Política e Governo

Lula 3 e o método de governo de Trump e Bolsonaro

12 abr 2023

Trump e Bolsonaro usaram artifícios para driblar leis que lhes desagradavam como, no caso do brasileiro, em meio ambiente e armas. Lula III vai no mesmo caminho em relação à reforma do ensino médio e ao marco do saneamento.

Que tanto Lula (e os governos do PT em geral), quanto Trump e Bolsonaro, usaram de métodos pouco comuns de divulgação é um fato bem conhecido.  Todos fizeram uso de “fake news”.   Nos governos do PT do passado (e do presente) o processo era o de “construir uma narrativa”.  Isto é, criar uma estorinha que era repetida inúmeras vezes para ver se acabava sendo aceita como realidade.  Exemplos gritantes no caso do PT foram “o mensalão não existiu” e “o impeachment de Dilma foi um golpe”.  Já os governos Trump e Bolsonaro faziam o mesmo utilizando-se de redes sociais e comunicação mais direta com o eleitorado.  Por exemplo, ambos Trump e Bolsonaro questionaram de forma totalmente infundada a validade do processo eleitoral que os derrotou.  E, mais recentemente, Lula volta a referir-se ao “golpe” do impeachment da Dilma.  Além de outras manifestações claramente classificáveis como notícias fabricadas.  Ocorre que disseminação de “fake news” pode ser feita por quem está no poder e quem está fora dele.  Não é preciso valer-se da posição de ser líder do Executivo para isso.  Em resumo, embora danoso para a sociedade, o método de “fake news” não pressupõe que só possa ser feito a partir de uma posição de poder. 

Tal não é o caso numa outra esfera, que acho muitíssimo preocupante.   Refiro-me ao uso indevido das instituições públicas para fins de driblar o regramento jurídico do país.  Os governos Trump e Bolsonaro ficaram conhecidos por esta característica muito preocupante para a democracia.  Com dificuldades de aprovação de leis no Congresso, Trump e Bolsonaro passaram a utilizar-se de mecanismos infralegais para alterar o conteúdo de leis que estavam em vigor.  O caso de Bolsonaro, que está mais próximo de nós, é notório, especialmente na área ambiental e na política de posse e porte de armas.  No meio ambiente, se a lei proíbe desmatamento, Bolsonaro incentivou as queimadas da Amazônia simplesmente desmontando o sistema de fiscalização e repressão.  Se a lei determina multa a produtores de madeira ilegal, fez-se a lei ficar inócua com duas medidas: redefiniu-se o sistema de licenças ambientais necessárias para a comercialização de madeira e introduziu-se um processo moroso que resultava em caducidade das multas.  Se a lei determina que os equipamentos apreendidos em operações de combate à mineração ilegal sejam destruídos, proibiu-se esta prática e colocaram-se pessoas no comando dos órgãos de repressão que foram inteiramente alinhadas com o desrespeito à lei.  O mesmo deu-se no caso das eleições: se o TSE proíbe operações policiais, o diretor da Polícia Rodoviária Federal fez bloqueios nas estradas no dia da votação.  O caso das armas e dos decretos que flexibilizaram a posse e o uso foram definitivamente julgados pelo STF em setembro de 2022.  Alguns dos decretos ambientais foram derrubados em abril de 2022.  Obviamente, a morosidade do sistema judiciário para lidar com o assunto fez com que nós ainda sintamos por muito tempo os efeitos deletérios destes decretos inconstitucionais e destas ações ilegais. Em suma, se um ordenamento institucional impede determinada ação de interesse do governo, ao invés de encaminhar-se uma alteração da lei, o Executivo passa a tomar medidas que impeçam a lei de ser aplicada.  Estas medidas são, claramente, inconstitucionais, mas o prazo mais dilatado que o Judiciário tem para apreciar estas matérias faz com que, na prática, muitos dos efeitos negativos do descumprimento da lei fiquem impunes.  É com esta assimetria temporal da atuação do sistema de pesos e contrapesos que Trump e Bolsonaro jogaram. 

O que vemos, com muita tristeza, é que Lula 3 vai pelo mesmo caminho.  Nesta semana que passou dois episódios chocantes aconteceram.  Primeiro, no dia 4 de abril, o ministro da Educação suspendeu a implantação da reforma do ensino médio, aprovada em 2018.  E em curso em todo o país.  A ideia é fazer uma parada de 60 dias na implantação.  E “discutir democraticamente” o ensino médio.  Ora, a discussão democrática deu-se no âmbito correto: o Congresso Nacional.  E já aconteceu em 2017 e 2018.  Se o governo Lula 3 acha que deve ser rediscutida, que vá ao Congresso com uma proposta, e não atrapalhe o andamento de algo que já está em vigor há mais de seis anos.   Segundo, e mais impressionante ainda, através de dois decretos, 11.466 e 11.467, o marco legal do saneamento (lei 14.026 de 15/7/2023) foi completamente alterado.  Sem que se passasse pelo Congresso!  O marco do saneamento tem sido fundamental para grande reviravolta que estamos vendo no setor.  É claro, já há reações da sociedade contra estas mudanças das leis sem que houvesse aprovação pelo Congresso.  No caso do ensino médio, a alteração inclui o ENEM de 2024, que deveria ser modificado para que as matérias constantes do novo ensino médio fossem incluídas.  Atinge quase 3 milhões de jovens (UOL, 4/4/2023).  Isto, por si só deverá fazer pressão para a revisão desta decisão.  E ainda bem que os governos estaduais, responsáveis pela implantação da lei, não precisam seguir o que o governo federal determina.  De fato, o governador de São Paulo já anunciou que continuará a seguir com o modelo novo. O Partido Novo entrou com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF para tentar impedir as mudanças no marco do saneamento. Kim Kataguiri, do União Brasil, protocolou projeto de decreto legislativo na Câmara para suspender as alterações do novo marco legal do saneamento. E o presidente da Câmara também já deu declarações de que fará um decreto legislativo para anular os efeitos (ao menos parte deles) dos decretos presidenciais. Estas iniciativas são louváveis, mas levarão tempo para serem eficazes. 

A democracia não se faz com o uso indevido do ordenamento jurídico.  Os abusos serão no futuro revertidos.  O que fica é a insegurança, que acaba por refletir-se  na sociedade.  Quando se acha que uma lei está aí para ser aplicada, um governo intervencionista de plantão tenta modificá-la sem os trâmites que a divisão de Poderes impõe.   Todo o país é prejudicado.  A divisão de Poderes e as instituições de veto (como o TCU, a PF, o Ministério Público) existem para dar estabilidade.  Se um governo discorda de uma política, deve fazer o óbvio: procure convencer a maioria do Congresso e modifique a lei.  Não tem sentido o Executivo não respeitar as regras democráticas.  A principal sugestão para fazer com que os ganhos por adotar tal estratégia não sejam elevados é diminuir a assimetria de tempo para a ação das instituições de veto e de pesos e contrapesos.  Mas, o melhor é que cada Poder faça o que é esperado dele.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 14/04/2023.

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