Macroeconomia

Fiscalismo de resultado

26 jun 2020

As regras fiscais têm se proliferado desde meados dos anos 1980 em vários formatos e países. Essa popularidade decorre da utilidade em conter vários vícios do processo fiscal e oferecer mais transparência e governança, características importantes para o necessário controle social de qualquer sociedade democrática.

O viés do déficit é um vício relacionado à propensão de grupos políticos para criar despesas sem fontes apropriadas de financiamento e que podem resultar em déficits excessivos. Programas de transferência de renda também geram popularidade imediata criando um viés contra investimento público apesar destes estarem associados a maior crescimento econômico.

Medidas com efeitos políticos imediatos distorcem o financiamento de políticas de bem-estar social cujo planejamento e elaboração devem ser feitos em uma perspectiva de longo prazo, tais como segurança pública, saúde e educação. Servidores públicos com elevado poder de barganha desequilibram as relações de trabalho e extraem benefícios que geram iniquidades assim como empresas que se beneficiam de isenções tributárias muitas vezes injustificadas.

Assim, várias regras fiscais devem coexistir para corrigir essas distorções de modo que a política fiscal contribua para o desenvolvimento. O papel das regras fiscais, portanto, é atuar na margem, aperfeiçoando o processo decisório das políticas públicas de forma incremental e modernizando a atuação do Estado. Regras fiscais não são capazes de produzir o ajuste fiscal por si como parece pressupor o debate brasileiro. São ordens de grandeza diferentes.

Em 2016, o governo criou o teto de gastos que define que as despesas devem crescer pela inflação. A lógica é cartesiana: com o crescimento econômico, as despesas em proporção do PIB serão reduzidas e o resultado primário se elevará até que a dívida pública se torne sustentável.

A despesa primária em 2019 atingiu 19,9% do PIB, o mesmo patamar de 2016. Isso ocorreu porque o teto de gastos foi definido em valor muito elevado não sendo uma restrição até o momento. A Instituição Fiscal Independente (IFI), no entanto, estimou que o teto de gastos deve ser descumprido em 2021, um ano depois de a despesa primária atingir um novo recorde em resposta à pandemia. A se confirmar essa projeção, o teto de gastos terá saído de um ponto em que ele não foi efetivo para imediatamente se tornar impossível de ser cumprido.

Há previsão de acionamento de gatilhos que controlem as despesas de pessoal e as despesas atreladas ao salário mínimo, mas o governo deve aprovar outra emenda constitucional para viabilizar tais medidas. Uma vez que essa situação seja atingida, as demais despesas não possuem um limite pré-estabelecido. Todas as demais despesas não serão mais contidas pelo teto porque não há mecanismo que as defina. Muitos analistas parecem não se dar conta disso.

Qual será o nível de despesa discricionária nesse novo regime? O mínimo para a máquina pública funcionar ou a média dos últimos anos? Como será definido o valor a ser gasto com saúde ou educação? A depender dessas definições, as despesas podem variar quase 1% do PIB. A ironia é que para viabilizar o teto, o governo terá que aprovar medidas adicionais ainda mais duras do que o próprio teto.

Ao concluir que o teto não será suficiente para estabilizar a dívida pública, o governo indicou a intenção de introduzir limites para a dívida pública que, se rompidos, acionarão outros gatilhos. A ideia é adotar medidas de ajuste patrimonial, como privatizações, vendas de imóveis ou reservas internacionais, por exemplo. O governo propõe gatilhos que já podem ser adotados corriqueiramente.

Existem problemas associados ao controle da dívida a partir de uma regra numérica. Quando o Banco Central define a taxa de juros, ele oferece a quantidade de títulos necessária para atingir o valor definido afetando o endividamento público. O BC também afeta o endividamento quando opera a política cambial. Será que faz sentido que o BC perca controle da taxa de juros ou distorça uma decisão de política cambial para cumprir um limite de dívida? Será que o Banco Central deve manipular os depósitos compulsórios, que não geram endividamento, como forma alternativa de enxugar a liquidez? A resposta para todas essas perguntas é negativa.

Em geral, a dívida se eleva bastante durante períodos recessivos e se ajusta em períodos de crescimento e com reformas. Vender ativos, em muitos casos valiosos, durante recessões, é queimar patrimônio público. Qualquer investidor sabe que isso é um mau negócio.

Déficits e dívida são importantes instrumentos de absorção de choques. A adoção de um limite para a dívida pode aprimorar a transparência e o planejamento fiscal, mas não é um mecanismo passível de controle numérico e  não deve produzir as distorções discutidas. É preciso ter muita clareza do papel desse instrumento.

O debate atual exige das regras fiscais muito mais do que elas podem entregar. Um bom sistema de regras fiscais alinha incentivos, mas não dispensa uma atuação política eficaz, coordenação entre Poderes e reformas específicas nos gastos e na tributação. No atual fiscalismo de resultados, temos muitas metas para criar apenas confusão.


Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 24/6/2020, quarta-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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Rafael
Manoel.

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