Cenários

O impacto (menosprezado) das anomalias de chuvas sobre a produtividade brasileira

16 jan 2024

Oscilação de chuvas afeta economia nacional, com efeito negativo da estiagem crônica entre 2012 e agora, após impulso de chuvas acima da média em 2004-11. Aceleração da adaptação pode reduzir vulnerabilidade às chuvas à frente.

Já apresentei neste blog alguns estudos meus apontando que parte relevante do desempenho macroeconômico brasileiro nas últimas décadas pode ser explicado pelas oscilações das precipitações (chuvas) em território nacional (ver aqui e aqui), dada a elevada dependência de nossa economia do insumo “água”. Um bom resumo dessa discussão foi publicado em um artigo meu no Valor no começo de 2022 (aqui).

A despeito disso, esse tema segue sendo menosprezado no debate doméstico, seja por economistas mais ortodoxos ou por aqueles mais heterodoxos. Enquanto isso, lá fora, esse tema merece cada vez mais atenção, inclusive no âmbito da discussão sobre as mudanças climáticas globais e de seus impactos sobre a economia e o bem-estar dos países.

Nesse contexto, o Banco Mundial publicou um relatório bastante abrangente em setembro de 2023, intitulado “Droughts and deficits: Summary Evidence of the Global Impact on Economic Growth”. A figura que melhor resume os achados empíricos dos autores que prepararam o relatório é aquela apresentada abaixo:

Usando dados de 82 países subdivididos em 60.958 regiões subnacionais ao longo de 25 anos (1990 a 2014), os autores identificaram uma relação clara entre “choques” (ou anomalias) de precipitações - que são exógenas à economia e à política econômica corrente - e a taxa de crescimento do PIB per capita. Esse impacto é particularmente mais forte nos países em desenvolvimento e emergentes.

Vale notar que “choques/anomalias” correspondem, na prática, aos desvios das chuvas em relação àquilo que seria o “usual” para cada região/país (média histórica no período analisado). O impacto dessas anomalias das precipitações sobre o desempenho do PIB é cumulativo, como aponta a figura acima. Por exemplo: um ano muito seco que tenha sido precedido por anos com muitas chuvas terá um impacto negativo menor sobre o PIB do que uma sequência de anos secos (levando em conta que a água proveniente das chuvas pode ser armazenada no solo, em reservatórios e nos lençóis freáticos).

Transpondo essa discussão para o caso brasileiro, a figura abaixo apresenta a evolução, desde 1980, da anomalia de precipitações ano a ano, calculada exatamente da mesma forma utilizada no estudo citado acima (padronização tomando como referência a média e o desvio-padrão em 1990-2014).

Como pode ser notado - e eu tenho enfatizado isso desde o final de 2021 -, o Brasil está passando por uma estiagem crônica e severa desde 2012. Não à toa, dada nossa elevada dependência de hidroeletricidade (cerca de 70% da capacidade de geração na média da década passada), quase tivemos que adotar racionamentos compulsórios de energia elétrica em 2014, 2017 e 2021 (tal como foi necessário em 2001/02) – e o fato de termos escapado disso não significa que foi algo isento de custos. Ademais, o déficit de chuvas também afeta a produtividade do agronegócio, que respondeu por cerca de 21% do PIB brasileiro na média da última década, segundo estimativas do CEPEA/Esalq (valendo lembrar que o percentual de lavouras irrigadas no Brasil, embora tenha se elevado nos últimos anos, ainda é baixo na comparação com outros países).

A figura a seguir apresenta os impactos estimados sobre a variação anual do PIB per capita brasileiro a partir da combinação de duas informações: i) as semi-elasticidades não lineares apresentadas na primeira figura deste post; e ii) as anomalias de precipitação ilustradas na figura acima (mais especificamente, o acumulado dessas anomalias em períodos móveis de 3 anos).

Segundo esse exercício, na média de 2012 a 2023 o déficit crônico de chuvas teria gerado um impacto negativo de 1,7 p.p., ao ano, sobre a taxa de variação do PIB brasileiro. Trata-se de um valor praticamente igual ao -1,6 p.p. que estimei no final de 2021 para o período 2012-21, usando uma abordagem quantitativa totalmente diferente (estimação de um modelo VARX para a economia brasileira).

Alguém poderia estranhar esses resultados, apontando que o PIB brasileiro cresceu razoavelmente bem em 2022-23, cerca de 3% a.a., a despeito das chuvas continuarem muito abaixo da média histórica (ainda que tenham melhorado bastante na margem ante o quadro dramático observado em 2021).

Vale assinalar, em primeiro lugar, que esse crescimento relativamente alto do PIB foi possível porque estávamos consumindo excesso de ociosidade da economia até meados do ano passado (convivemos com um quadro de hiato do produto negativo entre meados de 2015 e meados de 2023, segundo diversas estimativas).

Também é importante notar que houve um certo descolamento entre PIB e precipitações no último biênio, já que o processo de adaptação da economia brasileira a uma menor disponibilidade de chuvas se acelerou consideravelmente, sobretudo no setor de energia, como aponta a figura abaixo – a qual aponta que, somente de 2019/20 para cá, a participação de eólicas e fotovoltaicas na geração efetiva de energia (e não na capacidade instalada de geração) quase dobrou[1].

De qualquer modo, o que o exercício descrito acima revela é que o PIB brasileiro poderia ter avançado ainda mais rápido, sem gerar pressões inflacionárias, caso a anomalia acumulada de precipitações tivesse se aproximado de zero, pois isso corresponderia a uma reversão de um choque de oferta desfavorável (ou a um choque de oferta favorável na margem), que elevaria a capacidade produtiva do país.

Dito de outra maneira: caso as precipitações tivessem sido “normais” na década passada, o PIB potencial brasileiro teria sido maior do que aquele estimado para o período 2012-23, que foi de apenas +1,0% a.a. segundo minhas estimativas (vs +3,1% a.a. em 1996-2011). E isso seria possível basicamente porque a Produtividade Total dos Fatores (PTF) teria sido maior. A estiagem crônica desde 2012 correspondeu, portanto, a um choque de oferta desfavorável, bastante expressivo e persistente. Esses tipos de choque, por definição, estão associados a menos atividade econômica e a mais inflação.

Antes de explorar mais essa relação entre anomalias de precipitações e PTF para o caso brasileiro, vale a pena lembrar alguns aspectos conceituais e práticos envolvendo a mensuração da produtividade agregada de uma economia.

Não à toa, a PTF é denominada de “medida de nossa ignorância” (expressão cunhada por Moses Abramovitz há mais de seis décadas), sendo estimada por resíduo (“resíduo de Solow”). O crescimento em volume do PIB efetivo (em termos de Valor Adicionado a Preços Básicos) é decomposto na evolução efetivamente observada do estoque de capital físico (às vezes ajustado por alguma medida de grau de utilização) e na evolução do número de horas trabalhadas (jornada média multiplicada pelo número de pessoas ocupadas). Em alguns casos o fator trabalho também é ajustado pela sua qualidade (“capital humano”). A variação do PIB observado que não é explicada pelas variações ponderadas desses dois fatores de produção corresponde à PTF.

Com efeito, quaisquer outros “insumos” que sejam importantes para os processos produtivos da economia como um todo (energia, terras aráveis, qualidade/idade do capital físico, capital natural/serviços ecossistêmicos, arcabouço institucional, capital organizacional etc.) acabam sintetizados nessa “geleia macroeconômica” que é a PTF observada, estimada da forma descrita no parágrafo anterior.

Voltando ao caso brasileiro, a equipe do FGV IBRE tem divulgado regularmente, no Observatório da Produtividade Regis Bonelli, estimativas da PTF brasileira. A figura abaixo apresenta esse indicador, em duas versões: uma na qual apenas é levado em conta o fator trabalho em termos “físicos” (horas trabalhadas) e outro no qual é levada em conta uma estimativa de estoque de capital humano da população ocupada, também calculada pela equipe do Observatório. A primeira tem sua série histórica iniciada em 1981, ao passo que a segunda tem a primeira leitura somente em 1995.

Como pode ser notado, quando a PTF é obtida sem levar em conta aspectos qualitativos do fator trabalho (linha azul), constata-se que tivemos uma estagnação da produtividade sistêmica entre o começo da década de 1980 e o começo da década de 1990, migrando depois para uma fase de crescimento até 2010. Desde então, observa-se uma tendência de recuo da PTF. Já no indicador ajustado pelo capital humano (linha laranja), houve uma tendência de queda entre 1995 e começo da década de 2000, alguma elevação entre 2004/5 e 2011/12 e, desde então, observa-se uma nova tendência de queda, mais acentuada.

Quanto da evolução apresentada acima poderia decorrer da dinâmica de um insumo não considerado explicitamente na função de produção utilizada para se mensurar a PTF brasileira, mais especificamente, da anomalia de precipitações? Um primeiro passo para tentar responder a esse questionamento envolve avaliar se há algum comovimento entre a PTF e as anomalias. As duas figuras abaixo apresentam a variação, acumulada em períodos móveis de 3 anos, da PTF brasileira e da anomalia de precipitações em território nacional.

Em ambos os casos, as correlações são bastante elevadas, entre +70% e +80%. Isso sugere existir uma relação positiva e razoavelmente forte entre essas variáveis, com a ordem de causalidade possivelmente saindo das precipitações (exógenas) para a PTF (e não o contrário).

Admitindo a exogeneidade das chuvas (premissa que não parece ser muito heroica), estimei uma regressão das variações anuais da PTF apenas com fator trabalho físico (já que sua série histórica é mais longa, iniciada em 1981) em função de valores correntes e defasados das anomalias anuais de precipitação, uma constante e uma dummy para o ano de 2020.

Esse exercício aponta que, de fato, as anomalias de chuvas são estatisticamente significantes na regressão, com mais chuvas associadas a mais PTF (e vice-versa). O resíduo dessa regressão, que vou chamar de PTF* (ou PTF ajustada), pode ser interpretado como a parcela da PTF que é explicada por aqueles outros fatores já elencados (associados à qualidade do capital físico e humano, arranjo institucional, dentre outros).

A figura abaixo compara a variação média anual da PTF original do IBRE com a PTF* em alguns subperíodos.

A figura revela vários fatos importantes.

Em primeiro lugar, nota-se que, em 2012-23, o impacto da estiagem crônica (“azar”) sobre a PTF brasileira foi de -1,7 p.p. ao ano, em média – valor muito próximo das estimativas de impacto sobre o PIB total apresentada no começo deste post.

Também é digno de nota o fato de que chuvas acima da média histórica em 2004-11 deram um gás adicional (“sorte”) para a PTF e o PIB naquele período (choque de oferta favorável e persistente). No período 1994-2003 o impacto médio das precipitações foi nulo (muito embora, em 2001, tenhamos sido obrigados a racionar eletricidade – algo que aconteceu, dentre outras coisas, porque éramos ainda mais vulneráveis à “São Pedro” naquele momento, com quase 90% da capacidade de geração de eletricidade oriunda de hidrelétricas). Já na década de 1980 e começo dos anos 90, as chuvas corresponderam a um choque de oferta desfavorável moderado.

A figura acima também joga alguma luz sobre um dos grandes conundrums da economia brasileira, que mereceu uma coluna recente de meu colega de IBRE, Fernando Veloso, neste blog (aqui). Muito se debate sobre uma certa decepção com os efeitos da agenda de reformas macro e microeconômicas implementada no Brasil desde o começo dos anos 1990, em algumas ondas. Fernando argumenta, com base em diversos estudos, que muitas dessas reformas de fato geraram impacto positivo sobre a produtividade e o crescimento; não obstante, também aconteceram contrarreformas que teriam mitigado os efeitos das boas reformas.

Esse meu exercício, em particular a evolução das colunas vermelhas na figura acima, aponta de fato para uma aceleração relevante da PTF* (descontada as anomalias de precipitações) entre a década de 1980 e as duas décadas mais recentes. Portanto, quando se toma o cuidado de expurgar os choques de precipitações, a conclusão é de que o saldo líquido das reformas e avanços institucionais nos últimos 30 e poucos anos foi favorável para impulsionar a PTF brasileira (muito embora um ganho de produtividade de 1,2% a 1,3% a.a. ainda seja modesto do ponto de vista da convergência de nosso PIB per capita aos níveis dos países avançados, já que a PTF neles tem crescido em torno de 1% a.a.).

Contudo, o que interessa na prática para o PIB efetivo/potencial é a PTF “original”, sem os ajustes pelas precipitações. Isso significa dizer que, se quisermos fazer com que a barra cinza convirja para a barra vermelha – elevando efetivamente nosso PIB potencial -, ou reduzimos ainda mais nossa vulnerabilidade às oscilações das chuvas e/ou mudamos radicalmente nossa política ambiental, não somente reduzindo a zero os desmatamentos, mas também regenerando áreas degradadas (já que parte da estiagem crônica no Brasil pode ser explicada pelo elevado desmatamento acumulado na região da floresta amazônica nas últimas décadas, afetando negativamente o fenômeno dos “rios voadores”, que determinam boa parte das chuvas na região Centro-Sul do país[2]).

Como já mencionado anteriormente neste texto, a adaptação de nosso sistema de geração de eletricidade a uma menor disponibilidade de chuvas já tem ocorrido há quase uma década e ganhou ímpeto nos últimos anos, devendo prosseguir nos próximos: em relatório publicado no final do ano passado, o ONS projeta que as fontes eólicas e fotovoltaicas (centralizadas) irão responder por algo entre 25% e 35% da capacidade instalada de geração em 2027 (foram traçados dois cenários), partindo de cerca de 20% em 2023 (percentuais que excluem a geração descentralizada, em boa medida também fotovoltaica). Vale notar, contudo, que o aumento da participação dessas fontes intermitentes traz desafios adicionais em termos de operação do sistema, exigindo inclusive mais investimentos em linhas de transmissão e mesmo em armazenamento de eletricidade (para além dos reservatórios hídricos).

Já no caso do agronegócio, em particular da agricultura, a adaptação tem sido relativamente lenta. Segundo o MapBiomas, as culturas irrigadas no Brasil passaram de 804 mil hectares em 1985 (praticamente 0% da área plantada naquele ano) para 3,3 milhões em 2021 (pouco menos de 5%). Uma maior irrigação poderia inclusive contribuir para um aumento da produtividade em algumas lavouras, além de, obviamente, aumentar a resiliência da produção agrícola e de nossa economia às oscilações climáticas. Contudo, para viabilizar isso, é preciso não somente mais investimentos por parte dos produtores agropecuários (talvez incentivados por algum tipo de política pública), mas também um esforço maior dos governos envolvendo mapeamento e monitoramento da quantidade e da qualidade dos recursos hídricos brasileiros, particularmente daqueles que estão no subsolo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Evolução essa que permitiu que os reservatórios de água utilizados para geração de eletricidade atingissem, em 2022/23, os maiores níveis de armazenamento em mais de 20 anos, após registrarem níveis críticos na segunda metade de 2021. Convém lembrar que a geração eólica tem seu pico de produção justamente no período seco (maio a novembro), permitindo assim poupar água nos períodos em que, sazonalmente, chove menos. Importante lembrar, ainda, que parte dessa mudança de composição da matriz elétrica pode ser atribuída a uma “política industrial”: a introdução do Proinfa, em 2002, que criou incentivos, válidos por 20 anos, para geração eólica, pequenas centrais hidrelétricas e térmicas a biomassa.

[2] Segundo o MapBiomas, a floresta amazônica contida no território brasileiro (cerca de 60% do total) perdeu uma área equivalente ao Chile entre 1985 e 2020. No mais, um artigo científico publicado na revista Nature em março de 2023 (“Tropical deforestation causes large reductions in observed precipitation”) apontou que o desmatamento em áreas tropicais está associado a reduções nas precipitações, com um impacto máximo em distâncias de 200km da floresta (distância máxima analisada pelos autores).

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