Macroeconomia

Mudança na política fiscal trouxe mais dúvidas que respostas

28 out 2021

Mudança nas regras fiscais  não traz soluções permanentes e cria novos riscos. Por outro lado, apesar da mudança, gasto primário deverá cair de 18,9% do PIB em 2021 para 18% em 2022, ou quase 1 p.p. do PIB. O ajuste segue, mas de forma mais gradual do que o mercado esperava.

O governo propôs alterar o teto de gastos para abrir espaço fiscal e ampliar a assistência social, socorrer os caminhoneiros da alta de combustíveis e expandir as emendas parlamentares. Existe risco de que tais demandas aumentem durante a tramitação no Congresso Nacional.

A proposta prevê o parcelamento do pagamento dos precatórios e a mudança na aplicação dos indexadores que corrigem o teto. O teto de gastos é calculado utilizando o IPCA nos doze meses acumulados até junho ao passo que os gastos sociais são indexados pelo INPC de fim do ano. O espaço fiscal aumenta quando a inflação cai ao longo do segundo semestre, pois o teto é corrigido por uma inflação superior à correção dos benefícios sociais. Essa era a situação esperada que seria compatível com a ampliação da assistência social sem mudar o teto, mas a inflação não cedeu.

Existe uma razão técnica para o procedimento. O Orçamento deve ser encaminhado para o Congresso Nacional até agosto e as áreas técnicas recebem as projeções econômicas com antecedência para elaborar as projeções orçamentárias. A solução poderia ter sido diferente, pois é comum atualizar os parâmetros ao longo da tramitação. A opção escolhida foi conveniente: como a inflação em 2016 estava em queda, abriu-se espaço para mais gastos. Na época, ninguém reclamou.

O novo cálculo aplica o IPCA de fim de ano de forma retroativa e abrirá maior espaço para gastos no próximo ano. Para a frente, a correção utilizará o IPCA efetivo dos primeiros seis meses e a projeção de IPCA para os seis meses seguintes, havendo compensação de erros de previsão. As duas alterações lembraram políticas do governo militar que aplicavam projeções defasadas de inflação para corrigir os salários e que alteraram a data base de índice de preços para revisar a inflação.

A correção pela projeção da inflação não funciona porque a tendência é que o governo subestime a inflação futura. Foi o caso da elaboração orçamentária do próximo ano quando o governo estimou o IPCA em 5,9% para 2021. A expectativa em agosto girava em torno de 7,1% e atualmente está em 8,9%. A retroatividade, por sua vez, é arbitrária e oportunista.

O impacto das mudanças está estimado em torno de R$ 94 bilhões em novos gastos. O efeito multiplicador desses gastos não será expressivo, pois manterá os auxílios assistenciais já implementados e, portanto, não constituem novo impulso. A renovação desses gastos combinada com a contração monetária corrente terá boa parte de seus efeitos dissipados. A ampliação do teto é linear e outros Poderes poderão ampliar seus gastos. Assim, a mudança abre espaço para outras discricionariedades que não são urgentes.

O mercado digeriu mal a proposta, como era de se esperar. Alguns analistas defenderam que os precatórios fossem excluídos do teto, mas condenaram a exclusão dos novos gastos sociais. Muitos se silenciaram sobre a perda de receita na antirreforma do imposto de renda. Não há nenhuma contradição, ajuste fiscal nos outros é sempre menos doloroso.

Apesar da mudança, o gasto primário deverá cair de 18,9% do PIB em 2021 para 18% do PIB em 2022, uma contração de quase 1 p.p. do PIB. O ajuste segue, mas de forma mais gradual do que o mercado esperava. O custo maior está na incerteza, pois se perde uma referência macroeconômica importante aumentando o risco.

Considerando as circunstâncias sociais, o ideal seria focar a ampliação dos gastos para os mais vulneráveis. A mudança do bolsa família tem vários problemas, pois gera fragmentação do programa e concorrência orçamentária entre as modalidades dos novos benefícios. Uma parte acabará em dezembro de 2022 causando grande insegurança social entre os beneficiários.

A assistência aos mais vulneráveis precisa de uma solução permanente e a politização que o governo promove causará um prejuízo muito grande ao país. Uma das propostas é incluir os caminhoneiros no auxílio. Isso traz aspectos políticos importantes em uma perspectiva de longo prazo: a ampliação sem foco cria a percepção de que o benefício é indevido e que o programa serve apenas para angariar votos. Com avaliação negativa, reverte-se o apoio social ao programa. Em um ambiente de menor controle social devido a menor disponibilidade de informações estatísticas, Bolsonaro transforma o programa no que sempre criticou, uma caixa preta.

O Ministro da Economia apresentou críticas relevantes ao teto que foi criado, em 2016, com um valor elevado. Naquele ano, a despesa primária atingiu 19,9% do PIB, o maior patamar até a pandemia e 0,5 p.p. do PIB superior ao ano anterior. Isso permitiu ao Governo Temer conviver com a regra, inclusive, reajustando salários. O ônus do ajuste ficou maior para o governo seguinte.

A proposta do governo, no entanto, tem o mesmo problema apontado pelo Ministro pois serve apenas para o período eleitoral. A questão de fundo do teto não está em alinhar indexadores, e sim em reconhecer que não é possível que o gasto primário cresça pela inflação em um horizonte de médio prazo. A condição suficiente do ajuste fiscal é que a despesa caia como proporção do PIB e isso permite outras possibilidades mais críveis e sustentáveis o que ajudaria a evitar crises orçamentárias recorrentes.

A mudança permite ao governo disputar a eleição, razão precípua de toda a confusão. A proposta atual não resolve o problema do teto, mas formaliza a anarquia fiscal para os próximos meses que vai ficar para o governo seguinte resolver seja com um novo waiver ou um novo regime fiscal.


Este artigo foi publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 27/10/2021, quarta-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.