Mudança e continuidade no presidencialismo de coalizão
Houve mudanças significativas no presidencialismo de coalizão, que o atual governo tem levado em conta. Justamente por isso, solidificação da maioria legislativa que sustenta Executivo tem sido feita de forma lenta e gradual.
O Congresso se fortaleceu nos últimos anos, sobretudo na área orçamentária. Desde 1985, a direita parlamentar nunca esteve tão forte como se encontra agora. A extrema-direita tem, atualmente, o maior partido da Câmara dos Deputados e o segundo maior do Senado, o PL de Jair Bolsonaro. A fragmentação partidária, finalmente, reduziu-se, após crescer continuamente desde 1990. No dia 8 de janeiro de 2023, houve uma tentativa de golpe de Estado, na qual estão envolvidos alguns militares da ativa e da reserva. Entre 2020 e 2022, houve a pandemia da Covid-19, durante a qual o governo federal jogou contra a ciência e o SUS, o grande ativo nacional no campo da saúde pública, tendo também militarizado o Ministério da Saúde. O então presidente da República, Jair Bolsonaro, opôs-se à vacinação, ao confinamento e ao uso de máscaras. Não à toa, o desempenho do Brasil no combate à pandemia foi trágico.
No parágrafo acima, estão listados os novos parâmetros que balizam a política brasileira e com os quais Lula se deparou desde sua apertada vitória na disputa pelo Palácio do Planalto em outubro do ano passado. Os referidos parâmetros alteraram o modus operandi do presidencialismo de coalizão. Como?
O fortalecimento do Congresso no plano orçamentário significa que deputados e senadores não precisam mais tanto de acesso a postos ministeriais para transferir recursos públicos para suas bases eleitorais. Como se sabe, nomeações ministeriais são o principal meio pelo qual os presidentes atraem partidos políticos para montar a maioria legislativa do governo. Portanto, a redução do valor dos ministérios para os políticos aumentou o poder de barganha destes vis-à-vis o presidente.
Por sua vez, o fortalecimento da direita não deveria alterar o funcionamento do presidencialismo de coalizão. O problema é que, dentro da direita parlamentar, quem realmente cresceu foi a extrema-direita, não a direita tradicional. Porém, a direita tradicional passou a, implicitamente, usar a disrupção permanente do processo político normal de uma democracia pela extrema direita para ou cacifar-se perante o Executivo Federal ou para evitar qualquer diálogo com Lula (no suposto de que a direita retomaria o Planalto em 2026). Este jogo bruto e perigoso foi jogado até o dia 30 de junho do corrente, quando o Tribunal Superior Eleitoral declarou Bolsonaro inelegível. Assim, pode ser que este novo parâmetro seja cancelado em pouco tempo. Mas a ver.
A redução da fragmentação partidária causada pela eleição de 2022 deveria facilitar o velho presidencialismo de coalizão, uma vez que voltou ao nível da década de 1990, quando esta fórmula governativa funcionou muito bem sob a hábil batuta de Fernando Henrique Cardoso. A má notícia é que a queda na fragmentação ocorreu em detrimento dos dois principais partidos centristas, o MDB e o PSDB, sobretudo o último, que pode estar em vias de extinção. O enfraquecimento dos partidos centristas, justamente os que mais têm flexibilidade ideológica para integrar e sustentar coalizões, dificulta mais ainda a tarefa de Lula, um político de centro-esquerda, de negociar com a direita tradicional.
A tentativa de golpe de 8 de janeiro, apesar de fracassada, tem a seguinte implicação: a defesa do regime democrático passa a ser um dos eixos centrais da ação do Executivo Federal. Se, antes do mandato de Bolsonaro e do golpismo bolsonarista, já era muito difícil governar o Brasil, imagine-se agora. Além de ter que negociar permanentemente com o Congresso, o Judiciário, os partidos e a Federação, Lula tem que dirigir a máquina do Estado como se fosse um motorista que se vê compelido a torcer bruscamente o pescoço para a direita para olhar várias vezes para trás, de modo a não ser abalroado por um caminhão colado em sua traseira. A defesa da democracia compete intensamente com o enorme tempo que os governos sempre tiveram que despender para administrar o país em períodos relativamente “normais”. Ou seja, o golpismo não é apenas uma grave ameaça à democracia. É também um dreno de energia vital que deveria estar sendo canalizada para o desenvolvimento econômico e social do país.
Por seu turno, os desastres causados pelo governo Bolsonaro na saúde pública levaram Lula a – acertadamente – a nomear uma técnica apartidária, a Dra. Nísia Trindade, ex-presidente da Fiocruz, como ministra da Saúde. Além de administrar uma política essencial para o bem-estar dos eleitores, o Ministério da Saúde comanda vastos recursos financeiros e inúmeros cargos de confiança, transformando-o numa das pastas mais cobiçadas pela direita tradicional. O centrão tem exigido agressivamente a cadeira de Nísia Trindade. Entregar o Ministério da Saúde poderia atrair de vez a direita tradicional para a base de apoio de Lula, o que consolidaria sua maioria legislativa. Todavia, Lula não pode ceder a essa pressão, pois corre o alto risco de destruir a credibilidade do seu terceiro mandato na área social. Nesse sentido, o rastro de devastação deixado por Bolsonaro amarra as mãos de Lula em suas tratativas com os partidos, o que não deixar de ter efeitos positivos (a permanência da atual ministra no cargo). De qualquer modo, é uma alteração nos parâmetros políticos que deve ser registrada.
Em suma, houve mudanças significativas no funcionamento do presidencialismo de coalizão, as quais o atual governo tem levado em conta. Justamente por isso, a solidificação da maioria legislativa que sustenta o Executivo tem sido feita de forma lenta, passo a passo.
Por último, convém notar que nem todas as mudanças foram negativas. É o caso das mãos amarradas de Lula com relação ao Ministério da Saúde. E, no médio prazo, a redução da fragmentação partidária deverá gerar bons frutos. As linhas de continuidade residem no fato de o presidencialismo de coalizão permanecer vivo como uma fórmula governativa bastante flexível e, eventualmente, eficaz nas mãos de presidentes moderados e politicamente astutos, como foi FHC e é Lula.
Esta é a seção Observatório Político do Boletim Macro Ibre de Julho de 2023.
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