Macroeconomia

Inflação: desta vez é diferente?

3 abr 2017

Na primeira metade dos anos 1980, a economia americana ingressou no período conhecido como a Grande Moderação. PIB estável, baixa inflação, alongamento do ciclo econômico e maior previsibilidade fizeram desta fase o paraíso dos banqueiros centrais. A década e meia anterior, em contraste, é chamada de a Grande Inflação. O índice de preços ao consumidor, que começou os anos 1970 em torno de 6%, alcançou 12% no fim de 1974. Após refluir nos dois anos seguintes, sobreveio nova pressão, que empurrou a alta de preços para 14,5% em março de 1980.

Embora esta terminologia, que abusa do adjetivo grande[1], tenha se originado nos Estados Unidos, ela também se aplica a outras economias avançadas. Na Inglaterra, de 5%, em janeiro de 1970, a taxa de inflação saltou para 27%, em agosto de 1975. Após um alívio passageiro, a inflação arremeteu, atingindo 21% em junho de 1980. Na Alemanha, os números são mais baixos, mas o traçado da curva inflacionária é similar. Partindo de 3%, em janeiro de 1970, a taxa avançou para 7,9% em dezembro de 1973. O pico seguinte ocorreu em outubro de 1981, quando o índice de preços acumulou em 12 meses acréscimo de 7,5%.

A febre inflacionária dos anos 1970 é normalmente atribuída aos dois choques do petróleo, que em pouco mais de seis anos multiplicaram por dez o preço do produto. O pensamento dominante na época dava por infrutíferas as ações para barrar o impacto inflacionário decorrente de um choque de oferta, que se previa intenso em face da extrema dependência em relação ao petróleo. Examinando mais de perto o caso americano, porém, é possível apontar escolhas de política anti-inflacionária que acabaram por favorecer a disseminação da alta de preços.

Antes mesmo do primeiro choque, em fins de 1973, o governo dos Estados Unidos instituiu um amplo programa de controle de preços e salários, de eficácia duvidosa. Ao longo da década, prevaleceu por parte do FED, o banco central americano, uma postura de acomodação monetária diante de déficits fiscais crescentes. Além disso, na tentativa de cumprir seus dois objetivos estatutários, conflitantes a curto prazo, a preferência da instituição recaiu sempre sobre o pleno emprego em detrimento da estabilização inflacionária. A consequência foi a aceleração geral dos preços e não apenas a dos alvos diretos dos choques. É desta época a criação do indicador que exclui do cálculo os preços de alimentos e energia. No momento de pico, enquanto o índice cheio alcançava 14,5%, o expurgado não ficava muito atrás, marcando 12,5%.

Com a ascensão de Paul Volcker, um renomado falcão, ao comando do FED, no fim de 1979, o controle da inflação foi definitivamente priorizado, ainda que ao custo da maior recessão até ali registrada desde a Grande Depressão. A intransigência no combate à inflação, legado da gestão Volcker, devolveu ao FED a credibilidade corroída pelos anos de complacência e abriu caminho para a Grande Moderação. Apenas uma vez, nos últimos 25 anos, a inflação americana ultrapassou, ainda que momentaneamente, a faixa de 5%.

Com mais de três décadas de atraso, o Brasil, à sua maneira, também viveu, nos últimos dez anos, uma fase semelhante à Grande Inflação dos anos 1970. Em 2006, transcorridos 12 anos do Plano Real, o índice de preços ao consumidor andava na casa de 3%, a Selic ainda superava 13% ao ano, e o mercado previa, para 2007, inflação ao redor de 4%. Parecíamos apartados em definitivo de nosso passado hiperinflacionário. Ledo engano. Em dezembro de 2015, o IPCA assinalou 10,67%.

O Brasil não sofreu choques do petróleo, mas tampouco se mostrou um combatente aguerrido evitando que a inflação fosse além dos 4,5%, meta que por comparações internacionais não é das mais rigorosas. Reduções extemporâneas dos juros num ambiente de expansionismo fiscal sem perspectiva de reversão enrijeceram as expectativas inflacionárias em 6,5%, o topo do intervalo de tolerância para o cumprimento da meta. Nossa recaída não foi hiperinflacionária, nem houve tempo para isso. Mas desprezamos o aprendizado dos países avançados, insistindo na teoria há muito sepultada de que um pouco de inflação proporciona um pouco de crescimento.

Não é de admirar que esteja sendo elevado o custo de trazer a inflação de volta para a faixa que já havia atingido há mais de uma década. O custo se tornou ainda maior pela necessidade de corrigir as distorções provocadas pelo represamento dos preços administrados, artifício que de tão desmoralizado parecia fora de cogitação. Nos últimos dois anos, desde que a política monetária começou a tornar-se mais austera, a taxa de desemprego subiu cerca de seis pontos percentuais.

Nos Estados Unidos, depois que Volcker assumiu o FED, o avanço do desemprego teve menor amplitude e dinâmica mais lenta do que durante a atual recessão brasileira. Em fins de 1979, a taxa era de 6%. Três anos depois, pelo efeito de juros na fronteira dos 20% ao ano, alcançou 11%. Como a inflação começou a ceder rapidamente, o FED baixou os juros, e o desemprego, em meados de 1985, estava em 7,5%. No Brasil, ao longo de 2017, a taxa ainda deverá subir e finalmente se estabilizar. Mas é difícil dizer quando irá começar e quanto tempo vai durar a viagem de volta.

Como se tivesse esquecido sua longa e tortuosa história de alta inflação, o Brasil lamentavelmente reincidiu neste descaminho. É cedo para dizer se conseguiremos deixar de vez de ser tolerantes com a inflação, como os países avançados a partir dos anos 1980. Estes países, para assegurar que a transição não se reverteria, introduziram inovações nos usos e costumes da política monetária, como a independência formal do banco central, já posta em prática por emergentes como o Chile e o México, e o anúncio de metas para a inflação. Trataram também de criar obstáculos institucionais à livre expansão dos desequilíbrios fiscais.

Nessa matéria, o Brasil deu um passo inédito, ao aprovar o teto dos gastos públicos. Poderíamos fazer mais reduzindo a meta de inflação para 4,25%, o que romperia o imobilismo de 12 anos e sinalizaria o propósito de buscar taxas ao redor de 3%. Pode não ser o bastante para ingressarmos na Grande Moderação, mas está de novo ao nosso alcance virar a página da Grande Inflação.

[1] Estas duas fases foram precedidas, há mais tempo, pela Grande Depressão e seguidas pela Grande Recessão.

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