Cenários

Estiagem de 2012-21, produtividade agropecuária e transbordamentos na economia

15 mar 2024

Estiagem crônica no Brasil desde 2012 explica boa parte da desaceleração da PTF agropecuária entre 1994-2011 (+4,2% a.a.) e 2012-21 (+1,5% a.a.). O impacto negativo sobre o PIB total brasileiro foi de 0,8 p.p. ao ano em 2012-21.

Em um post publicado em janeiro, eu revisitei um tema que tenho explorado em textos e trabalhos/estudos desde o final de 2021: o impacto das oscilações de precipitações sobre a economia brasileira.

Tenho apontado, com base em meus estudos e em trabalhos internacionais recentes, que parte relevante de nossa década perdida recente pode ser explicada por um choque de oferta desfavorável e persistente exógeno, decorrente de estiagem crônica que temos enfrentado desde 2012. Os impactos desse choque acabaram sendo amplificados pela elevada dependência de nossa economia com relação a esse serviço ecossistêmico (chuvas)[1], o qual, vale notar, é ignorado em boa parte das decomposições tradicionais de condicionantes do crescimento econômico sob a ótima do modelo neoclássico (ver figura abaixo, obtida aqui).

No post de janeiro, apontei que há uma clara associação entre os movimentos da Produtividade Total dos Fatores (PTF) brasileira medida da forma tradicional e as anomalias de precipitações (isto é, os desvios das chuvas em relação à média de longo prazo). Mais chuvas, que são exógenas à política econômica corrente, estão associadas a mais PTF, refletindo impactos favoráveis da maior disponibilidade desse serviço ecossistêmico sobre o agronegócio (que representa mais de 20% do PIB brasileiro, segundo o Cepea/ESALQ) e sobre a geração de eletricidade (70% de nossa capacidade instalada foi hidrelétrica na década passada; atualmente já está se aproximando dos 50%), com transbordamentos para outros setores.

Alguns colegas meus do IBRE, Samuel Pessoa e Fernando Veloso, receberam os resultados desses meus estudos com certo ceticismo, sobretudo pelas magnitudes dos impactos estimados por mim (cerca de 1,6 a 1,7 ponto percentual, pp, a menos de PIB/PTF ao ano, em 2012-23). Eles sugeriram que eu realizasse uma análise mais desagregada. É o que vou apresentar neste post. Antes disso, contudo, acho importante citar novamente um trabalho que foi publicado na revista Nature no começo de 2022.

Kotz, Levermann & Wenz 2022, utilizando dados de 77 países subdivididos em 1554 sub-regiões ao longo de 40 anos, avaliaram os impactos econômicos das chuvas nas seguintes dimensões: i) nível absoluto das chuvas anuais; ii) anomalias (desvios em relação à norma histórica), diferenciando-as entre negativas e positivas; iii) quantidade de chuvas extremas; e iv) número de dias “molhados”. Os autores também realizaram essa análise por grande setor econômico. A figura abaixo resume boa parte dos principais resultados encontrados por eles.

Em particular, eles identificaram que anomalias negativas (como foi o caso brasileiro na última década) têm forte impacto, também negativo, sobre a taxa de variação da atividade econômica. Segundo o trabalho deles, precipitações 1 desvio-padrão abaixo da média reduzem a taxa de variação do PIB em cerca de 2 pp (considerando a amostra total). Esse efeito parece ser maior em países em desenvolvimento do que nas nações avançadas.

Ademais, os autores apontam que o impacto negativo das secas (anomalia negativa de chuvas) sobre a taxa de variação do PIB, embora seja maior no setor agropecuário, também ocorre na indústria e nos serviços (ver painel à direita na figura acima, em particular a linha “monthly negative”), denotando alguns efeitos de equilíbrio geral contemplando não somente impactos diretos (sobre agropecuária e geração de energia) como também indiretos.

Bem, voltando ao caso brasileiro, a figura abaixo apresenta a evolução da PTF do setor agropecuário, aquele no qual os efeitos negativos de uma estiagem crônica seriam mais óbvios (ainda mais se levando em conta o baixo percentual de lavouras irrigadas no Brasil, apenas cerca de 5% da área plantada).

Como pode ser notado, depois de crescer 4,2% a.a. entre 1994 e 2011, a PTF no setor agropecuário brasileiro registrou forte desaceleração em 2012-21, para alta de apenas 1,5% a.a. (abaixo até mesmo dos 2% a.a. observados na década perdida brasileira dos anos 80).

Coincidentemente – ou não –, a estiagem crônica enfrentada pelo Brasil teve início exatamente a partir de 2012, como aponta a figura abaixo.

Eu estimei uma regressão em que a variável explicada é a variação da PTF agropecuária e as variáveis explicativas são uma constante, defasagens da própria PTF e valores correntes e defasados das anomalias de precipitações em território nacional. Esse exercício aponta que, de fato, as precipitações são estatisticamente significantes (e com sinal positivo) e que todas essas variáveis explicativas responderam, em conjunto, por cerca de 54% da variabilidade da PTF agropecuária brasileira em 1982-2021.

Com base nessa regressão, realizei uma decomposição da variação da PTF agropecuária entre a parcela explicada pela anomalia de chuvas e aquela explicada pelo restante dos fatores (resíduo), conforme apontado na figura abaixo.

Como pode ser notado, de fato a estiagem crônica gerou impacto bastante severo e negativo sobre a PTF agropecuária brasileira de 2012 em diante. Esse exercício aponta que, caso as chuvas tivessem se mantido em torno da média histórica em 2012-21, a PTF agropecuária brasileira teria avançado cerca de 4,1% a.a. nesse período, praticamente o mesmo ritmo observado em 1994-2011. Ou seja, a seca persistente e severa subtraiu cerca de 2,6 p.p. ao ano da variação da PTF agropecuária brasileira em 2012-21.

Sem sombra de dúvida, é um impacto muito relevante para o setor agropecuário. Entretanto, isso teria alguma relevância para a economia brasileira como um todo? À primeira vista, a resposta a esse questionamento seria um “não”, já que a agropecuária respondeu, em média, por apenas 5,7% do Valor Adicionado a Preços Básicos total da economia brasileira nesse período. Assim, uma redução de 2,6 pp ao ano da variação da PTF Agro teria um impacto de reduzir em apenas 0,15 pp ao ano a PTF total brasileira – valendo lembrar que a PTF total brasileira passou de uma alta de 1,2% a.a. em 1994-2011 para uma variação de -0,4% a.a. em 2012-21.[2]

Não obstante, os números apontados no parágrafo anterior ignoram os efeitos de transbordamento da agropecuária, não somente para segmentos a jusante e a montante diretamente ligados à agricultura e pecuária (fertilizantes, agroindústria, maquinário agrícola, transportes etc.), como também os efeitos indiretos associados ao dispêndio da renda gerada pelo setor (que impacta o consumo das famílias e mesmo o investimento em outros tipos de ativos fixos, como construção residencial).

Qual seria a magnitude desse efeito multiplicador do setor agropecuário?

Um trabalho publicado em 2013 na Revista Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos, de autoria de Haddad, Porsse & Pereda, estimou o impacto econômico sistêmico de anomalias climáticas sobre a economia brasileira usando um modelo CGE (Equilíbrio Geral Computável) inter-regional, a partir das anomalias climáticas efetivamente observadas em 2005 (a definição de anomalia utilizada por eles é exatamente a mesma que tenho usado em meus trabalhos, desvios das chuva em relação à médias de longo prazo). Com efeito, ao utilizar essa abordagem quantitativa/metodológica, “o impacto sistêmico é mensurado levando-se em conta tanto as ligações indiretas do setor agrícola com outros setores no sistema econômico como também a interdependência regional entre os estados brasileiros associados decorrente dos fluxos comerciais”.

Ainda segundo os autores, “os resultados mostram que os custos econômicos das anomalias climáticas são significativamente subestimados se apenas os efeitos de equilíbrio parcial são contabilizados. Estimamos que cada perda de R$ 1,00 na produção agrícola, causada pelas anomalias climáticas de 2005, implicaram em perdas adicionais de R$ 3,25 na economia como um todo. Observamos também que as ligações intersetoriais e inter-regionais, bem como os efeitos dos preços, são canais importantes para propagar os efeitos econômicos de anomalias climáticas localizadas em determinada região sobre o restante do Brasil”.[3]

Ou seja: os multiplicadores de choques de oferta no setor agropecuário são bastante elevados no caso brasileiro. Com base nesse multiplicador e nas minhas estimativas de impacto da anomalia de precipitações sobre a PTF agropecuária, construí um cenário contrafactual para o PIB total brasileiro de 2012 a 2021 sob a hipótese de que as chuvas teriam se comportado em linha com a média histórica nesse período (ou seja, nesse cenário contrafactual a PTF agropecuária teria crescido 4,1% a.a. e não 1,5% a.a.). A primeira figura abaixo compara a variação do PIB total brasileiro efetivamente observada com aquela estimada nesse exercício contrafactual, ao passo que a segunda figura apresenta a diferença acumulada do PIB total brasileiro na comparação dessas duas trajetórias.


Na média 2012-21, o crescimento do PIB efetivamente observado (em termos de Valor Adicionado a Preços Básicos, VAPB) foi de +0,4% a.a., ao passo que o contrafactual sugere uma variação de +1,2% a.a. – ou seja, uma diferença de +0,8 pp ao ano. Boa parte disso se refletiria numa PTF agregada da economia brasileira mais elevada (ela variou -0,4% a.a. em 2012-21, segundo os dados do Observatório Regis Bonelli). No acumulado de 2012 a 2021, isso representou 7,2% a menos de PIB no nível ao final do período – ou R$ 737 bilhões a preços de 2023 (pelo deflator do PIB).

Essa magnitude de impacto negativo, de 0,8 pp ao ano, é bastante relevante, mas ainda assim é aproximadamente metade do impacto de -1,6 pp a -1,7 pp decorrente da estiagem sobre a variação do PIB total que apontei em posts anteriores. Como conciliar esses números? Bem, é importante lembrar que a diferença de 0,8 pp apontada no exercício acima decorre apenas dos efeitos diretos e indiretos do déficit de chuvas sobre o PIB VAPB agropecuário. Há pelo menos um outro setor que sofre efeitos diretos dessa estiagem, os quais podem se propagar sobre o restante da economia: a geração de eletricidade, que responde por aproximadamente 80% do PIB VAPB de Serviços Industriais de Utilidade Pública (SIUP).

Um bom exemplo de impacto do déficit de chuvas sobre o VAPB de SIUP vem do ano de 2021, quando tivemos a pior leitura de precipitação anual em muitas décadas (chuvas 4 desvios-padrão abaixo da média 1990-2014!) e escapamos por pouco de um racionamento compulsório de energia elétrica. Naquele ano, embora o PIB total (VAPB) tenha crescido 4,5% e o consumo de eletricidade tenha subido 5,5% (dados da EPE), o VAPB de SIUP variou apenas +1,5%. Na medida em que o VAPB mede o Valor Adicionado (valor da produção menos o valor do consumo intermediário de insumos), o maior uso de termelétricas em 2021, com custo de geração significativamente maior do que hidrelétricas e eólicas/fotovoltaicas, gerou um crescimento baixo do VAPB de SIUP, mesmo com o consumo físico de eletricidade tendo crescido expressivos 5,5%. A título de curiosidade: em 2023, o consumo de eletricidade cresceu 4,1% e o VAPB de SIUP, 6,5%, justamente pelo maior uso de hidrelétricas no ano passado.

O VAPB de SIUP tem peso pequeno no VAPB total, cerca de 3%. Com efeito, uma diferença de 4 ou 5 pp na taxa de variação em volume de SIUP teria impacto direto de apenas 0,12 a 0,15 pp sobre o PIB VAPB total. Contudo, os efeitos indiretos nesse caso também existem, embora sejam mais difíceis de serem mensurados: parte deles está associada ao encarecimento da eletricidade (houve forte aumento do preço relativo desse produto em 2012-21, embora nem todo ele decorrente do déficit hídrico), e outra parte aos efeitos expectacionais associados ao risco de racionamento de eletricidade, com impactos sobre decisões de consumo, investimento e contratação de mão de obra. Vou explorar isso em mais detalhe em um próximo post.

Por fim, alguém poderia suscitar o seguinte questionamento: a análise apresentada neste post não é contraditória com aquela outra análise trazida à tona na Carta do IBRE de julho de 2023, a qual apontava que o forte aumento da renda real gerada pelos setores produtores de commodities (agropecuária e indústria extrativa mineral) explicaria boa parte das surpresas favoráveis do PIB brasileiro entre 2020 e 2023?

Não, não é. Em primeiro lugar, porque o exercício apresentado neste post avalia os impactos de déficit de chuvas em todo o período 2012-21, ao passo que o forte aumento da renda real gerada pela Agropecuária (bem como pela Extrativa Mineral) é um fenômeno observado somente a partir de meados de 2020, como aponta a figura abaixo.

Ademais, boa parte dessa bonança recente da renda real decorreu de forte alta dos preços relativos do setor: em 2020-22, o PIB agropecuário em volume cresceu apenas 1,1% a.a., abaixo da variação de +1,5% a.a. do PIB total. Somente em 2023 a forte alta do volume do PIB agropecuário (+15,1%), mais do que compensando a queda dos preços relativos, desempenhou papel importante para sustentar a renda real gerada pelo setor. De qualquer forma, tivessem as chuvas sido próximas da média histórica em 2020-23, a alta da renda real gerada pelo setor agropecuário nesse período possivelmente teria sido ainda maior do que aquela apontada na figura acima.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

[1] Outros exemplos de serviços ecossistêmicos, que geram impactos econômicos mas são ignorados nas análises econômicas tradicionais são polinização (com valor estimado para o mundo como um todo entre US$ 195 e 387 bilhões); sombra/redução de temperatura gerada pelas árvores em áreas urbanas; proteção de áreas costeiras de inundações propiciadas por mangues, dentre vários outros.

[2] De acordo com estimativas publicadas no Observatório da Produtividade Regis Bonelli do FGV IBRE. Esses números correspondem à medida de PTF que leva em conta apenas a dimensão quantitativa do fator trabalho (ou seja, apenas horas trabalhadas), sem levar em conta aspectos de qualidade da mão de obra associados à escolaridade e experiência.

[3] Convém notar que, em 2005, a participação da Agropecuária no VAPB total brasileiro foi de 5,5%, percentual semelhante aos 5,7% observados na média 2012-2021.

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.