Macroeconomia

Nome aos bois: PEC emergencial trouxe comando para elevar a carga tributária em até 2% do PIB

18 mar 2021

Depois de muitas idas e vindas, a PEC 186 – proposta pelo Executivo ainda no final de 2019, antes da eclosão da pandemia – foi finalmente aprovada pelo Congresso, com muitas alterações e acréscimos em relação ao texto original.

A sua aprovação acabou “desbloqueando” uma nova rodada de pagamento do Auxílio Emergencial (AE), com o gasto total limitado a R$ 44 bilhões - permitindo a concessão de um benefício médio de aproximadamente R$ 250 por quatro meses, entre março e junho, para 44 milhões de pessoas.

Importante lembrar que “sobraram” R$ 29 bilhões de dotação do AE do exercício financeiro de 2020 (“orçamento de guerra”, executado por meio de crédito extraordinário), os quais poderiam ter viabilizado o pagamento de praticamente três parcelas de R$ 250 para o mesmo público da nova rodada recém-aprovada para esse auxílio. Para tanto, o Executivo deveria ter buscado o TCU ainda no final de 2019, de modo a ter um aval formal para a utilização desses recursos neste ano sem que eles afetassem a despesas sujeitas ao teto de gastos federal, em um contexto no qual o estado de calamidade pública se encerrou em 31/12/2020. Algo semelhante vale para o programa BEm, que o governo vem tentando reeditar neste momento em função da perspectiva de piora adicional da atividade econômica no curto prazo, reflexo da deterioração acentuada do quadro pandêmico e da evolução insatisfatória da vacinação em massa em território nacional.

Voltando à PEC 186 – convertida na Emenda Constitucional 109/2021 -, muitos avaliaram que ela trouxe avanços importantes para o arcabouço fiscal brasileiro. Essa avaliação decorre especialmente do fato de que essa nova EC viabiliza, na prática, o acionamento dos gatilhos previstos pelo teto de gastos para o governo federal (EC 95/2016), além de engordar o colchão de liquidez do Tesouro Nacional em cerca de R$ 260 bilhões e introduzir algumas sanções para os governos regionais que não cumprirem os limites de despesa em relação às receitas definidas pela nova legislação. Alguns também destacaram positivamente a “inovação”[1] trazida pela sinalização de que as regras fiscais deverão se articular de modo a assegurar uma determinada trajetória de dívida pública, a ser definida em lei complementar (embora o economista Claudio Adilson tenha elencado recentemente, de forma bastante clara e didática, os diversos problemas conceituais e práticos associados à definição de limites de endividamento para o governo federal).

Outros analistas, no entanto, avaliam que há uma superestimação da “potência” dessa nova EC, uma vez que, ao menos no caso do governo federal, ela foi calibrada numericamente para ser binding somente a partir de 2024/25, conforme cálculos da IFI/Senado.

Ademais, por não substituir ou extinguir nenhuma das regras fiscais já existentes (como a “moribunda” regra de ouro), o Brasil passou a conviver com um arranjo caracterizado por uma “inflação de metas” (como bem argumentou Bernard Appy em artigo recente no Estado de São Paulo). No mais, como já apontei em outros textos neste blog, de nada adiantar ter uma profusão de regras fiscais se elas são mal desenhadas e calibradas, conforme atestou estudo empírico recente do FMI (“Do fiscal rules cause better fiscal balances? A new instrumental variable approach”, Caselli & Reynaud 2019).

Em dito isso, meu objetivo neste artigo é o de comentar um aspecto específico desse novo arcabouço introduzido pela EC 109/2021: o comando que define que o total de gastos tributários federais brasileiros, atualmente de 4% do PIB (projeção PLOA 2021), deverá recuar para 2% do produto em até 8 anos (retornando aos níveis observados em 2006).

Ao longo da tramitação, algumas políticas públicas implementadas por meio desses gastos tributários – tais como o Simples Nacional/MEI, a Zona Franca de Manaus, a desoneração da cesta básica, dentre algumas outras -, foram blindadas e constitucionalizadas (tornando ainda mais difícil alterá-las ou extingui-las, caso avaliações de custo-benefício suportem isso). Como essas políticas públicas “blindadas” respondem por cerca de metade do gasto tributário federal, isso significa dizer que, para que o comando introduzido pela EC 109/2021 seja cumprido, praticamente todo o restante terá que ser extinto.

Há muitas dúvidas se a EC 109/2021 de fato entregará essa redução do gasto tributário, uma vez que a EC, em seu Artigo 4º, apenas determina que o governo federal envie, em até 6 meses após a promulgação da EC, proposições legislativas para o Congresso indicando essa redução, a qual deve ser de 10% do total (em termos anualizados) já no primeiro exercício financeiro. Não parece haver nada na EC 109/2021 que obrigue o Executivo a viabilizar, efetivamente, esse gasto tributário menor ao longo dos próximos anos.

E isso me traz ao ponto central deste artigo: alguns analistas consideram que esse seria um dos principais elementos favoráveis da EC 109/2021, a despeito das blindagens ad hoc de algumas políticas públicas que mereceriam ao menos algum tipo de reavaliação antes de terem sido constitucionalizadas (já que há muitos indícios de que várias dessas políticas são pouco eficientes, regressivas e apresentam baixa focalização).

Contudo, muitos poucos vêm chamando isso pelo seu verdadeiro nome: aumento de carga tributária recorrente. Gasto tributário nada mais é do que o termo técnico para renúncia de receitas. Para ser mais preciso, há uma única política pública federal que é classificada como gasto tributário, mas que, caso seja extinta, criaria espaço sob o teto de gastos federal: a desoneração da folha de pagamentos (contabilmente ela é lançada como uma despesa primária do governo federal buscando compensar o impacto negativo sobre a arrecadação do INSS gerado por essa política).

Eu apontei, em simulações apresentadas no Observatório de Política Fiscal do IBRE/FGV em meados do ano passado, que um teto de gastos alternativo, mais bem desenhado e calibrado do que o atual (o teto Giambiagi-Tinoco), combinado a um aumento permanente de carga recorrente de 1% do PIB a partir de 2023, melhoraria consideravelmente o quadro de sustentabilidade do endividamento público brasileiro nos próximos 15 anos. Eu admiti, naquele exercício, que esse aumento de carga viria da implementação de um carbon tax – tributo pouco distorcivo do ponto de vista do PIB (como apontou um amplo estudo feito com países europeus divulgado no ano passado) e que ainda mitigaria uma externalidade negativa, com impactos claramente favoráveis sobre o bem-estar agregado.

Não obstante, esse aumento de carga poderia advir também da redução de algumas rubricas do gasto tributário. É verdade que uma redução de, digamos, 1% do PIB, do gasto tributário estimado pela Receita Federal não necessariamente elevaria a arrecadação federal no mesmo montante, uma vez que os agentes econômicos podem buscar meios de contornar esse aumento, migrando até mesmo para a informalidade em certas situações. Contudo, por outro lado, caso a extinção ou redesenho de algumas dessas políticas realizadas por meio de gastos tributários elevem a eficiência produtiva brasileira (reduzindo a má-alocação de recursos), isso aumentaria o PIB potencial e a arrecadação total do governo. Com o crescimento da despesa primária desconectado da variação do PIB nominal por intermédio de alguma regra fiscal (não precisa ser o atual teto de gastos, vale notar), esse aumento do PIB potencial acaba também gerando uma queda da relação dívida/PIB ao longo do tempo.

Desse modo, não sei se houve alguma mudança de postura do sistema político brasileiro e mesmo da sociedade em relação a aumentos de carga tributária – isso parece estar acontecendo em boa parte do restante do mundo no contexto pós-Covid, vide os casos de EUA e Reino Unido – ou se simplesmente não perceberam exatamente do que se tratava, mas a verdade é que, oficialmente, a EC 109/2021 trouxe novamente ao debate doméstico aumentos de carga recorrente como um dos ingredientes do esforço de consolidação fiscal brasileira.

Por fim, eu encerro esse post chamando a atenção para um outro ingrediente da consolidação fiscal que tem sido menosprezado consistentemente, relacionado à posição cíclica da economia brasileira. Conforme apontei em abril do ano passado no OPF-IBRE/FGV, o ciclo econômico desfavorável subtraiu cerca de 2 p.p. do PIB do resultado primário recorrente brasileiro em 2016-2019. Estou finalizando a atualização dessas estimativas para 2020 (que devem ser divulgadas no OPF até meados de abril), mas uma estimativa preliminar sugere que esse impacto deve ter se situado entre -2,5 e -3,0 p.p. do PIB no ano passado. Portanto, estimular a demanda agregada, de modo a consumir o excesso de ociosidade e retomar o pleno-emprego o quanto antes, também é um elemento crucial da agenda de consolidação fiscal brasileira. E um atraso nisso, além de impedir que a relação dívida/PIB siga subindo nos próximos anos, pode acabar rebaixando o próprio crescimento potencial, via efeitos de histerese.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

[1] Coloquei essa palavra entre aspas pois a LRF, de 2000, já previa limites de endividamento, tanto para a União como para os governos regionais. Contudo, a Resolução 40/2001 do Senado Federal definiu limites numéricos apenas para estados (200% da RCL) e municípios (120% da RCL).

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