Macroeconomia

Jogos fiscais

15 abr 2021

O processo orçamentário no Brasil é um jogo de conflitos e interesses que leva as partes envolvidas a adotarem várias estratégias em busca de um equilíbrio. Muitos analistas trataram dos números, dos problemas e os instrumentos possíveis para uma eventual solução, mas pouco se falou sobre as questões realmente substantivas que criaram o problema e criam condições para a solução. Nesse artigo vou tratar de duas questões relacionadas ao comportamento e as estratégias dos atores envolvidos e que contribuíram para o problema orçamentário.

Durante o processo de elaboração do orçamento, o Governo sempre deixa um espaço para que o Congresso aloque suas emendas. Nesse ano, essa reserva era de R$ 16,3 bilhões que é basicamente o mesmo valor disponibilizado em 2020 e ligeiramente superior à 2019 que foi de R$ 14 bilhões. Apesar do valor ser próximo de anos anteriores, o orçamento foi aprovado com emendas adicionais de R$ 26,5 bilhões em relação ao que foi reservado e com redução de várias despesas obrigatórias. Porque o Congresso Nacional extrapolou o limite desse ano que era basicamente o mesmo dos anos anteriores? Porque esse montante não foi suficiente, dessa vez? Essa é a primeira questão substantiva.

A nova eleição no Congresso pode ter alterado as prioridades da nova coalisão política reduzindo a preocupação com assuntos orçamentários. Os Ministérios fizeram barganhas ao Congresso Nacional para recompor seus orçamentos porque há uma limitação maior nas despesas discricionárias dada pelo teto de gastos. Não é à toa que o Ministério da Saúde recebeu o maior volume de emendas o que é justificável em uma pandemia. O filtro dessas barganhas é realizado pelo centro de Governo o que não aconteceu dessa vez de forma eficiente. Por fim, a aprovação de vários projetos a toque de caixa, para mostrar que a agenda avançava, como a autonomia do Banco Central e a Emenda da Emergência Fiscal, envolve negociações e promessas políticas. Tudo isso se materializou neste orçamento.

O problema orçamentário não se encerra nos R$ 26,5 bilhões adicionais de emendas. Às vésperas da aprovação do orçamento, o Governo publicou um Relatório informando a necessidade de contingenciar R$ 17,5 bilhões. Assim, a necessidade de contingenciar e o excesso de emendas totalizam R$ 44 bilhões de despesas acima dos limites disponíveis na proposta orçamentária.

Porque o Governo não antecipou essa informação ao Congresso Nacional como é feito todos os anos para que fosse possível ter informações orçamentárias confiáveis? Essa é a segunda questão substantiva. A resposta é que se isso fosse feito, o orçamento dificilmente seria aprovado, pois esse ajuste eliminaria o espaço orçamentário para emendas parlamentares causando uma crise política.

O Governo preferiu arbitrar o problema depois da aprovação do orçamento, possivelmente, por meio de contingenciamentos ao invés de resolver o problema político ainda no Congresso. Mas esse jogo é repetido e os dois lados aprendem com as estratégias adotadas. Tal expediente foi utilizado amplamente em 2011 e 2012 e resultou na aprovação das emendas impositivas, um comando constitucional que obriga a execução de emendas parlamentares aumentando ainda mais a rigidez do orçamento.

Esse histórico mostra que contingenciar todas as emendas e recompor as despesas obrigatórias não parece uma solução sustentável. Diante dessa possibilidade, as lideranças políticas reagiram com ameaças e cobrando os acordos políticos que foram feitos. Para não ficar com o ônus, o Presidente da Câmara informou que cancelaria R$ 10 bilhões em emendas do relator jogando para o Governo a responsabilidade de ajustar o restante. A possibilidade de abertura de CPI da Covid diminui a capacidade do governo em buscar um acordo.

A solução é buscar uma difícil conciliação política para acomodar expectativas tão divergentes. A postergação do pagamento do abono salarial, adotada antes da aprovação do orçamento, abriu espaço fiscal de R$ 7,5 bilhões. Somado à desistência de parte das emendas o total a ser ajustado volta à cifra de R$ 26,5 bilhões.

O Governo sempre superestimou despesas obrigatórias para não correr riscos de não ter os recursos suficientes. Isso é justificável tendo em vista a necessidade de lidar com surpresas ao longo do ano. Mas em alguns anos essa diferença é expressiva: na previdência em 2020, por exemplo, estimou-se que as despesas atingiriam R$ 677,7 bilhões, mas totalizaram R$ 663,9 bilhões, uma diferença de R$ 13,8 bilhões. Tendo passado o primeiro quadrimestre do ano, é possível, que novas estimativas mais precisas possam abrir espaço fiscal adicional mantendo a margem de segurança para os gestores.

Mesmo considerando todos esses ajustes, o problema ainda é grande para ser resolvido. As despesas com a pandemia estão planejadas em R$ 85 bilhões para o ano. Como ainda há negociação para novos recursos para a saúde, para o programa de redução de jornada e de crédito para micro e pequenas empresas, o gasto com a pandemia deverá ser superior a R$ 100 bilhões. Desse total, apenas o auxílio emergencial (R$ 44 bilhões) está fora dos limites impostos pelas regras fiscais.

É difícil prever como a realidade se conciliará com o orçamento, mas a possibilidade de decretação da calamidade para suspender as regras fiscais é real. A ironia é que o governo trabalha para uma solução intermediária que passe por não acionar o regime que ele mesmo criou por meio da Emenda da Emergência Fiscal. Essa é a grande contradição lógica do momento.


Este artigo foi publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 14/04/2021, quarta-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

 

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