Macroeconomia

Meta de resultado primário: descanse em paz

17 abr 2020

O Governo Federal divulgou o PLDO 2021 no último dia 15 de abril. Esse projeto de Lei marca o início do ciclo orçamentário para 2021 e nele consta a meta fiscal para o respectivo ano, bem como as intenções do governo para as metas fiscais dos dois anos seguintes.

Há grande incerteza sobre qual a melhor meta fiscal que o governo deve seguir no próximo ano. A questão é bem prática: com a crise, não é possível estabelecer um cenário minimamente confiável para a trajetória das receitas, pois o PIB desse ano e do próximo se tornaram muito incertos. Basta ver a amplitude das projeções para o PIB brasileiro: para 2020, fala-se de -2% a -8%. Já para 2021, há números que vão de pouco menos de +2% a quase +5%. Essa amplitude se reflete, naturalmente, sobre as perspectivas de receitas recorrentes, tornando as possibilidades para o resultado primário muito amplas e absolutamente fora do controle da administração pública.

Levando em conta esse fato, o governo anunciou uma novidade no PLDO de 2021: a meta fiscal para o próximo ano será dada pela diferença entre a despesa, que está limitada ao teto de gastos (e suas respectivas exceções como os créditos extraordinários e também as capitalizações de empresas estatais), e a receita a ser realizada no próximo ano seja ela qual for. Na prática funciona como uma banda fiscal em que se tem o quanto o governo gasta e o resultado primário como uma função da receita (recorrente e atípica). A única diferença em relação a uma banda é que, no sistema proposto, o governo não terá nenhum compromisso com nenhum resultado de saldo primário. O resultado primário será o que tiver que ser, o que na verdade transforma esse sistema de bandas em uma meta sem piso. Assim, a elevada incerteza sobre o resultado primário decorrente desse sistema acaba se transpondo para as projeções de trajetória da dívida.

Para analisar melhor esse tema é importante voltar um pouco no tempo.

O sistema de metas de resultado primário e contingenciamento começou a vigorar no formato atual a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal, promulgada em 2000, que determinava que as LDOs deveriam vir acompanhadas de metas fiscais e definiam critérios para limitações de empenho, caso houvesse possibilidade de descumprimento da meta fiscal (artigo 9º). Ou seja, se por alguma razão o governo vislumbrasse a possibilidade de frustração no cenário de receitas e despesas ele deveria ajustar sua programação orçamentária, bimestralmente, para adequar a política fiscal ao cumprimento do resultado primário. A cada ano a LDO definia a meta fiscal para o ano seguinte (algo que, por definição, dava um horizonte muito curto sobre a evolução da política fiscal).

Esse sistema funcionou razoavelmente bem durante praticamente toda a década de 2000. Em um primeiro momento, até 2004/05, as metas de resultado primário eram determinadas no âmbito do acordo com o FMI (que vinha desde o final da década anterior, provendo liquidez em moeda externa para uma economia com a solvência externa muito fragilizada). Embora fossem metas agressivas, foram cumpridas com certa folga, até mesmo por conta da forte elevação da carga tributária recorrente entre 1999 e 2004.

Nos anos seguintes, com um crescimento econômico bastante acelerado gerando expansão relevante das receitas, não foi difícil manter os resultados primários em níveis elevados, mesmo com gastos crescendo em ritmo também acelerado (ainda que algumas reformas pontuais tenham contribuído para conter algumas despesas obrigatórias, como foi o caso da mudança na previdência do funcionalismo aprovada em 2003). Essa combinação de fatores foi suficiente para gerar uma trajetória de queda relevante dos indicadores de endividamento.

Apesar de funcionar bem, o sistema não era imune às críticas. Com o tempo, percebeu-se que o sistema era altamente pró-cíclico. Quando a economia crescia mais que o esperado, ao invés de estimular a poupança do governo, o cumprimento da meta era facilitado - o que ampliava o espaço para novas despesas (muitas delas permanentes). O contrário ocorria quando o crescimento se frustrava. Dessa forma, o sistema contribuía para exacerbar ao invés de suavizar o ciclo econômico – algo que ganhava o reforço, de tempos em tempos, dos ciclos políticos-eleitorais da política fiscal (fato estilizado observado em praticamente todos os países nos quais há algum tipo de eleição dos governantes) O processo orçamentário brasileiro também atuava no sentido de reforçar esse caráter pró-cíclico, já que o Congresso tipicamente inflava as receitas dos PLOAs enviados pelo Executivo de modo a acomodar mais despesas, sobretudo com emendas parlamentares.

Em 2009, por conta dos impactos muito negativos da grande crise financeira, o governo teve que reduzir a meta de resultado primário em relação àquela que havia sido definida pela LDO aprovada em 2008. Na época, a jurisprudência construída ao longo dos oito anos anteriores permitia que o governo utilizasse nas suas projeções e reavaliações de cenários macroeconômicos as propostas que considerava com elevada probabilidade de aprovação pelo Congresso. A analogia com o setor privado é direta: na contabilidade privada, um ativo é classificado conforme grau de risco, considerando sua probabilidade de desempenho de acordo com critérios específicos.

Como a redução da meta de 2009 era considerada uma proposta com elevada probabilidade de aprovação pelo Congresso, o governo começou a trabalhar com a nova perspectiva fiscal desde que enviou a proposta para o Congresso Nacional, o que permitiu uma reação mais tempestiva na crise sem a necessidade de solicitar uma flexibilidade ilimitada aos parlamentares.

O cumprimento das metas fiscais foi se tornando mais complexo a partir da década seguinte por conta das seguidas de PIB a partir de 2011. Como atestou Ricardo Barboza, o país vive a década frustrada: em todos os anos da década o resultado efetivo do PIB foi bem inferior ao que se projetava antes daquele ano se iniciar. Com a frustração econômica e o expansionismo exagerado praticado pelo governo entre 2012 e 2014, houve grande redução dos resultados primários.

Desde 2012, os vários governos têm recorrido a expedientes temporários como as receitas extraordinárias e mudanças de meta fiscal para convalidar a política fiscal no período em um cenário de elevado nível de despesas obrigatórias. As metas fiscais foram alteradas em todos os anos entre 2013-18. A única exceção ocorreu em 2019, depois de uma receita extraordinária expressiva com o resultado do leilão do pré-sal. Apesar do aparente sucesso da política fiscal no ano, é evidente que o contingenciamento efetuado praticamente paralisou algumas atividades básicas do governo, fenômeno recorrente desde 2015.

Em função dessas circunstâncias, analistas começaram a debater mudanças nas regras fiscais brasileiras ainda no início desse período, já em 2013. A ideia era estabelecer um sistema um pouco mais flexível, em que as frustrações de pequeno grau da atividade econômica não causassem o desgaste de ter que solicitar a mudança da meta (ou mesmo estimulassem a “indústria dos programas de parcelamento de débitos tributários” e a utilização de contabilidade criativa, em um contexto no qual a apuração do resultado primário no Brasil se dá no critério caixa e não competência, em contraste com as práticas de contabilidade pública de boa parte dos demais países).

Foi nesse contexto que surgiu a proposta do sistema de bandas fiscais, em que a ideia era que a meta fiscal “central” pudesse ter um intervalo de +/-0,5 p.p. do PIB e o que governo ao longo do ano, por meio de seus relatórios de acompanhamento, indicasse o alvo que estava perseguindo à medida em que a economia evoluísse. Qualquer semelhança com o regime de metas de inflação não era mera coincidência. A avaliação era de que o regime de metas de inflação equilibrava bem os atributos de flexibilidade e credibilidade.

Do ponto de vista econômico, a proposta de bandas fiscais é uma simplificação dos regimes de metas para o resultado primário estrutural, recomendado por vários órgãos internacionais e especialistas (e adotado com grande sucesso pelo Chile desde 2001). Nesse regime, o governo não precisa alterar o curso da política fiscal em função de surpresas nas condições cíclicas da economia. Caso a economia cresça acima do projetado, o governo não estará autorizado a elevar seus gastos, na medida em que isso é percebido como um aumento cíclico da arrecadação e o sistema determina que esse recurso deva ser poupado e/ou utilizado para abater mais dívida do que se projetava - como recomendam as boas práticas.

O problema desse tipo de regra fiscal é que é difícil estimar com segurança o conceito de PIB potencial, base do cálculo do resultado estrutural, principalmente em períodos de recessões severas, em que podem ocorrer quebras estruturais relevantes. Nesse sentido, o sistema de bandas fiscais construía esse novo sistema por analogia, mas poucos analistas perceberam à época. Se o crescimento ficasse abaixo do projetado, seria possível acomodar a menor receita na forma de resultado primário um pouco menor. Diferentemente da proposta atual, esse debate - que se estendeu até 2016 - sempre pressupôs limites para a banda. A partir desse limite o governo teria que assegurar o cumprimento da meta. Garantir o cumprimento da meta hoje é mais difícil, as circunstâncias são outras.

A reação a esse debate foi muito negativa. O atual Secretário do Tesouro Nacional afirmou, naquele momento: “A bola da vez agora passou a ser a ideia equivocada de uma banda fiscal ou meta fiscal flexível” e continua “É impressionante como o governo, ao invés de fazer o básico, fica atrás de fórmulas salvadoras e de falsas soluções para reconquistar a sua credibilidade. O que as pessoas querem saber é como o governo voltará a ter superávit primário e o governo federal simplesmente não consegue responder esta pergunta. Uma banda fiscal não ajudará na recuperação do primário. A banda fiscal ajudará apenas ao próprio governo federal no fracasso de não cumprir a meta definida pelo ele próprio” (sic). A íntegra do artigo pode ser consultada aqui.

Essa foi uma das várias manifestações de especialistas sobre o tema. Mas o curioso é que o sistema já funcionava dessa forma, pois desde 2005 já havia deduções para o cumprimento da meta de resultado primário por conta da introdução do PPI, ainda no âmbito do acordo com o FMI, que abatia uma parte dos investimentos para o cumprimento da meta (ou seja, uma meta mais próxima do conceito de poupança primária do setor público). Sem enfrentar a questão e decidir pelo novo sistema, o governo da época acabou decidindo informalmente pela banda indefinida, curiosamente a mesma proposta que o governo apresentou agora.

Um dos argumentos para defender a atual proposta é que, desde 2017, a âncora fiscal passou a ser o teto de gastos. De fato, há grande atribuição de poderes ao teto de gastos. Mas é importante chamar atenção para o fato de que o que impacta a dinâmica da dívida pública é o resultado primário e não o nível do gasto (além, obviamente, do diferencial entre a taxa de crescimento do PIB e o custo da dívida, dentre outros). Não adianta cumprir o teto de gastos se continuarmos sem elevar de forma substancial o resultado primário, que sofrerá um novo baque depois dessa crise.

Outra fragilidade do argumento é que pressupõe que o teto de gastos é um regime fiscal seguro para conduzir o país para a estabilidade. Mas as projeções fiscais indicam que o teto será descumprido em breve, já levando em conta os impactos da aprovação de uma reforma previdenciária com “potência fiscal” quase duas vezes maior do que aquela que foi proposta logo após a introdução do teto de gastos. Mesmo que os “gatilhos” sejam acionados, não será possível restabelecer a trajetória de gastos originalmente preconizada pelo teto. Todos esses fatos são amplamente divulgados pela equipe de pesquisadores do IBRE que acompanham o tema de forma meticulosa, bem como por outros pesquisadores (como, por exemplo, a Instituição Fiscal Independente ligada ao Senado).

O teto de gastos foi introduzido em 2016 e não foi capaz de reduzir as despesas como percentual do PIB. Segundo os dados da STN, as despesas primárias de 2019 alcançaram o mesmo nível que se encontravam em 2016 em meio à uma recessão: 19,9% do PIB – e isso com as despesas discricionárias comprimidas para o menor nível em muito tempo, sobretudo os investimentos, depois dos subsídios atingirem as mínimas históricas em percentual do PIB e da elevada informalidade no mercado de trabalho que estancou as despesas do FAT. E no ano atual irão crescer para mais de 22% do PIB. Talvez seja necessário indagar se será possível atingir o resultado primário desejado mesmo assumindo o cumprimento do teto até 2026 com o acionamento das cláusulas.

Com efeito, o teto de gastos pode ter alterado as expectativas – ao introduzir uma âncora fiscal de médio e longo prazos -, mas não mudou a realidade: sem conseguir fazer reformas apropriadas (e com impacto tempestivo), sem discutir a tributação (e não só as despesas) e sem crescimento (em uma economia que opera com enorme ociosidade desde 2016) não haverá o reequilíbrio fiscal. As regras fiscais não têm poderes mágicos e não trarão a pessoa desejada de volta em três dias. A conclusão é clara: o sistema terá que ser todo rediscutido, o que pode ficar um pouco mais para à frente a partir de dados mais concretos. Por enquanto, a solução do governo parece ter sido transformar uma previsão em profecia.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.  

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