Liberalismo e teoria da linguagem
Caráter universal da linguagem de Chomsky não é correto, como mostrou antropólogo americano Daniel Everett em pesquisa com os índios pirahã da Amazônia brasileira – e isso põe em xeque visão anti-individualista do linguista.
Há pouco tempo soubemos que o linguista Noam Chomsky, professor emérito do MIT, estava no Brasil para um tratamento médico, do qual teve alta em 18 de junho. Sua presença no Brasil foi realçada pela visita pessoal que o presidente Lula fez ao pesquisador. Por que Lula foi visitar um linguista? Porque Noam Chomsky tem fortes posições de esquerda muito conhecidas. É interessante entender como esta visão de esquerda está conectada ao trabalho teórico do linguista. A principal teoria de Chomsky data dos anos 50 do século passado, quando terminou seu doutorado. Sua ideia era que a linguagem era inata ao ser humano. Todos nasciam pré-programados para a língua. Era a teoria da gramática universal. Chegava a dizer que havia um novo órgão do ser humano onde a fala estava localizada. Metaforicamente, dizia que se linguistas marcianos chegassem à Terra, achariam que todas as línguas faladas não passavam de dialetos muito próximos. Esta forma de pensar na linguagem tem implicações muito profundas sobre como o ser humano funciona. De fato, se todos já nascemos com uma mesma estrutura de linguagem, pode-se inferir que alguns conceitos devem ser basicamente os mesmos. Assim, seria natural achar que números existem em todas as línguas. Afinal, contar é uma das mais elementares tarefas do dia a dia. Como poderíamos sobreviver se não soubéssemos qual a quantidade de dinheiro necessária para adquirir itens de primeira necessidade? Um outro exemplo é a forma como pensamos o passar do tempo: como se estivéssemos caminhando para a frente, onde está o futuro, e deixando o passado para trás. Da mesma forma, por que não pensar que algumas noções, como o conceito de bem e mal, sejam inatas também? Ocorre que aí é que está o perigo – se o conceito de bem e mal é o mesmo em toda a humanidade, abre-se espaço para o ditador-filósofo de Platão. A filósofa é aquela pessoa que pensou profundamente sobre o que é certo e o que é errado, e aprendeu estes conceitos. Desta forma, uma vez que ela(e) sabe o que é certo e o que é errado, então por que não mostrar a todos o que fazer? Melhor ainda, por que não impor a todos estas noções? Afinal de contas, se todos temos a mesma estrutura mental, forçar todas as pessoas a seguirem o certo e o errado que emana da cabeça do(a) filósofo(a) vai fazer todos mais felizes. Impor a vontade do(a) ditador(a)-filósofo(a) restringe as liberdades individuais apenas aparentemente. Pois fazer o bem e evitar o mal é o que todo ser humano deve almejar. Como decorrência lógica deste raciocínio, Platão em seu diálogo “A República” conclui que o melhor sistema de governo seria um país onde houvesse um(a) ditador(a)-filósofo(a). Ao longo da história o pensamento platônico, em que os conceitos de bem e mal são absolutos para a humanidade, reinou quase sem teorias alternativas por dois mil anos, até o Renascimento (as ideias platônicas foram dominantes no Ocidente entre 400 a.C. até cerca de 1500 d.C.). Maquiavel, Hobbes e Locke mostraram ao mundo que o universo platônico era uma construção que não correspondia à forma como os seres humanos pensam. O mundo real não é algo que se possa aprender apenas com introspecção profunda. Para o entendimento da realidade é necessária a observação empírica (aqui há a descoberta do método científico moderno, que foi explicado com clareza pela primeira vez por Francis Bacon). O conceito de bem e mal não é absoluto, mas sim individual. Não é possível alguém saber o que é bom ou mau para uma outra pessoa. Esta é a essência do liberalismo – o bem e o mal são conceitos individuais.
Assim, a partir de meados da década de 50 do século passado, com a visão de Chomsky sobre a linguagem, parecia que a humanidade, embora individualista, tinha muitos aspectos que tornavam-na mais próxima de platônica do que imaginávamos. É claro também que desde Kant sabemos que ideias inatas (conhecimento a priori) coexistem com aprendizado empírico. Desta maneira, falando de um ponto de vista estritamente lógico, a teoria da gramática universal pode conviver com a visão subjetiva dos conceitos de bem e mal. Mas, se alguns conceitos como números eram inatos, por que não estender esta ideia para o conceito de bem e mal? As posições de esquerda de Chomsky são uma possível decorrência de estender sua lógica sobre a universalidade da linguagem para outros conceitos. E vários outros filósofos modernos e contemporâneos já defenderam que as noções de bem e mal são absolutas, como o próprio Kant e, mais recentemente, Jonh Rawls.
Só que o caráter universal da linguagem não é correto! E esta descoberta foi através do estudo de povos indígenas amazônicos. Em 1983 Daniel Everett defende sua tese de doutorado na Unicamp, e mostra certas características da linguagem dos pirahãs. A tribo indígena Pirahã vive na Amazônia brasileira. Everett tinha vindo ao Brasil para tentar aprender a língua com objetivo de catequizá-los. Ele observa que havia uma falha da teoria da recursividade (não vou entrar em detalhes aqui) na língua pirahã, o que tecnicamente é incompatível com a teoria geral de Chomsky. Depois de muita controvérsia, hoje este é o paradigma aceito da linguística. Como exemplo da forma curiosa como os pirahãs se comunicam, eles não entendem o conceito de número tal como nós conhecemos. Para estes indígenas há noções de “pouco”, “alguns” e “muitos” (esta descoberta foi devida a Caleb Everett, filho de Daniel, e seus co-autores). Para o povo pirahã bastavam estes conceitos de quantidades para sua subsistência. Números são desconhecidos por esta tribo. Hoje, a visão sobre a linguagem é que ela é aprendida/desenvolvida para lidar com as necessidades de um povo no dia a dia. Em seu recente “A Myriad of Tongues”, Caleb Everett mostra muitos outros exemplos desta afirmação, não só com o conceito de números, mas também com a noção da interpretação espacial da passagem do tempo, e de muitas outras.
Galileu inaugurou o uso rigoroso de métodos empíricos na física (obviamente havia vários outros cientistas empíricos então – Tycho Brahe e Johannes Kepler entre outros). Com isso mostrou através de experimentos que a física aristotélica estava errada. Isto contribuiu para ruir o universo platônico. Da mesma forma, a teoria da gramática universal de Chomsky mostrou-se empiricamente inválida. Por consequência, também suas possíveis interpretações anti-individualistas.
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