Macroeconomia

Explorando os gatilhos da Emenda Constitucional emergencial

19 mar 2021

O Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional da emergência fiscal na última semana. Ainda existem dúvidas sobre o alcance de todos os dispositivos, pois em um texto constitucional não é possível ser exaustivo o que cria dúvidas que serão sanadas com o tempo. Neste artigo, me proponho a analisar com mais detalhes o funcionamento dos gatilhos.

Os gatilhos são regras de contenção de despesas obrigatórias, cujo principal item é o gasto com salário de servidores e novas contratações. Existem formas distintas para acionar os gatilhos para o Governo Federal e para Estados e Municípios (E/M) e elas se relacionam de forma diferente com as várias regras fiscais existentes.

Começando pelo Governo Federal, os gatilhos serão acionados quando a despesa obrigatória ultrapassar 95% da despesa total, ambas sujeitas ao teto de gastos. O maior percentual da série histórica ocorreu em 2020 quando essa proporção atingiu 92,8%. As projeções atuais indicam que essa barreira seria rompida entre 2024 ou 2025.

Uma das críticas ao mecanismo é que o ajuste ficou para o futuro. É importante notar que, no meio de uma crise, o governo deve injetar recursos novos na economia para evitar a contração da demanda agregada. Garantir o ajuste no futuro não é necessariamente um aspecto negativo da proposta. A questão é se esse ajuste é crível, se for necessário.

Essa também foi a estratégia do governo Temer ao criar o teto de gastos. O teto foi aprovado no final de 2016, mas só se tornou restritivo a partir de 2020. Muitos analistas que defendem o teto criticaram a atual estratégia quando ela parece até mais justificável.

Uma interpretação é que o governo tenha adotado esse critério para viabilizá-lo politicamente. Ademais, seria possível aprovar reformas nos próximos anos que evitassem o acionamento dos gatilhos. A experiência do teto, contudo, indica que regras fiscais não forçam reformas, mas é possível que o acionamento dos gatilhos seja postergado caso algumas medidas sejam aprovadas. O primeiro ano do próximo governo deixará isso mais claro porque é quando se produz algum ajuste mais relevante.

Mas regras fiscais são sempre imperfeitas e sujeitas a distorções. Não há na legislação definição desses conceitos de despesa o que abre margem para arbitrariedades e judicialização. Além disso, é possível que um governante na eminência de atingir esse limite antecipe aumentos de despesa obrigatória para compensar o efeito dos gatilhos, tornando-os inócuos. No caso do Governo Federal, essas antecipações estão sujeitas ao teto e podem consumir maior espaço das despesas discricionárias que já estão comprimidas.

Alguns analistas alegaram que os servidores, por exemplo, ficarão muitos anos sem reajustes quando os gatilhos forem acionados. Esse argumento encontrou eco em várias lideranças políticas. Esse resultado não está definido na regra, mas é uma possibilidade porque a despesa com a previdência cresce em termos reais o que torna difícil retomar o limite de despesas obrigatórias exigido pela regra.

O indexador do teto de gastos poderá ser revisto em 2026. Se o novo indexador ampliar o limite, será possível abrir espaço para as discricionárias e reestabelecer a razão entre despesas obrigatórias e totais abaixo de 95%, reduzindo a duração dos gatilhos. A situação fiscal em 2026 será importante para definir que teto será esse, mas não é razoável evocar mudanças futuras para resolver um problema. Nesse caso seria possível justificar qualquer política.

No caso dos E/M, o critério para acionamento dos gatilhos é ultrapassar o limite de 95% entre despesas correntes e receitas correntes. Essa diferença ocorre porque esses entes não estão sujeitos ao teto de gastos o que criaria incentivos para ampliar a despesa discricionária e fugir do limite. Por outro lado, essa regra oferece mais graus de liberdade, pois os investimentos ficam de fora e permite que o ajuste seja feito com redução de despesa e aumento de receitas.

O acionamento dos gatilhos para E/M é facultativo, mas a Emenda determina que o ente só poderá celebrar operações de crédito ou receber garantias de outro ente público se o gatilho for implementado. Nos últimos anos, o Tesouro tem tido um custo fiscal relevante com execução de garantias em créditos de E/M inadimplidos.

Tais sanções são eliminadas apenas se todos os Poderes e Órgãos mencionados na emenda aplicarem os gatilhos. Ou seja, o Poder Executivo, que é mais afetado pela sanção, não poderá obter garantias nem crédito público mesmo adotando as medidas corretivas que lhe são exigidas. Isso não é um incentivo correto.

Como é possível verificar, existem vários cenários e resultados possíveis para aplicação dos gatilhos na Emenda da emergência fiscal com impactos diversos e difíceis de prever. Mas quando uma nova regra é criada, ela esvazia as anteriores. Aconteceu com a regra de ouro que não é cumprida há alguns anos e deveria ter sido revogada, com a meta de resultado primário e com o teto de gastos que já foi alterado algumas vezes.

O país se tornou pródigo em empilhar regras fiscais, mas deveria focar nas reformas tais como a administrativa, orçamentária, tributária e na avaliação de programas porque é a forma mais adequada de conciliar equilíbrio fiscal com crescimento econômico. Com uma legislação orçamentária mais moderna, por exemplo, capaz de eliminar o quadro de insegurança jurídica não seria necessário gastar tanta energia para dizer, na Constituição Federal, que um crédito extraordinário é um credito extraordinário.


Este artigo foi publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 17/03/2020, quarta-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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