tem sido bem mais agressivo do que se poderia imaginar, há dificuldades adicionais em explicar as escolhas de linguagem e de fala do presidente. Por um lado, parece que não houve nenhum aprendizado. Lula requenta todo um conjunto de políticas públicas que não deu certo. Ao menos no discurso. Em que medida irá empregá-las ou não ainda não sabemos. Assim, volta ao cardápio o papel dos bancos públicos e o empréstimo a obras de infraestrutura de empresas brasileiras realizadas no exterior. Se desenha um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), bem como uma nova rodada de grandes investimentos no programa Minha Casa Minha Vida (MCMV). Todas essas iniciativas sem que haja qualquer avaliação sobre elas terem ou não sido bem-sucedidas quando praticadas no último ciclo petista.

Além disso, Lula tem cultivado a polarização. Assim, escolheu manter o discurso de que o impedimento da Dilma foi um golpe. Difícil entender essa escolha. Boa parte de seu ministério é composto por “golpistas”. A impressão é de que, de alguma forma que me escapa totalmente, Lula enxerga algum ganho na manutenção da polarização com Bolsonaro. Talvez esse discurso, que vem junto da estratégia de apoiar ditaduras de esquerda da América Latina, seja a forma de manter a direita unida em torno de Bolsonaro e dificultar a construção de uma alternativa de centro independente do petismo. Estratégia não muito diferente da de Bolsonaro com sinal contrário. Aguardemos.

Como o leitor percebeu, não tem sido fácil o trabalho dos analistas políticos que tentam destrinchar as escolhas discursivas do presidente no início de seu terceiro mandato.

Na formulação da política econômica, o roteiro está relativamente mais claro. Após a elevação do gasto em 2% do PIB em relação ao PLOA que Paulo Guedes enviara, o que sinaliza um déficit primário de 2,1% do PIB, houve um pacote do Ministro Haddad com diversas medidas, a maior parte delas não recorrente, que deve reduzir o déficit de 2023 para algo em torno de 1% do PIB.

A política fiscal tem dois efeitos diretos sobre o equilíbrio macroeconômico. O primeiro é sobre o equilíbrio no mercado de bens e serviços: a política fiscal eleva ou contrai a demanda. Partindo de um superávit primário do governo central de 0,5% do PIB em 2022 para um déficit de 1% em 2023, há grandes chances de a política fiscal ser expansionista e, consequentemente, dificultar o trabalho do BC de reduzir a inflação.

Aqui talvez esteja a chave para entendermos a agressividade de Lula em relação à independência do BC e aos elevados juros. A fala de Lula iniciou um debate sobre a meta de inflação. Diversos economistas têm se pronunciado sobre o tema. Há uma visão de que ,se a meta para 2024 for elevada para, por exemplo, 4%, haveria espaço para que os juros reais praticados nos próximos anos fossem um pouco mais baixos. Independentemente do acerto ou não dessa avaliação – há argumentos técnicos de que a medida é contraproducente e pode, inclusive, elevar os juros reais no curto prazo –, me parece que ela será tomada. Em algum momento do primeiro semestre, o Conselho Monetário Nacional (CMN) irá elevar a meta inflacionária para 2024. Não é possível termos certeza dessa decisão, mas considero substancial a possibilidade de elevação da meta já para 2024.

O próximo tópico da agenda econômica para o primeiro semestre de 2023 é a reforma dos impostos indiretos. Essa é a reforma que tem o maior poder de elevar, no horizonte de duas décadas, a taxa de crescimento do produto potencial. O objetivo é a simplificação, reduzindo o custo de conformidade das empresas, o elevado grau de litigiosidade ensejada pela complexidade e estimulando melhor alocação do investimento e da produção. Penso que a reforma será aprovada e gerará instantaneamente uma percepção de melhora da economia, com alguma queda de prêmio de risco. No entanto, não considero que a reforma terá capacidade de elevar a arrecadação no curto prazo. Ela até poderá elevar a arrecadação em um horizonte de longo prazo, de forma indireta, ao aumentar a taxa de crescimento do produto potencial. Mas sabemos que esses efeitos são muito defasados no tempo.

A agenda para o segundo semestre será a votação da nova regra fiscal. Creio que será aprovado um novo teto do gasto mais elevado, compatível com o novo nível de gasto dado pela PEC da Transição, e indexado à inflação, como é hoje, mas somando-se uma parcela do crescimento da economia, calculado em janela de alguns anos. Pode haver regras de controle de gastos automáticos para quando o teto for superado, e alguma regra de escape para situações de forte queda da economia e de carência clara de demanda agregada. Adicionalmente, pode haver um piso para o investimento público, para garantir que a elevação do gasto permanente não comprima em demasia o gasto discricionário. O desenho do novo arcabouço não sabemos, mas não deve ser algo muito distante do que alinhavei neste parágrafo.

Esse será o momento da verdade para o primeiro ano do governo Lula. Mesmo antes da proposta ser aprovada, as pessoas começarão a fazer contas. E aí chegamos no segundo impacto direto da política fiscal sobre o equilíbrio macroeconômico: as instituições fiscais, em combinação com a reputação da autoridade fiscal, na qual o apoio do Executivo no presidencialismo brasileiro é o elemento mais importante, serão suficientes para convencer as pessoas de que a trajetória da dívida pública em um horizonte de alguns anos estará equilibrada? Haverá a percepção de solvência?

Há, evidentemente, dois cenários. Se houver a percepção de solvência, o risco país se reduz, o câmbio se valoriza e os juros futuros caem. Entramos em um círculo virtuoso em que a desinflação, produzida pela valorização do câmbio, estimula a queda da taxa Selic, o que reforça a percepção da solvência. No cenário negativo, o ciclo será ao revés.

No cenário negativo, teremos uma crise fiscal. Será menor do que a de 2015, pois os fundamentos da economia são muito melhores agora do que eram naquele ano, mas haverá estresse no mercado. A resposta de Lula será bater na porta do Congresso Nacional e pedir elevação da carga tributária. E adicionalmente, pedir que esse ganho de carga tributária venha na forma de receita adicional não compartilhada com Estados e municípios. Ou seja, conjuntamente com a elevação da carga tributária, será necessária uma nova rodada de desvinculação de receita da União. O Congresso terá que aprovar uma nova receita não compartilhada e o STF terá que aceitar a sua constitucionalidade. A ver.

Se o Executivo conseguir resolver a restrição fiscal por meio de elevação da carga tributária, voltaremos ao cenário positivo. Se não conseguir, teremos um impasse. A restrição fiscal não será resolvida e, provavelmente, Lula terá que escolher um presidente do BC subserviente que aceite o cenário de dominância fiscal e não brigue com os fatos. A segunda metade do mandato será de continua elevação da inflação.

A coluna prevê que, se houver esse processo de dominância fiscal com BC subserviente, a reinflação da economia brasileira será lenta. Chegaremos em 2026 com IPCA rodando na casa de 6-7%. Ficará para o próximo presidente a função de desinflacionar.

Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de fevereiro de 2023.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Este tema foi tratado na Ponto de Vista de dezembro de 2022.

[2] Do que falamos quando falamos de Populismo, de Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago, Companhia das Letras, página 87, 2022.

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